Entre ou cadastre-se

Doutrina que é Segundo a Piedade | Por Jared Longshore

Enquanto Francis Scott Key estava cativo em um navio britânico assistindo o “clarão vermelho dos foguetes” e recebendo inspiração para A Bandeira Estrelada, John Dagg deitava-se sob as “bombas estourando no ar”, o que ele veio a chamar de “uma noite terrível”.[1] De fato foi uma noite assustadora em Baltimore, 13 de setembro de 1814, e apesar de que a “primeira luz do amanhecer” do dia 14 resultaria em “estrelas e listras ainda flutuando na brisa”,[2] John Dagg e seus companheiros de guerra não faziam ideia de que a história seriam assim. Dagg tentou dormir sob o “rugir de canhões e bombas”,[3] mas foi acordado 3 vezes para se preparar para uma batalha que nunca chegou. No calor de uma batalha como aquela, duas coisas ficaram imensamente claras: primeiro, o bem e o mal existem; segundo, a vida neste mundo é muito passageira. Dagg posteriormente se tornaria um teólogo e essas duas verdades serviriam como pilares para o seu estudo sobre religião: o homem é tanto moral quanto imortal. Para dizer nas palavras do próprio Dagg: “Que os homens são imortais e estão sob um governo moral, pelo qual o futuro estado deles será feliz ou miserável, de acordo com a conduta deles na vida presente, são verdades fundamentais da religião”.[4]

 

Se os seres humanos são morais e imortais, então qualquer estudo do divino deve ter ramificações em suas vidas. Primeiro, se eles são morais, então eles estudam Deus como o juiz deles. Qualquer descoberta feita sobre o caráter e ou julgamentos desse juiz moral deve afetar grandemente o comportamento deles. Segundo, se os homens são imortais, então o estudo sobre Deus e sua resposta a Ele têm consequências eternas. A visão de Dagg sobre teologia nos mostra que doutrina e vida são inseparáveis e a primeira informa a última. O Manual de Teologia de Dagg foi escrito com a premissa de que a vida espiritual é moldada pela teologia, pois a natureza da verdade divina necessita de uma resposta moral dos seres humanos. Determinados aspectos da doutrina de Dagg serão analisados com vista ao seu impacto na vida espiritual.

 

Primeiro, teologia é feita por meio de revelações. Para aprender verdades sobre Deus e Seus caminhos, é preciso depender de revelações. Dagg destacou: “Nós precisamos de informações a respeito desse mundo invisível e o método correto de se preparar para ele, e nenhum outro conhecimento pode ser mais importante para nós do que esse. Será que não temos nenhuma forma de obtê-lo?”.[5] A própria consciência de alguém e a consciência de outros servem de revelação, mas elas estão corrompidas pela queda. Além disso, o curso natural deste mundo nos fala sobre o divino. No entanto, essas três fontes não se comparam à fonte final: a Palavra de Deus. Para nossos propósitos, o que é fundamental é observar que cada uma dessas fontes de revelação são fontes da revelação de Deus. Deus é Aquele que escreveu Sua lei no coração da humanidade.[6] Ele é O que criou este mundo, ordenou seus eventos e inspirou as Suas Sagradas Escrituras. Portanto, uma vez que o divino governador moral do mundo se comunicou com seres morais, estes têm uma obrigação, um dever, de atender a essa revelação. Assim, a própria natureza da revelação requer uma vida espiritual de estudo ou consideração da Palavra de Deus.

 

Segundo, teologia em seu íntimo é o estudo do próprio Deus. A informação central que Deus revela em Sua palavra é informação sobre Ele mesmo. Todavia os homens não são instruídos a meramente conhecerem fatos sobre Deus sem serem afetados no coração. Ninguém pode se empenhar ao estudo do divino com o desprendimento característico de algum estudo biográfico. Em um caso como esse, a natureza da figura histórica não requer que o estudo seja feito com amor. Por outro lado, a natureza de Deus insiste que aquele que O buscar o faça com amor. Dagg deixa claro que o amor não é apenas um resultado de se conhecer a Deus, mas deve ser a disposição do coração enquanto o estudo da teologia estiver sendo feito.

 

Não é necessário que estabeleçamos uma demonstração formal de que Deus existe, ou uma investigação formal de Seus atributos, antes de começarmos a cumprir o dever de amá-lO. Nós já conheçamos o bastante sobre Ele para isso; e adiar esse dever até que completemos nossas investigações, é realizá-las com corações impuros, e em rebelião contra Deus.[7]

 

Dagg continua a mostrar os atributos de Deus, os quais não se tratam apenas de atributos naturais como onipotência, onisciência e onipresença; mas também de excelências morais, tais como bondade, verdade, justiça, santidade e sabedoria. Uma vez que esses atributos de Deus são tão belos, não é possível que alguém conheça a Deus e Sua santidade verdadeiramente e não tenha sua percepção moral transformada. A natureza de Deus, portanto, insiste que o estudo teológico seja feito com amor. Na medida em que é feito dessa forma, esse estudo é proveitoso; mas quando não se dá dessa maneira, é falho.

 

Se, com o que já sabemos sobre Deus, nós O admiramos e amamos, devemos desejar conhecer mais sobre Ele, e precisamos dar continuidade ao estudo, com aproveitamento e prazer; mas, se nós já Lhe trancamos o coração, todas as nossas investigações intelectuais a Seu respeito podem nos deixar cegos espiritualmente.[8]

 

Terceiro, teologia não é apenas o estudo dos atributos de Deus, mas inclui o estudo de Sua Vontade e obras. Enquanto o estudo do próprio Deus requer amor, o estudo da vontade e obras de Deus produz alegria e prazer na vida espiritual. A razão para isso é que o trabalho de Deus em criar e sustentar o mundo é uma manifestação de Seu próprio caráter santo. Assim, a natureza de Deus como existente exige o amor, mas a natureza de Deus manifestada resulta em deleites. Dagg esclarece: “Na existência e atributos de Deus, um fundamento suficiente é estabelecido para a reivindicação de amor supremo a Ele; mas, para o exercício ativo da afeição santa, Deus deve ser visto não somente como existente, mas também como atuante. Para produzirem deleite nEle, as Suas perfeições devem ser manifestas”.[9]

 

Consequentemente, o que Deus ordena que seja feito neste mundo e o que Deus realmente faz neste mundo são ambas manifestações de Sua santa bondade, e devem ser percebidas com alegria. O trabalho de Deus na criação e na providência testemunham a Sua glória; quando Sua obra é vista Ele não deve ser apenas reconhecido, mas tido como um tesouro.

 

Quarto, teologia inclui a doutrina da humanidade em relação a Deus. As Escrituras deixam claro que Deus criou o homem bom, mas o homem caiu em pecado ao quebrar o mandamento de Deus. O pecado humano não é apenas um fracasso em alcançar nosso próprio potencial ou um erro de nosso próximo, mas uma ofensa contra o Deus santo. Se esse aspecto da natureza pecadora do homem não for visto corretamente, então a resposta adequada da vida espiritual não ocorrerá: “Para que haja sincero arrependimento diante de Deus, é indispensável que entendamos que pecamos contra Ele. Os homens geralmente não comparam suas ações com a justa lei de Deus, mas com as ações de outros homens”.[10] Dagg mostra que a humanidade caiu em pecado, resultando em um estado de depravação, condenação e desespero. Esse conhecimento preciso informa nossa prática de arrependimento. Uma vez que a humanidade é depravada, condenada e sem esperança, o arrependimento não é uma tentativa sentida de dar a volta por cima ou de melhorar sua própria situação por seus próprios méritos, sem ajuda. Pelo contrário:

 

O arrependimento genuíno é um profundo e duradouro senso de pecado, uma condenação de nós mesmos diante de Deus por causa disso, um dar às costas ao pecado com aversão e repugnância, e um propósito fixo da alma de nunca mais cometê-lo ou de estar em paz com ele. Esse senso de pecado leva a alma a Cristo.[11]

 

Novamente, isso prova a verdade de que não é possível se engajar em teologia separando-a da vida espiritual. Não é possível que alguém fielmente estude o pecado da humanidade sem o resultado apropriado do arrependimento.

 

Quinto, o estudo da teologia não deixa a humanidade desamparada em pecado, mas ensina que um Salvador é vindo, chamado Jesus Cristo. Dagg fala tanto da pessoa quanto da obra de Cristo. Cristo, em Sua pessoa, é tanto humano quanto divino. Ele sempre existiu em glória com Seu Pai, mas foi feito carne, pois Ele “não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo”.[12] Cristo então ressuscitou e ascendeu em exaltação ao céu para sentar-se em Seu glorioso trono. Cristo tornou-se o mediador entre o homem pecador e o Deus santo, como um profeta, sacerdote e rei. Uma revelação tão extraordinária como essa requer uma resposta espiritual na vida dos humanos morais, pois,

 

Nós temos contemplado a divindade de Jesus Cristo, não apenas naqueles eventos transitórios que ocorreram enquanto Ele estava na terra, mas em sua demonstração completa que foi dada desde que Ele subiu ao céu, e a impressão em nossos corações deve ser forte e duradoura.[13]

 

Visto que um estudo de Cristo O revela como o salvífico Mediador entre Deus e os homens, a resposta apropriada na vida espiritual de alguém é a fé.

 

Sexto, teologia expõe não só a natureza do Deus Pai, que requer amor; ou do Deus Filho, que requer fé; mas também a natureza do Deus Espírito, que requer uma vida espiritual de dependência. Dependência é a resposta apropriada para uma teologia do Espírito porque o Espírito é revelado como “o santificador e consolador do povo de Deus”.[14] Dagg enfatiza que o Espírito Santo é uma Pessoa distinta do Pai e do Filho. Ele também mostra que o Espírito é uma pessoa divina juntamente com o Pai e o Filho. Quando tanto a obra quanto a Pessoa do Espírito Santo são corretamente entendidas, ninguém deve deixar de responder em dependência a esse Consolador bendito, pois “Nenhum crente que tem algum senso de dependência no Espírito Santo, pela divina vida que Ele desfruta e todas as demais bênçãos incluídas, pode ser indiferente ao Agente pelo qual é concedido todo esse bem”.[15]

 

Sétimo, a natureza da graça salvífica provoca uma vida espiritual de humilde gratidão. Dagg se estende bastante para mostrar que a graça é um favor imerecido de Deus para os homens. Ele fala do pacto da graça, das bênçãos da graça, e da soberania da graça em um esforço para ilustrar a indignidade do homem de receber tanta bondade de Deus. A revelação teológica anterior da pecaminosidade e depravação da humanidade serve para mostrar a imensidão da graça de Deus, “que a salvação é inteiramente graça divina, pode ser argumentada a partir da condição na qual o Evangelho encontra a humanidade. Somos justamente condenados, totalmente depravados e, em nós mesmos, completamente sem esperança”.[16] Além disso, quando a graça é bem entendida, então outros aspectos da teologia, tais como a fé, podem ser melhor compreendidos: “A fé renuncia a toda confiança em nossas próprias obras, toda expectativa de favor por conta delas; e pede e recebe toda bênção como o dom da divina graça por meio de Jesus Cristo”.[17] Dessa maneira, leva à resposta apropriada, “Quando salvação é assim recebida, toda arrogância é efetivamente excluída”.[18] Dagg expõe a verdadeira graça de Deus ao destacar a justificação, a adoção, a regeneração, a santificação, a perseverança e a perfeição. Ele explora as amplas riquezas da graça de Deus ao instruir sobre a eleição, a redenção particular, e o chamado eficaz. Um completo entendimento Calvinista da graça de Deus promove uma resposta de humilde gratidão, pois derruba os pilares de orgulho nos quais os homens se apoiam:

 

A doutrina da graça é o remédio para a justiça própria. É um remédio do qual o coração pecaminoso desgosta grandemente, mas que uma vez recebido, se mostra como um antídoto efetivo contra o mal. Isso destrói toda autossuficiência, e coloca o culpado pecador prostrado aos pés da misericórdia.[19]

 

Oitavo, nenhuma teologia é completa sem o estudo do mundo futuro, o qual por sua essência demanda uma vida espiritual de preparação. Dagg afirma claramente,

 

Todo homem sabe que seu tempo na terra é curto e incerto, e enquanto tem total certeza de que deve deixar esse mundo e de que o tempo de sua partida é próximo, não sequer questionar sobre o mundo para o qual está indo, ou desconsiderar informações autênticas sobre ele e os meios de se obter felicidade lá, é tolice ao extremo.[20]

 

Dagg ensina que uma doutrina completa sobre o mundo futuro inclui a imortalidade da alma, a ressurreição, o julgamento final, o céu e o inferno. À luz do julgamento moral que virá a todos, o tormento eterno do inferno e a eterna alegria do céu; a vida espiritual daqueles que estudam tal doutrina deve ser transformado pelo estudo. Este não produz pessoas que são tão celestiais que não buscam fazer o bem na terra. Pelo contrário, “Os motivos para a santidade e a diligência em buscá-la são tão estimulados pelo mundo futuro que o conhecimento desse mundo é de grande importância a todos os homens”.[21] Esse aspecto final da teologia serve como um selo magnífico para o argumento sustentado desde o começo: a teologia em sua essência molda a vida espiritual. Dagg, cheio de religião experiencial, até pressiona o leitor a aplicar toda a teologia que foi apresentada,

 

Leitor, quais são suas perspectivas no mundo futuro? Você recebeu o amor da verdade, para que possa ser salvo? A verdade como está em Jesus entrou em seu coração, com poder santificador? Você está diariamente se empenhando, por meio de uma vida santa, a adornar a doutrina de Deus, nosso Salvador, em todas as coisas?[22]

 

Concluindo, Dagg argumenta que o impacto espiritual da teologia é evidente a partir da natureza do estudo em si, bem como da natureza daqueles que a estudam. Teologia não pode ser feita à parte da prática espiritual do coração, e nenhuma espiritualidade pode ser fielmente exercida à parte de uma teologia robusta. A teologia em todos seus aspectos variados informa e molda a vida espiritual. A natureza da revelação requer uma vida espiritual de estudo diligente. A natureza do próprio Deus requer que tal tarefa seja feita com amor. A vontade de Deus e Suas obras levam o coração a se alegrar na glória de Deus manifestada. A pecaminosidade do homem não pode ser examinada sem um coração arrependido. A natureza da Pessoa e obra de Cristo demanda uma vida espiritual de fé, enquanto o Espírito Santo conduz a uma vida de dependência. A soberana graça de Deus quando verdadeiramente compreendida resultará em uma gratidão humilde, e o estudo sobre o futuro mundo exige uma vida espiritual de preparação.

 


 

1 J.L. Dagg, A Manual of Theology [Um Manual de Teologia] (reimpresso Harrisonburg, v. 1 A: Sprinkle Pub., 2009), 16.
2 Ibid.
3 Ibid.
4 Ibid., 17.
5 Ibid., 18.
6 Ibid., 19.
7 Ibid., 43.
8 Ibid, 44.
9 Ibid., 96.
10 Ibid., 140.
11 Ibid., 139.
12 Filipenses 2:6-7 (NVI).
13 Dagg, Um Manual de Teologia, 231.
14 Ibid., 241.
15 Ibid., 235.
16 Ibid., 259.
17 Ibid.
18 Ibid.
19 Ibid., 337.
20 Ibid., 340.
21 Ibid.
22 Ibid., 379.

 


[1] J.L. Dagg, A Manual of Theology [Um Manual de Teologia] (reimpresso Harrisonburg, v. 1 A: Sprinkle Pub., 2009), p. 16.

[2] Ibid.

[3] Ibid.

[4] Ibid., p. 17.

[5] Ibid., p. 18.

[6] Ibid., p. 19.

[7] Ibid., p. 43.

[8] Ibid, p. 44.

[9] Ibid., p. 96.

[10] Ibid., p. 140.

[11] Ibid., p. 139.

[12] Filipenses 2:6-7 (NVI).

[13] Dagg, Um Manual de Teologia, 231.

[14] Ibid., p. 241.

[15] Ibid., p. 235.

[16] Ibid., p. 259.

[17] Ibid.

[18] Ibid.

[19] Ibid., p. 337.

[20] Ibid., p. 340.

[21] Ibid.

[22] Ibid., p. 379.