Descrição
“Saulo, porém, aumentava mais em força, e confundia os judeus que habitavam em Damasco, provando que Jesus era o Cristo.” (Atos 9:22)
É uma verdade inquestionável, por mais paradoxal que pareça para os homens naturais, que “todo aquele que quiser viver piedosamente em Cristo Jesus, padecerá perseguições”. E, portanto, é muito notável, que o nosso bendito Senhor, em Seu glorioso Sermão do Monte, depois de ter declarado os que são bem-aventurados — que eram os pobres em espírito, mansos, puros de coração, e semelhantes — acrescenta imediatamente (e gasta nada menos que três versos nesta bem-aventurança) “Bem-aventurados são os perseguidos por causa da justiça” […]. Há uma inimizade irreconciliável entre a semente da mulher e a semente da serpente. E se não somos do mundo, mas mostramos por nossos frutos que pertencemos ao número daqueles a quem Jesus Cristo escolheu deste mundo, o mundo nos odiará por isso. Isso é verdade tanto na vida de cada Cristão em particular, como na vida de cada igreja Cristã, em geral. Durante alguns anos temos ouvido pouco de uma perseguição pública: Por quê? Porque pouco da piedade tem prevalecido entre todas as denominações. O valente tem tido plena posse da maioria dos corações dos professos, e os tem deixado descansar em uma falsa paz. Mas podemos ter certeza, quando Jesus Cristo começar a reunir Seus eleitos de forma maravilhosa, e abrir uma porta eficaz para a pregação do Evangelho eterno, a perseguição vai se inflamar, e Satanás e seus emissários farão o seu melhor (embora tudo em vão) para impedir a obra de Deus. Assim foi nos primeiros séculos, é nos nossos dias, e assim será, até o fim dos tempos.
Cristãos e igrejas Cristãs devem então esperar inimigos. A nossa principal preocupação deveria ser em aprender como nos comportarmos em relação a eles de maneira Cristã; pois, a menos que tenhamos muito cuidado, vamos amargurar nossos espíritos, e agiremos de maneira incompatível como seguidores do Senhor, “o qual, quando o injuriavam, não injuriava, e quando padecia não ameaçava”; “como um cordeiro diante de seus tosquiadores fica mudo, assim Ele não abriu sua boca”. Mas, qual motivo deve nos levar a este temperamento tão abençoado? Além da operação imediata do Espírito Santo em nossos corações, não conheço nenhuma consideração mais propícia para nos ensinar a paciência com os nossos perseguidores mais hostis, do que esta: “De acordo com o que sabemos, algumas das pessoas que agora estão perseguindo podem ser eleitas desde a eternidade por Deus, e chamadas para edificar e construir a igreja de Cristo”.
O perseguidor Saulo, mencionado nas palavras do texto acima, (e cuja conversão, se Deus quiser, propus-me a tratar no seguinte sermão) é um maravilhoso exemplo deste tipo.
Digo, um perseguidor, e dos sanguinários. Veja como ele é apresentado no início deste Capítulo: “E Saulo respirando ainda ameaças e mortes contra os discípulos do Senhor, dirigiu-se ao sumo sacerdote, e pediu-lhe cartas para Damasco, para as sinagogas, para que, caso encontrasse alguns do Caminho, quer homens quer mulheres, os conduzisse presos a Jerusalém”. “E Saulo ainda respirando”. Isto implica que ele tinha sido um perseguidor antes. Para provar isso, só precisamos voltar para o Capítulo 7, onde o encontraremos tão extraordinariamente ativo na morte de Estêvão, que “as testemunhas depuseram as suas vestes aos pés de um jovem, cujo nome era Saulo”. Ele parece, apesar de ainda jovem, ter alguma autoridade. Talvez, por seu zelo contra os Cristãos, ele foi preferido e autorizado a sentar-se no grande conselho ou Sinédrio. Para nós é dito, no Capítulo 8, “Que também Saulo consentiu na morte dele”, e novamente, no versículo 3, ele é trazido como superior a todos em sua oposição; porque assim fala o evangelista, “Quanto a Saulo, assolava a igreja, entrando pelas casas, e arrastando homens e mulheres, os entregava à prisão”. Alguém poderia ter imaginado que isto deveria ter satisfeito, ou pelo menos diminuído a fúria do jovem fanático. Não, enfurecido demasiadamente contra eles, como ele mesmo informa a Agripa, e tendo assolado Jerusalém, ele agora está decidido a perseguir os discípulos do Senhor, até nas cidades estrangeiras; e, portanto, respira ainda ameaças. “Respirando”. As palavras são muito enfáticas e expressivas de sua amarga inimizade. Era tão natural para ele agora ameaçar aos Cristãos, quanto era para ele respirar; ele poderia falar pouco, mas ao falar fazia ameaçava contra eles. Não, ele não somente respirava ameaças, mas mortes também (e aqueles a quem ameaçava, também mataria, se estivesse em seu poder) contra os discípulos do Senhor. Insaciável, portanto, como o Inferno, vendo que não poderia refutar ou parar os Cristãos pela força do argumento, resolveu fazê-lo pela força; e, portanto, foi ao sumo sacerdote (pois nunca houve uma perseguição sem um sumo sacerdote encabeçando-a) e pediu-lhe cartas, emitidas fora da sua corte espiritual, para as sinagogas ou tribunais eclesiásticos em Damasco, dando-lhe autoridade “que, caso encontrasse alguns do caminho, quer homens quer mulheres, os conduzisse presos a Jerusalém”, eu suponho, para serem acusados e condenados no tribunal do sumo sacerdote. Observe como ele fala dos Cristãos. Lucas, que escreveu Atos, os chama de “discípulos do Senhor”, e Saulo os denomina “homens e mulheres do caminho”. Não duvido que ele os representava como um grupo de entusiastas iniciantes, que ultimamente tinha entrado em um novo método ou maneira de viver; que não deveria se contentar com o culto do templo, mas deveriam ser justos em excesso, e tendo suas reuniões privadas ou secretas, partiam o pão, como o chamavam, de casa em casa, para grande perturbação do clero estabelecido e para a subversão absoluta de toda a ordem e decência. Não ouço o sumo sacerdote fazer qualquer objeção: não, ele estava tão disposto a conceder as cartas, quanto Saulo para pedi-las; e maravilhosamente satisfeito em si mesmo por descobrir que ele tinha um fanático tão ativo trabalhando contra os Cristãos.
Bem, então, uma autorização judicial é imediatamente emitida, com o selo do sumo sacerdote afixado. E agora vejo o jovem perseguidor finamente equipado, feliz com seus pensamentos, de como voltaria triunfante com os “homens e mulheres do caminho”, arrastando-os à Jerusalém.
Em que condições podemos imaginar que os pobres discípulos em Damasco estavam naquela hora! Sem dúvida, eles tinham ouvido falar de Saulo aprisionando e fazendo estragos entre os santos em Jerusalém, e bem podemos supor que eles foram informados de seu desígnio contra eles. Estou convencido de que este foi um tempo de crescimento, porque num tempo de provação as pessoas se unem mais. Ó como eles devem ter lutado com Deus em oração, rogando-lhe que os livrasse ou lhes desse a graça suficiente para lhes permitir suportar a fúria de seus perseguidores? O sumo sacerdote, sem dúvida, com o resto de seus irmãos, gabava-se, pois agora deveria pôr um ponto final naquela crescente heresia, e esperava com impaciência o retorno de Saulo.
Mas, “Aquele que habita nos céus se rirá; o Senhor zombará deles”. E, portanto, (versículo 3), “E, indo no caminho, aconteceu que, chegando perto de Damasco”, talvez nos portões, (nosso Senhor permitiu isso para provar a fé dos Seus discípulos, e mais visivelmente confundir os desígnios de Seus inimigos), “subitamente (ao meio-dia, como Saulo mais tarde relata a Agripa) o cercou um resplendor de luz do céu”, uma luz mais brilhante do que o sol; “e ele caiu por terra (por que não no Inferno?) e ouviu uma voz que lhe dizia: Saulo, Saulo, porque me persegues?” A palavra é duplicada, “Saulo, Saulo”, como aquela de nosso Senhor a Marta: “Marta, Marta”, ou do profeta, “Ó terra, terra, terra!”. Talvez essas palavras foram como um trovão para sua alma. Que elas foram ditas em voz alta, temos a certeza a partir do versículo 7, seus companheiros ouviram a voz. Nosso Senhor agora detém o fanático perseguidor, chamando-o pelo nome; pois a palavra nunca nos faz bem, até que nos fale em particular. “Saulo, Saulo, Por que me persegues?” Coloque a ênfase no termo por que, que mal Eu fiz? Ponha na palavra persegues, por que persegues? Eu suponho que Saulo achava que ele não estava perseguindo; não, ele estava apenas colocando as leis do tribunal eclesiástico em execução; mas Jesus, que tem os olhos como chama de fogo, viu, através da hipocrisia de seu coração, que, não obstante os seus pretextos capciosos, tudo isso procedia de um espírito de perseguição, e uma inimizade secreta no coração contra Deus; e, portanto, diz: “Por que me persegues?” Colo que a ênfase na palavra Me, por que me persegues? Ai de mim! Saulo não estava perseguindo a Cristo, estava? Ele só estava tendo o cuidado de evitar inovações na igreja, e trazendo um grupo de entusiastas à justiça, que de outra forma poderia derrubar a constituição estabelecida. Mas Jesus diz: “Por que me persegues?”. Pois, o que é feito contra os discípulos de Cristo, Ele considera como feito a Si mesmo, quer seja bom, quer seja mau. Aquele que toca os discípulos de Cristo, toca a menina do Seu olho; e os que perseguem os seguidores de nosso Senhor, perseguiriam o próprio Senhor, se Ele viesse novamente em carne e habitasse entre nós.
Eu não acho que Saulo deu qualquer razão por que ele perseguia; não, ele estava mudo; como todo perseguidor ficará, quando Jesus Cristo colocar esta mesma pergunta a eles no terrível dia do julgamento. Mas ao ser tocado no coração, sem dúvida, não só quanto à perseguição, mas quanto a todas as suas outras ofensas contra o grande Deus, ele disse: “Quem és, Senhor?” (v. 5). Veja quão depressa Deus pode mudar o coração e a voz de Seus inimigos mais hostis. Poucos dias atrás, Saulo não só estava blasfemando do próprio Cristo, mas obrigava outros a blasfemarem também: mas agora não, Aquele que antes era considerado um impostor, agora é chamado de Senhor, “Quem és, Senhor?”…