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A Manifestação da Eleição, por A. W. Pink

[Capítulo 8 do livro The Doctrine of Election • Editado]

 

Por Seu ato eletivo, Deus tomou a Igreja em uma relação definida e pessoal com Ele, de forma que Ele reconhece e considera seus membros como Seus filhos queridos e povo. Consequentemente, mesmo quando eles estão em um estado natural, antes de sua regeneração, Ele os vê e os possui como tal. Isso é muito abençoado e maravilhoso, embora, infelizmente, seja uma verdade que é quase desconhecida na atual Cristandade. Agora é comumente assumido que só nos tornamos filhos de Deus, quando nascemos de novo, que não temos nenhuma relação com Cristo até que O abracemos com os braços da fé. Mas, com as Escrituras em nossas mãos, não há desculpa para tal ignorância, e ai de quem deliberadamente repudia o seu claro testemunho, ao Seu Divino Autor eles ainda terão que responder por tal impiedade.

 

Parece estranho que os mesmos que são os primeiros na propagação (inconscientemente, nós fingimos acreditar) do erro mencionado acima, são os que provavelmente disseram e escreveram mais sobre o ensino típico do livro de Êxodo do que qualquer outra pessoa. Gostaríamos de perguntar aos tais: Não eram os Hebreus definitivamente reconhecidos por Deus como pertencentes a Ele antes que Ele enviasse Moisés para livrá-los da casa da servidão, antes que o sangue do cordeiro pascal fosse derramado, sim, enquanto eles eram totalmente idólatras (Ezequiel 20:5-9)? Verdadeiramente, pois a Moisés Ele declarou: “Tenho visto atentamente a aflição do meu povo, que está no Egito, e tenho ouvido o seu clamor por causa dos seus exatores, porque conheci as suas dores” (Êxodo 3:7); e de Faraó Ele exigiu, “Assim diz o SENHOR Deus de Israel: Deixa ir o meu povo, para que me celebre uma festa no deserto” (5:1). E os Hebreus eram um tipo divinamente ordenado do Israel de Deus, a espiritual eleição da graça!

 

É bem verdade que os eleitos de Deus são “por natureza filhos da ira, como os outros também” (Efésios 2:3), no entanto, as suas pessoas foram amadas por Ele com um amor eterno. Consequentemente, antes que o Espírito seja enviado para vivificá-los e fazer-lhes andar em novidade de vida, o Senhor Deus contempla e fala sobre eles como Seus. Como isso é agora tão pouco conhecido, vamos fazer uma pausa e ofereceremos provas da Palavra. Em primeiro lugar, Deus os chama de filhos Seus: “Todos os teus filhos serão ensinados do Senhor” (Isaías 54:13) — Seus filhos antes de [serem] ensinados por Ele; e novamente: “[…] para reunir em um corpo os filhos de Deus que andavam dispersos” (João 11:52) — Seus filhos antes de “serem reunidos” por Ele. Em segundo lugar, Ele os designa o Seu povo. “O teu povo será mui voluntário no dia do teu poder” (Salmos 110:3) — Seu povo antes de serem “feitos dispostos”, “Porque eu sou contigo, e ninguém lançará mão de ti para te fazer mal, pois tenho muito povo nesta cidade” (Atos 18:10) — antes de Paulo ter pregado o Evangelho naquele centro pagão. Em terceiro lugar, Cristo denomina os eleitos de Deus [como] Suas ovelhas antes de serem trazidos ao rebanho: “Ainda tenho outras ovelhas que não são deste aprisco; também me convém agregar estas” (João 10:16) — mas quem eram aquelas “outras ovelhas” senão aqueles Seus eleitos entre os gentios? Em quarto lugar, os eleitos são mencionados como o tabernáculo de Davi, enquanto eles estão nas ruínas da queda: “Simão relatou como primeiramente Deus visitou os gentios, para tomar deles um povo para o seu nome. E com isto concordam as palavras dos profetas; como está escrito: Depois disto voltarei, e reedificarei o tabernáculo de Davi, que está caído, levantá-lo-ei das suas ruínas, e tornarei a edificá-lo” (Atos 15:14-16). Na era apostólica, Deus começou a retirar dentre os gentios um povo para o Seu nome, e relativamente a estes Amós profetizara no passado:

 

"O tabernáculo de Davi’" ou seja, os eleitos de Deus, que uma vez estiveram em Adão com os não-eleitos, e com eles caíram; mas o Senhor reedificará o Seu eleito novamente, não no primeiro Adão, mas no segundo Adão, em Quem eles serão habitação de Deus através do Espírito (James Wells).

 

O amor no coração de Deus era um segredo em Si mesmo desde a eternidade, sendo totalmente desconhecido antes do começo do mundo, a não ser para Cristo, Deus-homem, ainda assim, ele tem sido exercido em relação à eleição da graça. Embora eles fossem amados com um tal amor como contido no extremo da boa vontade de Deus por eles, e no extremo da bênção, graça e glória, ainda assim, isso era de tal maneira e forma que, por um período, eles estiveram completamente não familiarizados com o mesmo. Embora os atos da vontade de Deus na Pessoa de Cristo a respeito deles e sobre eles eram tais que jamais poderiam cessar, no entanto, eles deveriam estar em um estado, por um período, em que nenhum destes atos deveria ser desvelado a eles e conhecidos por eles. Tudo estava na mente insondável de Jeová desde a eternidade, e o mesmo será para sempre; mas a revelação e manifestação disto foram feitas em momentos diferentes e em diversos graus.

 

As variadas condições em que os eleitos de Deus se encontram não somente exibem a multiforme sabedoria de Deus, mas ilustram a nossa última observação acima. Os eleitos deveriam estar na condição em que foram criados possuindo pureza e santidade; tal como eles foram feitos naturalmente em Adão. Disto, eles caíram em um estado de pecado e miséria, compartilhando a culpa e depravação de sua cabeça federal. Eles devem ser levados dali a um estado redimido pela obra expiatória de Cristo, e conhecem isso através da vivificação e operações santificadoras do Espírito. Depois de sua carreira terrena estar terminada são levados a um estado sem pecado, enquanto eles descansam dos seus trabalhos e aguardam a consumação de sua salvação. No devido tempo, eles serão levados para o estado de ressurreição, e dali para o estado de glória eterna e felicidade indizível.

 

Da mesma forma, existem diferentes fases do desdobramento do propósito eterno de Deus a respeito de Seu povo. O princípio da eleição Divina tem operado desde o início da história humana. Tão logo a Queda ocorreu, o Senhor anunciou a linha de distinção que foi traçada entre a semente da mulher e a semente da serpente, primeiro exemplificado no caso evidente de Caim e Abel (1 João 3:12). Em um capítulo anterior, somos chamados à atenção para a operação contínua deste princípio eletivo, como foi visto nas famílias de Noé, Abraão, Isaque e Jacó, e depois ainda mais conspicuamente na separação de Israel de todas as outras nações, como o povo escolhido de Jeová e os objetos de Seu favor especial. Mas o que nós consideramos agora não é tanto a operação do eterno propósito da graça de Deus, quanto a manifestação dele.

 

Em todos esses estados, através dos quais os eleitos são ordenados a passar, o amor de Deus é exercido e exibido em direção a eles e sobre eles, segundo o beneplácito de Sua vontade. O secreto e eterno amor de Deus por Seus eleitos e Sua aberta revelação do mesmo, embora em partes distintas, são um e o mesmo amor. O primeiro ato de amor de Deus pelas pessoas daqueles a quem Ele escolheu em Cristo consistiu em conceder a eles que estivessem em Cristo, o bem estar em Cristo desde a eternidade: este foi o ato fundamental de toda a graça e glória, pois Deus, então, os “abençoou com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo” (Efésios 1:3). O amor de Deus em Seu próprio coração pela Pessoa de Cristo, a Cabeça de toda a eleição da graça, não pode ser expresso, e Seu amor em relação às pessoas dos eleitos em Cristo é tão grande e infinito que as Escrituras declaram “que excede todo o entendimento” (Efésios 3:19). Meditar na aberta expressão e manifestação desse amor é, agora, nosso propósito.

 

 

1 – A encarnação e a missão de Cristo: “Nisto se manifestou o amor de Deus para conosco: que Deus enviou seu Filho unigênito ao mundo, para que por ele vivamos” (1 João 4:9). Observem o conhecimento das pessoas a quem o amor de Deus foi assim manifestado, expresso na palavra “conosco”. Este é um termo utilizado pelos escritores sagrados para incluir e pelo qual expressam os santos de Deus. É uma excelência distintiva dos apóstolos que eles trazem para casa os seus temas com toda a sua energia para as mentes dos santos, e depois os aplicam, de modo que por isso a verdade seja sentida em toda a sua vasta importância. Quer o assunto seja eleição, redenção, chamado eficaz ou glorificação, mui geralmente eles usam o termo “conosco”, incluindo, assim, eles mesmos e todos os crentes a quem escreveram. Isso serve adequadamente para evidenciar que todos eles são igualmente participantes em todas as bênçãos e benefícios de graça, o que abre o caminho para eles se apropriarem e desfrutarem do bem deles nas Escrituras.

 

Para ilustrar o que acaba de ser apontado: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo; como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor; e nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo, segundo o beneplácito de sua vontade, Para louvor da glória de sua graça, pela qual nos fez agradáveis a si no Amado” (Efésios 1:3-6). Nessa passagem, o repetido “nós” mostra a participação que todos os santos têm em sua eleição eterna em Cristo. Com relação ao chamado eficaz, o apóstolo usa a palavra “nós” em Romanos 9:24. Assim, em conexão com a salvação (observe o “nos” em 2 Timóteo 1:9) e glorificação (cf. Efésios 2:7; Romanos 8:18). Seja cuidadosamente observado que, enquanto esta repetição de “nós” nas Epístolas inclui toda a eleição da graça, ainda assim, isso exclui todos os outros e não pode com qualquer verdade ou decoro ser aplicado a qualquer um, senão aos chamados de Deus em Cristo Jesus.

 

A seguir, consideraremos em que esta manifestação aberta do amor de Deus consiste, nomeadamente, na encarnação e na missão de Cristo. Na mente infinita de Jeová, todo o Seu amor sobre as pessoas dos eleitos foi concebido desde a eternidade, com as diversas formas e os meios pelos quais o mesmo deve ser apresentado e feito conhecido em uma condição de tempo, para que a Igreja possa mais claramente obtê-lo. Como aprouve ao Senhor, não obstante o Seu amor eterno por Seu povo em Cristo, o querer a sua queda de um estado de criatura pura para um estado de depravação, assim também a Sua redenção do mesmo foi predeterminada. Uma transação da aliança eterna ocorreu entre o Pai e o Filho, no qual este último comprometeu-Se a assumir a natureza humana e agir como seu Fiador e Redentor. Sua encarnação, vida e morte foram estabelecidos como os meios da salvação deles. Isto tornou-se o tema da profecia do Antigo Testamento, a saber, que Cristo deveria ser manifestado na carne, com o que Ele deveria fazer e sofrer, a fim de tirar o pecado e trazer a justiça eterna.

 

Aquilo que foi revelado nas Escrituras pelos profetas a respeito de Cristo tornou totalmente evidente que era da parte de Deus, que tudo isso foi originalmente o conselho-transação no Céu antes do tempo começar, o fruto da consulta entre Jeová e o Cristo, do qual o Espírito eterno foi testemunha, Ele comunica o mesmo para os homens santos, que falaram ao serem movidos por Ele, porque Ele penetra todas as coisas, mesmo as profundezas de Deus. Na pessoa do Emanuel, Deus conosco, pela Sua evidente encarnação e a salvação que Ele operou e mui honradamente consumou, todo o amor da Santíssima Trindade se reflete mais gloriosamente. Deus brilhou em toda a grandeza e majestade do Seu amor por Sua Igreja, em Cristo e, portanto, exibiu Sua eterna boa vontade para com eles. Ele tanto os amou a ponto de dar o Seu Filho unigênito. Isto está claramente estabelecido em Sua Palavra, de modo que é totalmente suficiente para manter um senso vívido do mesmo em nossas mentes, como o Espírito se agradar em manter-nos crentes neste conhecimento em nossos corações.

 

Uma breve palavra sobre a finalidade desta manifestação do amor de Deus, como mencionado em 1 João 4:9, é “para que por ele vivamos”. “É através da encarnação e da mediação do Senhor Jesus Cristo que nós vivemos por meio dEle uma vida de justificação, paz, perdão, aceitação e acesso a Deus. Os eleitos de Deus em seu estado caído estavam totalmente em pecado, corrupção, miséria e morte; nessas circunstâncias Deus recomendou o Seu amor em direção a eles, na medida em que, enquanto eles ainda eram pecadores, Cristo morreu por eles. Ele por Sua morte removeu os pecados deles. Ele os amou e os lavou de seus pecados em Seu próprio sangue, e os trouxe para perto de Deus, de modo que aqui o amor eterno do Pai por eles é mais claramente evidenciado” (S. E. Pierce, de quem o amável sermão em 1 João 4:9 nós aqui de bom grado reconhecemos nossa dívida).

 

Um paralelo mais marcante com a Escritura, nós vemos sobre a declaração feita pelo Senhor ao Seu Pai em João 17:6: “Manifestei o teu nome aos homens que do mundo me deste; eram teus, e tu mos deste”. A manifestação do nome de Deus, ou o mistério secreto de Sua mente e vontade, só poderia ser realizada por Cristo, que estava no seio do Pai desde a eternidade, que Se encarnou, a fim de tornar visível Aquele que é invisível. Era o ofício e obra do Messias desvelar a “sabedoria oculta” (1 Coríntios 2:7), desbloquear o santo dos santos, declarar o que havia sido mantido em segredo desde a fundação do mundo; e aqui em João 17, Ele declara que Ele havia fielmente cumprido isso. Mas observe bem como o “conosco” de 1 João 4:9 é aqui definido como “homens que do mundo me deste”. Sim, foi para eles que Cristo manifestou o inefável nome de Deus.

 

Em João 17, Cristo manifestou todo o coração de Deus, tornando conhecido o Seu amor eterno, como nunca fora revelado antes. Ali, Ele expôs a boa vontade que o Pai concedeu aos eleitos em Cristo Jesus, de forma suficiente para encher a mente espiritual com conhecimento e compreensão, mesmo tal como foi projetado para conduzir a uma completa fé e confiança no Senhor para todas as bênçãos desta vida e das que estão por vir. E quem poderia dar essa informação, senão Ele mesmo? Ele desceu do céu com esta expressa finalidade e propósito. Ele foi o grande Profeta sobre a Casa de Deus. Ele tinha a chave de todo o tesouro da graça e glória. NEle, pessoalmente, estão “escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência” (Colossense 2:3). Pelo “Nome” de Deus entende-se tudo o que Ele é, em uma forma manifesta e comunicativa. É o Seu amor pela Igreja, Sua relação de aliança com o Seu povo em Cristo, o eterno deleite do Seu coração por eles, o que Cristo Se agradou em revelar tão plenamente.

 

É pelo Senhor admitir-nos ao conhecimento de Si mesmo, que somos levados a conhecer a nossa eleição de Deus. A verdadeira apreensão disto é um fundamento de alegria, por isso Cristo disse: “alegrai-vos antes por estarem os vossos nomes escritos nos céus” (Lucas 10:20). Nós não podemos saber que somos os amados de Deus, a não ser por crer em Seu Filho, de modo que este é o fruto do conhecimento espiritual. Cristo tem a chave do conhecimento e abre a porta da fé, de modo que nós O recebemos como revelado na Palavra. É Ele, que pelo Seu Espírito, tem o prazer de derramar o amor de Deus no coração. Ele concede o Espírito para fazer uma revelação da aliança eterna para nossas mentes, e, assim, somos levados a conhecer e sentir o amor de Deus como sendo a fonte e manancial de toda graça e consolação eterna. Como Jeová fez toda a Sua bondade passar diante de Moisés, e mostrou-lhe a Sua glória (Êxodo 33:19), assim Ele nos admite ao conhecimento de Si mesmo como “O Senhor, o Senhor Deus, misericordioso e piedoso” [Êxodo 34:6].

 

 

2 – Por um chamado sobrenatural. Nós antecipamos um pouco disso nos dois últimos parágrafos, mas devemos agora considera-lo mais distintamente. O chamado de um santo é o primeiro fruto imediato a irromper do propósito da eletiva graça de Deus. “O rio corria sob a terra desde a eternidade e elevava-se e borbulhava ali primeiramente, e em seguida, flui acima do solo até a eternidade. Esta é a diferença inicial e grandiosa que Deus coloca entre homem e homem, a primeira marca que Ele coloca sobre Suas ovelhas, pelo que Ele as possui e visivelmente significa que elas são Suas” (Thomas Goodwin). “E aos que predestinou a estes também chamou” (Romanos 8:30). O benefício original foi o fato dEle ter nos predestinado, e a próxima bênção é o Seu chamar-nos. A mesma ordem é observada em “Que nos salvou, e chamou… segundo o seu próprio propósito e graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos dos séculos” (2 Timóteo 1:9). O propósito eterno se torna evidente no tempo por meio de um chamado Divino.

 

Outra Escritura que apresenta esta mesma verdade são aquelas palavras bem conhecidas “procurai fazer cada vez mais firme a vossa vocação e eleição” (2 Pedro 1:10). Não é a nossa fé, nem a nossa justificação, que é aqui especificamente apontada, mas a nossa “vocação”, a que nós somos ordenados a “fazer firme”, pois assim a nossa eleição será atestada a nós, ou seja, confirmada à nossa fé. Não é que a eleição não seja firme sem isso, pois “o fundamento de Deus [Seu decreto eterno] fica firme” (2 Timóteo 2:19) antes de nossa vocação; mas aqui isso é certificado para nossa fé. Assim, os apóstolos falam uma língua uniforme, e, portanto, ao escreverem aos crentes mostram que os dois termos são coextensivos. Assim, Paulo “À igreja de Deus que está em Corinto… chamados santos” — santos pelo chamado (1 Coríntios 1:2). Pedro “A vossa co-eleita em babilônia” (1 Pedro 5:13). Os termos são equivalentes, os apóstolos não reconhecendo nenhum outro verdadeiro “chamado” senão o que era a prova imediata da eleição, sendo coextensivos às mesmas pessoas.

 

É realmente abençoado observar — quão graciosamente o Espírito condescendeu em inclinar-Se e ajudar a nossa enfermidade — quão frequentemente esta preciosa verdade é repetida na Palavra, de modo que não pode haver espaço para qualquer dúvida sobre a questão. “Há muito que o Senhor me apareceu, dizendo: Porquanto com amor eterno te amei, por isso com benignidade te atraí” (Jeremias 31:3). Duas coisas são aqui afirmadas, e a relação íntima e inseparável entre elas é enfaticamente atestada. Primeiro, o amor eterno de Deus pelos Seus; segundo, o efeito e a demonstração do mesmo. Pelo chamado eficaz do Espírito os eleitos são trazidos do seu estado natural de alienação e atraídos para Deus em Cristo. Esse chamado ou atração sobrenatural é aqui expressamente atribuído à “benignidade” do Senhor, e o vínculo entre este e o Seu amor eterno por eles é assinalado em “por isso”. Assim, é por meio de Deus nos reconciliar conSigo mesmo que obtemos a prova da Sua eterna boa vontade em relação a nós.

 

O eterno amor e graça do Deus Triuno por Seus escolhidos são evidenciados para eles neste mundo por meio do fruto ou efeitos imediatos dos mesmos: o que era secreto no coração de Jeová é gradualmente trazido à manifestação aberta através das Suas próprias obras maravilhosas em relação à igreja. Não se pode esperar que o mundo dos ímpios tenha qualquer participação nestas operações, mas para os regenerados elas devem ser uma fonte de prazer inesgotável e sempre crescente. Como dissemos anteriormente, o amor eletivo de Deus foi evidenciado, em primeiro lugar, na encarnação e na missão de Seu Filho amado, que foi ordenado para realizar a redenção de Seu povo que havia caído em Adão. Em segundo lugar, o propósito eterno da graça de Deus se revela no e através de um chamado Divino que os eleitos recebem, enquanto estão aqui na terra. Nós devemos agora considerar mais definitivamente o que este chamado Divino realmente é.

 

Em primeiro lugar, devemos distinguir cuidadosamente entre este chamado que é recebido pelos eleitos e aquele que vem a todos os que estão sob o anúncio da Palavra: um é particular, o outro geral. Todo aquele que vem sob o som da Palavra, sim, todos os que a têm em suas mãos em forma escrita, são chamados por Deus a abandonar seus pecados e buscar a Sua misericórdia em Cristo. Este chamado geral é feito aos eleitos e aos não-eleitos da mesma forma, mas, infelizmente, ele é recusado por todos eles. Isso é descrito em passagens como: “A vós, ó homens, clamo; e a minha voz se dirige aos filhos dos homens” (Provérbios 8:4), “Muitos são chamados, mas poucos escolhidos” (Mateus 20:16). Sua rejeição do mesmo é descrita assim: “Entretanto, porque eu clamei e recusastes; e estendi a minha mão e não houve quem desse atenção” (Provérbios 1:24), “E todos à uma começaram a escusar-se” (Lucas 14:18). Mas é em relação ao chamado especial e particular, do qual somente os eleitos são os sujeitos, que nos interessamos.

 

Em segundo lugar, então, este chamado dos eleitos é um chamado individual e interior, não caindo sobre o ouvido exterior, mas penetrando aos seus próprios corações. É a Palavra do poder de Deus, atingindo-os em seu estado natural de morte espiritual e vivificando-os em novidade de vida. É o Bom Pastor buscando e salvando a ovelha perdida e restaurando-a ao Seu Pai, como está escrito: “A este o porteiro abre, e as ovelhas ouvem a sua voz, e chama pelo nome às suas ovelhas, e as traz para fora. E, quando tira para fora as suas ovelhas, vai adiante delas, e as ovelhas o seguem, porque conhecem a sua voz” (João 10:3-4). Do lado legal das coisas, a salvação dos eleitos de Deus tornou-se um fato consumado quando Cristo morreu e ressuscitou, mas não até que o Espírito do Filho de Deus seja enviado aos seus corações — “pelo qual clamamos: Aba, Pai” — isso é bem realizado em sua experiência real. É pelo Espírito somente que nos é dado um conhecimento salvífico da Verdade, a somos guiados por Ele em uma apreensão correta do mesmo: O Espírito, então, ilumina sobre o nosso entendimento de forma que somos capazes de ter o conhecimento espiritual de Deus e de Seu Filho Jesus Cristo.

 

Em terceiro lugar, então, é um chamado eficaz, sendo realizado pelas operações sobrenaturais do Espírito. Isso é bem igualmente verdadeiro sobre a nova criação quanto sobre a velha: “Porque falou, e foi feito; mandou, e logo apareceu” (Salmos 33:9). Em tais passagens como: “O teu povo será mui voluntário no dia do teu poder” (Salmos 110:3), este chamado eficaz é referido. Sua relutância natural para entregarem-se completamente às reivindicações do Senhor é docemente derretida pela comunicação de um enorme senso de graça e do amor de Deus por eles. Mais uma vez: “E todos os teus filhos serão ensinados do Senhor” (Isaías 54:13), e tão ensinados que Ele “nos deu entendimento para que conheçamos ao Verdadeiro” (1 João 5:20). Uma vez mais, este chamado eficaz é Deus cumprindo as promessas da nova aliança: “Porei as minhas leis no seu entendimento, e em seu coração as escreverei; e eu lhes serei por Deus, e eles me serão por povo” (Hebreus 8:10).

 

Teólogos sabiamente chamaram isso de “chamado eficaz” de modo a distingui-lo do geral e exterior que vem a todos os que ouvem o evangelho. Este chamado eficaz não é um convite, mas é a real concessão de vida e luz. É o fruto imediato do maravilhoso e infinito amor de Deus pelas nossas pessoas, quando ainda somos totalmente detestáveis, sim, os sujeitos de nada, senão do que nos torna repulsivos e odiosos (veja Ezequiel 16:4-8!). É nessa ocasião que o Espírito Santo é dado aos eleitos, concedido para bem realizar neles o que Cristo fez por eles. Que seja clara e gratamente reconhecido que o dom do Espírito para nós é um dom tão grande e grandioso como o dom de Cristo por nós. Pelo Espírito habitando em nós, somos santificados e selados para o dia da redenção. Pela habitação do Espírito em nós, nos tornamos os templos do Deus vivo, Sua morada na terra.

 

Não é suficientemente reconhecido que todas as misericórdias do pacto estão na mão do bendito Espírito Santo, cujo ofício e obra é trazer os eleitos para casa, e (pelo chamado efi-caz) a Cristo, e para dar a conhecer e aplicar às suas almas a salvação que o Senhor Jesus consumou e realizou para eles. Ele vem do céu em consequência da expiação e ascensão de Cristo e proclama a salvação do Senhor para os pecadores miseráveis. Ele entra em seus corações pecaminosos e miseráveis e dá a conhecer a salvação de Deus. Ele os coloca, pelo crer na pessoa e obra de Cristo, na posse das coisas que acompanham a salvação, e então Ele se torna um Consolador para eles. Tais pessoas não oram para que o Espírito venha e os regenere, pois eles já o receberam como Espírito doador de vida e santificação. O que agora eles devem fazer é orar por graça para recebê-lO como o Espírito de adoção, para que Ele possa testemunhar com o seu espírito que eles são filhos de Deus.

 

Agora, este chamado eficaz é uma consequência necessária e adequada, e um efeito da eleição eterna de Deus, pois ninguém é o destinatário deste chamado sobrenatural, senão os Seus eleitos. Onde quer que a predestinação para a glória eterna exista em relação a qualquer pessoa, então o chamado eficaz para a fé e santidade infalivelmente a segue. “…por vos ter Deus elegido desde o princípio para a salvação, em santificação do Espírito, e fé da verdade” (2 Tessalonicenses 2:13). Os eleitos são escolhidos para a salvação pela livre e soberana graça de Deus; mas como a salvação é realmente obtida? Como Seus favorecidos são trazidos para a posse pessoal dela? Através da santificação do Espírito e fé da verdade, e não de outra forma. O decreto da eleição de Deus é uma ordenação para a vida eterna e glória, e é evidente pela santidade sendo efetivamente operada em seus objetos pela regeneração e operações santificadoras do Espírito. É assim que o Espírito comunica o que Cristo adquiriu para eles.

 

“Para que também desse a conhecer as riquezas da sua glória nos vasos de misericórdia, que para glória já dantes preparou, os quais somos nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios?” (Romanos 9:23-24). Nos versículos imediatamente anteriores, o apóstolo havia tratado do assunto indescritivelmente solene de como Deus mostra a Sua ira e dá a conhecer o Seu poder em relação aos não-eleitos, mas aqui ele retoma o bendito tema de como Deus desvela as riquezas da Sua glória nos vasos de misericórdia. Isso ocorre pelo chamado eficaz, que é recebido individualmente por Seu povo. Esse chamado é útil para fazer manifesta a graça eterna de Deus para conosco: como Romanos 8:28 o expressa, nós somos “chamados segundo o Seu propósito”; em outras palavras, o Espírito é dado a nós, a fim de cumprir o decreto de Deus, ou para expressar isso de outra maneira, através de Seu chamado eficaz o crente pode olhar para o alto, para o eterno amor de Deus por ele, tanto quanto ele pode observar através de uma fenda na parede o brilho do sol nos céus.

 

Como o amor de Deus, o Pai, é principalmente descrito como o ato da eleição e manifesto pelo fato dEle ter dado o Seu Filho unigênito para ser nossa Cabeça e Mediador, e como o amor de Deus, o Filho, é mais brilhante e resplandecente em Sua encarnação, obediência e entrega de Sua vida por nós, assim o amor de Deus, o Espírito, é demonstrado em Seu revelar, na Palavra, as transações eternas entre o Pai e o Filho, e por iluminar as nossas mentes para um conhecimento verdadeiro, vital e espiritual do Pai e do Filho. É no chamado eficaz que o Espírito se agrada de fazer uma revelação interior e aplicação da salvação de Cristo para a alma, o que é de fato o céu raiando sobre nós, pois através disso os pecadores mortos são vivificados, os corações duros são suavizados, as vontades obstinadas são flexibilizadas, os grandes pecados são abertamente perdoados e a infinita misericórdia é apresentada e magnificada. É nessa ocasião que o Espírito Santo, que é o Senhor e doador de toda a vida espiritual, permite que grandes pecadores conheçam que Deus é amor.

 

Por Seu Espírito, Cristo tem o prazer de derramar o amor de Deus no coração, e por meio do Evangelho Ele manifesta a nós o conhecimento do amor do Pai. Ele concede o Espírito para fazer uma revelação deste às nossas mentes, e, assim, somos levados a conhecer e sentir o amor de Deus como sendo o fundamento de toda a graça e consolação eterna. À medida que o conhecimento de nossa eleição pessoal (obtido através de nosso chamado eficaz) torna evidente para nós que somos íntimos e queridos por Deus, então segue-se que nós percebemos que somos queridos por Cristo. À medida que o Espírito dá-nos um conhecimento do amor do Pai por nós em Seu Filho amado, somos levados a examinar e estudar este maravilhoso assunto da eleição, e quanto mais sabemos sobre ele, mais somos maravilhados com o mesmo. Por este meio, sob a influência do Espírito Santo, somos levados a tais percepções da graça do Senhor Jesus a ponto de encher o nosso coração de santo contentamento e deleite.

 

 

3 – O propósito eterno da graça de Deus para conosco é manifesto por uma mudança sobrenatural realizada em nós. Estritamente falando, isso não é um ramo distinto do nosso assunto, pois o novo nascimento é um e o mesmo que o nosso chamado eficaz; no entanto, por uma questão de clareza e para resolver essas dúvidas a que os regenerados estão sujeitos, julgamos por bem considerar os dois separadamente. Quando uma alma sincera aprende que há tanto um chamado geral e exterior quanto um chamado particular e interior, ela fica profundamente preocupada para saber qual deles ela recebeu, ou melhor, se ela foi favorecida com o último, pois é apenas o chamado sobrenatural do Espírito que é eficaz para a salvação. É neste ponto que muitos que fazem parte do querido povo de Deus são tão profundamente perplexos e exercitados, a saber, verificar e certificar-se de que eles já passaram da morte para a vida e foram levados a uma união vital com Cristo.

 

Na tentativa de esclarecer este ponto, o escritor tem de se proteger contra o muito infringir do próximo ramo de nosso assunto, isto é, o conhecimento da nossa eleição. No momento estamos tratando da manifestação da mesma, em especial no que se vê nessa mudança sobrenatural que se manifestou em Seus sujeitos no momento em que receberam o chamado eficaz de Deus. Vamos, portanto, contentar-nos aqui com o esforço para descrever algumas das principais características desta mudança sobrenatural. Essa mudança sobrenatural é descrita em termos gerais: “se alguém está em Cristo, nova criatura é” (2 Coríntios 5:17). Outra passagem tratando do mesmo: “Visto como o seu divino poder [Ele] nos deu tudo o que diz respeito à vida e piedade, pelo conhecimento daquele que nos chamou pela sua glória e virtude” (2 Pedro 1:3). Fica logo evidente que este último versículo é muito objetivo, pois ele se refere especificamente ao nosso chamado eficaz e atribui o mesmo ao Divino poder.

 

Esta mudança sobrenatural consiste, então, em sermos transformados em novas criaturas em Cristo Jesus. Aquele que é objeto desta obra do Espírito, no novo nascimento, embora, seja apenas um bebê fraco e pequeno espiritualmente falando, é, no entanto, “uma nova criatura”. Uma nova vida foi comunicada, novos princípios comunicados a partir do qual novas ações se seguem. É então que “todos nós recebemos também da sua [de Cristo] plenitude, e graça por graça” (João 1:16), ou seja, toda a graça espiritual da Cabeça é transmitida aos Seus membros; toda a obra da graça de Cristo no Cristão é agora completada em suas partes por “graça sobre graça”, assim como uma criança recebe membro sobre membro de seus pais. No nosso chamado eficaz, o poder Divino nos dá “tudo o que diz respeito à vida e à piedade”; o que eles compreendem consideraremos a seguir, brevemente.

 

Em primeiro lugar, a compreensão espiritual. O homem natural não pode perceber, nem receber as coisas espirituais de uma forma espiritual (embora ele possa refletir sobre elas de uma forma natural e intelectual), porque ele é desprovido de discernimento espiritual (1 Coríntios 2:14). Mas, quando somos chamados eficazmente Deus nos dá “entendimento para que conheçamos ao Verdadeiro” [1 João 5:20]. Disso, 2 Pedro 1:3 declara que os todas as coisas relativas à vida e à piedade nos são dadas “pelo conhecimento daquele que nos chamou”. A primeira luz que a alma recebe, quando o Espírito entra em seu coração é uma nova visão de Deus, e nessa luz, nós começamos a ver o que é o pecado, como ele é em si mesmo contra um Deus santo, e, assim, percebemos o que a santidade é. É este novo e espiritual conhecimento do próprio Deus que constitui o âmago e a essência da bênção e da obra da nova aliança da graça: “E não ensinará cada um a seu próximo, nem cada um ao seu irmão, dizendo: Conhece o Senhor; porque todos me conhecerão, desde o menor deles até ao maior” (Hebreus 8:11). Este conhecimento espiritual de Deus, então, é a semente e a raiz da mudança espiritual que acompanha o chamado eficaz.

 

Em segundo lugar, um princípio de santidade é operado na alma. Deus escolheu o Seu povo em Cristo de forma que eles devem ser “santos” (Efésios 1:4), e, portanto, Ele os chama “com uma santa vocação” (2 Timóteo 1:9). Assim, nós somos feitos “idôneos para participar da herança dos santos na luz” (Colossenses 1:12). O nosso título para o céu repousa sobre o que Cristo fez por nós, mas a nossa aptidão para o céu consiste na imagem de Cristo que está sendo formada em nós. Este princípio de santidade é plantado no coração pelo Espírito Santo, e é chamada de “a nova natureza” por alguns escritores. Evidencia-se pela ponderação da mente uma e outra vez que Deus é um Deus santo, cujos olhos puros não podem suportar a iniquidade, e pelo apegar-se do coração a Ele sob esta apreensão dEle. Aqui, então, está o teste pelo qual devemos examinar e medir a nós mesmos: eu, tanto em meu coração quanto em minha vida me humilho e sou levado a lamentar o que em mim é contrário à santidade divina? Aprovo todos os mandamentos de Deus como sendo santos e bons, embora possam ser contrários aos meus desejos? E o meu desejo constante é que Deus me faça, cada vez mais, um participante dessa santidade?

 

Em terceiro lugar, um amor por objetos e coisas espirituais. Não apenas um “novo coração” é comunicado a nós através de nosso chamado eficaz, mas há tal Divina renovação de nossa vontade, que ela agora é habilitada a escolher o que é espiritualmente bom, uma capacidade que o homem natural não tem em sua condição caída. É a conversão do coração e o anelo por objetos santos que conduz à vontade a desejá-los. Quando o amor de Deus é derramado em nossos corações não podemos deixar de amá-lO e de amar tudo o que Ele ama. Um amor verdadeiro e sincero por Deus é o fruto e efeito da sua vocação eficaz: as duas coisas são inseparáveis: “daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito” (Romanos 8:28). Infelizmente, os nossos desejos naturais ainda anseiam o que é profano, no entanto, no coração renovado há um princípio que se deleita em e procura pelo que é puro e santo: “Nós sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos” (1 João 3:14). Você não encontra (misturado com outras obras em você) verdadeiros impulsos de amor em relação ao próprio Deus?

 

Em quarto lugar, um princípio espiritual de fé. Fé natural é suficiente para objetos naturais, mas os objetos espirituais e sobrenaturais exigem uma fé espiritual e sobrenatural. Essa fé espiritual é “o dom de Deus” (Efésios 2:8), operada no regenerado pelo “poder de Deus” (Colossenses 2:12). Esta fé é o efeito e acompanhamento do nosso chamado eficaz: “com benignidade te atraí” (Jeremias 31:3) significa, em primeiro lugar, que o coração é atraído para o Senhor, de forma que ele repousa sobre Suas promessas, repousa em Seu amor e responde à Sua voz. “Pela fé Abraão, sendo chamado, obedeceu, indo para um lugar que havia de receber por herança; e saiu, sem saber para onde ia” (Hebreus 11:8), as duas coisas são inseparáveis, a fé responde ao chamado de Deus. Por isso é que lemos sobre “a fé dos eleitos de Deus” (Tito 1:1), o que difere radicalmente da “fé” dos religiosos formais e entusiastas extravagantes. Em primeiro lugar, porque esse é um dom divino e não a obra de um princípio natural. Em segundo lugar, porque ele recebe com simplicidade semelhante à de criança tudo o que é afirmado na Palavra, sem tergiversar diante de “dificuldades” encontradas na mesma. Em terceiro lugar, porque o seu possuidor percebe que só Deus pode sustentar e manter a fé em sua alma, pois não está no poder da criatura exercitá-la ou aumentá-la.

 

Em conclusão, destacamos que esta mudança sobrenatural operada nos eleitos em seu chamado eficaz, por este efetuar neles uma compreensão espiritual para que eles conheçam a Deus, a comunicação a eles de um princípio de santidade, de amor e de fé, são o fundamento de todas as atuações da graça que seguem. Toda atuação da graça, até o fim da vida do crente, evidencia esta primeira obra do chamado eficaz para ser são e salvo. Na regeneração, Deus dota a alma com todos os princípios e sementes de todas as graças, e a vida futura do Cristão, e seu crescimento na graça (através do conflito entre a “carne” e “Espírito”) é apenas um chamado a colocá-los em operação e manifestação.

 

Trataremos agora sobre como Deus faz conhecido no tempo o efeito da graça que Ele formou sobre a Igreja na eternidade passada. O amor eterno de Deus por Seu povo escolhido é desvelado em uma variedade de formas e meios, o principal deles sendo os dons inestimáveis de Seu Filho por eles e de Seu Espírito neles. Assim, temos até agora permanecido acima, primeiro, a encarnação e a missão de Cristo como a principal demonstração [da afeição] do coração do Pai para como os Seus próprios, pois enquanto a glorificação da Trindade era Seu desígnio principal nisso, ainda assim, inseparavelmente conectado com o mesmo estava a bênção de Seus santos. Em segundo lugar, o gracioso propósito de Deus manifesta-se pela comunicação do Espírito para os eleitos, segundo a que são feitos os sujeitos de um chamado sobrenatural. Em terceiro lugar, isso é ainda mais evidentemente realizado pela mudança sobrenatural operada neles, pela regeneração e santificação do Espírito.

 

 

4 – Pela preservação Divina. “E o Deus de toda a graça, que em Cristo Jesus nos chamou à sua eterna glória, depois de havemos padecido um pouco, ele mesmo vos aperfeiçoe, confirme, fortifique e estabeleça” (1 Pedro 5:10). Este versículo apresenta a maravilhosa e poderosa graça de Deus dispensada aos Seus eleitos em efetivamente chamá-los, em preservá-los da tentação e do pecado, em fortalece-los e habilita-los a perseverar até o fim, e — não obstante toda a oposição da carne, do mundo e do diabo — trazê-los em segurança, por fim, até a glória eterna; pois, como Romanos 8:30 declara: “E aos que predestinou a estes também chamou; e aos que chamou a estes também justificou; e aos que justificou a estes também glorificou”. Mais uma vez extrairemos livremente do mais excelente dos escritos do Puritano Thomas Goodwin, em primeiro lugar, porque suas obras não são impressas atualmente e são desconhecidas para a nossa geração, e segundo porque temos recebido pessoalmente tanta ajuda daí que queremos compartilhar o mesmo com os nossos leitores.

 

Deve ser devidamente notado que, no contexto imediato (1 Pedro 5:8) o Diabo é retratado em todo o seu horror: como nosso “adversário”, pela malícia; comparado a um “leão”, pela força; a um “leão que ruge” pelo pavor; descrito como “andando em derredor”, pela diligência incansável, “buscando a quem possa tragar” a menos que Deus evite. Agora observe o bem-aventurado e consolador contraste: “Mas Deus”, o Todo-Poderoso, o Autossuficiente e Todo-suficiente Único “Deus de toda graça”: quão reconfortante é destacar este atributo quando temos que lidar com Satanás no ponto da tentação. Se o Deus de graça é por nós, quem será contra nós? Quando Paulo estava sob tentação um mensageiro (ou anjo) de Satanás sendo enviado para lhe esbofetear, o que foi que Deus imediatamente colocou diante dele para alívio? Isso: “A minha graça te basta” (2 Coríntios 12:9); a graça no coração de Deus em direção a ele e a graça operando em seu próprio coração, ambas o ajudam efetivamente.

 

Mas há algo ainda mais precioso aqui, em 1 Pedro 5:10: “O Deus de toda graça”, que faz referência primeiramente às abundantes riquezas da graça que estão em Sua natureza, em seguida, aos propósitos benevolentes que Ele tem pelos Seus próprios e, em seguida, aos Seus graciosos lidares com eles. A graça em Sua natureza é a fonte, a graça de Seu propósito ou conselhos é o manancial, e a graça em Suas dispensações ou lidares conosco são os córregos. Deus é um Deus todo-misericordioso em Si mesmo, assim como Ele é o Todo-Poderoso, o qual é um atributo essencial. Há um oceano ilimitado de graça em Si mesmo para nutrir todos os fluxos em que os Seus propósitos e desígnios de graça devem comunicar adiante. Nosso consolo a partir daqui é que toda a graça que existe na natureza de Deus está na promessa de Ele ser o “Deus de toda graça” para a Sua Igreja, declarado estar tão envolvido como o suprir-lhes dela, sim, ao extremo das necessidades dessas riquezas, como as suas dificuldades (faltas) requererão.

 

Deus não é assim conhecido por Seu povo somente na era do Novo Testamento. Davi, que era o maior sujeito, bem como adorador desta graça que encontramos no Antigo Testamento, apreendeu e reconheceu a mesma. “[…] Segundo o teu coração, fizeste toda esta grandeza, para fazer notória todas estas grandes coisas” (1 Crônicas 17:19). E observe o que se segue imediatamente, “Senhor, ninguém há como tu, e não há Deus fora de ti”, ou seja, Tu és o Deus de toda a graça, pois esta era uma questão de graça, de elevada graça que Davi está ali exaltando, ou seja, a aliança da graça de Deus com ele em Cristo, exatamente revelada a ele. “Que mais te dirá Davi?” (v. 18); tal favor divino está além dele; assim como Paulo em Romanos 8:31, “Que diremos, pois, a estas coisas?”. Quando Deus perdoa, Ele o faz à maneira de um grande Deus, cheio de toda a graça: Ele “grandioso é em perdoar” (Isaías 55:7), e não de acordo com nossos pensamentos, diz Ele (v. 8), mas segundo o Seu próprio.

 

A isso os antigos teólogos referiam-se quando falavam que a proposital graça de Deus era o oceano dela em Sua própria natureza, do qual brotam aqueles propósitos benéficos que Ele tem em direção ao Seu povo, desígnios que o profeta descreveu como “pensamentos de paz” (Jeremias 29:11), que Ele teve sobre eles ou que Ele “pensa em direção a” eles. Seria impossível falar de todos esses pensamentos, pois, como Davi declara: “Muitas são, Senhor meu Deus, as maravilhas que tens operado para conosco, e os teus pensamentos não se podem contar diante de ti; se eu os quisera anunciar, e deles falar, são mais do que se podem contar” (Salmo 40:5). Devemos, então, resumi-los e nos alongar naqueles particulares que servem diretamente à questão diante de nós, ou seja, a nossa preservação, ou Deus nos transportando com segurança através de todas as tentações para a glória eterna.

 

1 Pedro 5:10 manifestamente fala sobre a proposital graça de Deus, aquela graça que estava em Seu coração em relação ao Seu povo antes que Ele os chame, a partir do que, de fato, este chamado procede e o que O leva a isso, como é expressamente afirmado em 2 Timóteo 1:9. O primeiro ato de Sua graça proposital estava em Seu escolher-nos, Seu destacar aquelas pessoas a quem Ele designou para ser um Deus de graça. A escolha de suas pessoas é, portanto, denominada “a eleição da graça” (Romanos 11:5), sendo este o ato fundamental da graça, sobre o qual todos os outros são construídos. Ser um Deus de graça para a Sua Igreja é amar seus membros simplesmente porque Ele escolheu ama-los, pois a graça é a gratuidade do amor. “Recebe-nos graciosamente” é a oração da Igreja (Oséias 14:2); “Eu voluntariamente os amarei” (v. 4) é a resposta do Senhor. A graça divina e os méritos humanos são tão distantes quanto os polos: como Romanos 11:6 mostra, um mutuamente exclui o outro.

 

Deus ser o Deus de toda graça para o Seu povo é Ele resolver amá-los, e isso para sempre; ser imutável em Seu amor e nunca ter o coração afastado deles. Isto é claramente indicado na linguagem de 1 Pedro 5:10, pois Ele “nos chamou para a sua glória eterna.” Não é simplesmente que Ele nos chamou para a Sua graça ou favor, mas para a glória, e essa, “glória eterna”, ou seja, pelo chamado eficaz Ele nos apropria de todo e pleno direito disso para sempre. O que isso pode significar, senão que Deus nos chamou para tal graça e amor, como Ele fez e resolve ser o Deus de toda a graça para conosco pela eternidade, portanto, nos chama para além do arrependimento (Romanos 11:29). Isto é claramente confirmado pelo que se segue imediatamente: “depois de havemos padecido um pouco, ele mesmo vos aperfeiçoe, confirme, fortifique e estabeleça”.

 

Esta graça, assim, fixada na vontade Divina é o mais soberano e predominante princípio no coração de Deus, acima de todas as outras coisas que Ele quer, de forma a realizar eficazmente e efetuar a Sua resolução de livre graça. Graça, como é o mais resoluto, assim é o princípio mais absoluto no coração de Deus; pois a ela pertence o domínio. O que mais significa “trono da graça” (Hebreus 4:16)? Por que outra razão é a graça dita “reinasse … para a vida eterna” (Romanos 5:21)? A mesma coisa aparece no contexto de 1 Pedro 5:10: “Humilhai-vos [ou submetam-se], pois, debaixo da potente mão de Deus, para que a seu tempo vos exalte” (v. 6); Ele “tem cuidado de vós” (v. 7); tudo isso é conduzido ao “Deus de toda graça” no versículo 10; que é seguido por “a ele seja a glória e o poderio para todo o sempre. Amém” (v. 11), ou seja, a ele como “o Deus de toda graça”.

 

Mas é como o Deus de toda a graça por meio da execução ou desempenho que agora temos que contemplá-lO em Suas dispensações graciosas de todos os tipos, que são os efeitos do oceano de graça em Sua natureza e o propósito da graça em Seu coração. Nós podemos voltar, por um momento, para 1 Pedro 5:5: “Deus […] dá graça aos humildes”, que se refere à Sua concessão real de graça. De modo semelhante, Tiago declara: “Ele dá maior graça” (4:6), onde ele cita a mesma passagem, como Pedro. Em Tiago isso é falado em referência a subjugar as concupiscências de Seu povo, particularmente cobiça segundo a inveja. Verdadeiramente isso é graça de fato, que quando a concupiscência se enfurece, a graça de Deus deve movê-lO a dar mais graça pela qual Ele a sujeita; aos que se humilham por suas paixões, Ele dá maior graça.

 

Ajudar-nos-á a uma melhor compreensão deste título Divino “o Deus de toda graça”, se o compararmos com o “Deus de toda consolação” em 2 Coríntios 1:3. Agora, isso é falado em relação aos efeitos do consolo: como o salmista diz: “Tu és bom e fazes bem” [Salmos 119: 68]; assim, imediatamente após Ele ser chamado como “o Deus de toda consolação” segue-se, “que nos consola em toda a nossa tribulação”. Ele é o “Deus de toda consolação” em relação a todos os tipos de angústias, que os santos em qualquer tempo têm; da mesma maneira, Ele é o Deus de toda graça em relação aos seus efeitos graciosos. No entanto, isso pode ser adicionado — para a devida magnificação da graça — que os dois não são proporcionais, pois as dispensações de Sua graça são mais amplas do que as dispensações de Seu consolo. Deus muitas vezes dá a graça onde Ele não confere consolo, a fim de que Ele seja o Deus de toda a graça em uma extensão maior do que Ele é Deus de toda consolação.

 

Agora, já que há uma plenitude, um oceano, toda a graça dispensatória a ser dada por Deus, o que se segue necessariamente? Isto, em primeiro lugar, que não há tentação que ocorra ou possa ocorrer a um santo que está sob o domínio da livre graça, a não ser que Deus tenha uma graça preparada para ser aplicada quando sua hora chegar. Isso implica claramente que Deus tem uma graça apropriada e adaptada quando cada necessidade e ocasião surgirem. Não há dor no coração, a não ser que Ele tenha um unguento pronto para isso, para ser posto sobre ela no momento devido. A própria palavra “graça” é relativa à necessidade e tentação, e por isso “toda a graça” deve ser relacionada a todos ou quaisquer necessidades de qualquer natureza. Se houvesse qualquer falta nos grandes sujeitos da livre graça de que lhes seja possível, e Deus não tivesse uma graça especial para isso, Ele não seria o Deus de toda graça. Mas nunca se pode dizer que a miséria de Seu povo é mais extensa do que o alcance da graça de Deus.

 

Como Deus tem graça para todas as múltiplas necessidades de Seu povo, de modo que Ele é o Deus de toda graça em conceder ajuda conforme as ocasiões deles requerem, para os tais, a temporada de graça deve ser demonstrada. “Cheguemos, pois, com confiança ao trono da graça, para que possamos alcançar misericórdia e achar graça, a fim de sermos ajudados em tempo oportuno” (Hebreus 4:16). Então, mais uma vez, “para que execute o juízo do seu servo e o juízo do seu povo Israel, a cada qual no seu dia” (1 Reis 8:59), o que deve ser visto como um tipo da intercessão do antítipo Salomão, o Príncipe da paz. Assim, o favor de Deus se manifesta ao Seu povo em todos os momentos de necessidade e em todos os tipos de formas. Se Deus falhasse com o Seu povo em qualquer época e não os ajudasse em qualquer necessidade, então Ele não seria o Deus de toda a graça, pois é a parte principal de ser gracioso o aliviar em tempo de maior necessidade.

 

O fato de que Ele é o Deus de toda a graça no que diz respeito à dispensação da mesma, demonstra que Ele não leva este título sobre Si potencialmente, mas que Ele é assim em verdade, é simplesmente que Ele tem em Si mesmo a graça suficiente para atender toda a variada necessidade de Seu povo, mas também que Ele realmente o efetua. Para casos de todos os tipos, Deus dá prova completa disso. No dia vindouro, Ele terá a honra de ser não apenas o Deus de toda graça, potencialmente, mas será realmente assim no desempenho disso, pois será visto, então, que Ele bem realizou totalmente essa palavra “Não veio sobre vós tentação, senão humana; mas fiel é Deus, que não vos deixará tentar acima do que podeis, antes com a tentação dará também o escape, para que a possais suportar” (1 Coríntios 10:13). A maior e mais aguçada necessidade dos Cristãos advém de seu pecado interior, ainda assim, ampla provisão é feita aqui, também, pois “onde o pecado abundou, superabundou a graça” (Romanos 5:20).

Mas, aqueles que foram chamados eficazmente responderão: Ai de mim, os meus pecados, desde a conversão, têm sido maiores e mais densos do que qualquer outro que eu cometi antes. Resposta: em primeiro lugar, você pode ter sido muito jovem quando convertido primeiramente: desde então, como você tem se desenvolvido de acordo com o curso da natureza, a cobiça também tem crescido, e você está mais consciente delas do que na mocidade. Em segundo lugar, as suas circunstâncias podem ser responsáveis por elas, embora não as desculpem. Alguns pecam de forma pior após a conversão do que antes: Jó e Jeremias pecaram mais gravemente posteriormente na vida do que durante os anos anteriores, pois suas tentações cresceram muito maiores. Em terceiro lugar, considere não apenas os seus pecados terríveis, mas os seus arrependimentos sinceros também, seus clamores fervorosos a Deus contra eles, que não foram ignorados por Ele; demonstrando mais uma vez que Ele é “o Deus de toda graça”.

 

Uma outra coisa que se poderia supor obstruir o curso da graça de Deus que começou em nós no chamado eficaz, fazendo com que o Seu coração se desviasse de nós, é o poder do pecado e fúrias no interior do Cristão. Mas, se Ele nos santificou a princípio como o Deus de toda a graça, então certamente isso proporciona um seguro fundamento de confirmação, com o que, não obstante os perigos de nossas corrupções remanescentes pareçam nos ameaçar, Ele certamente preservará a graça em nós, apesar de todas as tentações a que estamos sujeitos. Em sua santificação, Deus colocou na alma do Cristão as sementes de toda graça e disposição graciosa que ele alguma vez possuiu. Ele não é bem capaz de nutrir e preservar este jardim de Sua própria plantação? Ouça a Sua preciosíssima promessa: “Eu, o Senhor, a guardo, e cada momento a regarei; para que ninguém lhe faça dano, de noite e de dia a guardarei” (Isaías 27:3).

“Ou cuidais vós que em vão diz a Escritura: O Espírito que em nós habita tem ciúmes? Antes, ele dá maior graça. Portanto diz: Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes” (Tiago 4:5-6). Isto denota claramente que nossos conflitos mais ferozes e mais perigosos são com algum desejo ou tentação particular, pois tal o exemplo do apóstolo aqui transmite, a concupiscência da inveja. Mas quando uma alma regenerada é consciente desta corrupção e humilha-se sob ela e por ela, lamentando a mesma diante de Deus, isso mostra que a graça contrária está trabalhando dentro dele, opondo-se às atividades daquela luxúria, resistindo àquela inveja (e ao orgulho a partir do qual brota), e por isso é que ele busca por humildade (a graça contrária ao orgulho); e o Senhor como o Deus de toda a graça dá-lhe “mais graça”.

 

Mas uma pobre alma responderá: infelizmente, temo muito que a minha condição seja muito pior agora do que jamais fora anteriormente. Resposta: considere a pior condição em que você já esteve após a conversão, e considere o quadro de seu coração nela e, em seguida, compare-a com o melhor estado de espírito em que você alguma vez já esteve antes da conversão. Honestamente, você se atreve a trocar isso agora, por aquilo que era no passado? Antes da conversão você não tinha o menor pingo de santa afeição em si, você não visava a glória de Deus; mas, desde a conversão você tem (considere todo o curso da sua vida Cristã) tido um olhar para Deus e procura agradar a Deus. É verdade, como Davi, você deve dizer: “Desgarrei-me como [não porco, mas apenas] a ovelha perdida”, ainda assim, você pode acrescentar com ele: “busca o teu servo, pois não me esqueci dos teus mandamentos” (Salmos 119:176).

 

Antes de sua conversão nunca invocaste a Deus sem uma formalidade; mas agora você muitas vezes clama a Ele sinceramente. Antes, você não tinha verdadeiro ódio ao pecado e não buscava a santidade; mas agora busca, embora muito aquém do que deveria. Você fala sobre concupiscências assaltando-o com tentações; sim, porém uma vez você tinha o diabo habitando em si, como em sua própria casa, em paz, e tendo-o cativo segundo sua vontade. Você reclama da frieza no exercício dos deveres espirituais; sim, mas uma vez você esteve totalmente morto. Pode ser que suas graças não estejam brilhando, e ainda assim, há em você anseios por Deus, deseja temer o Seu nome. Há, então, uma criatura espiritual vivendo em você, a qual, como a toupeira subterrânea, está se esforçando em direção ao ar, levantando-se da terra.

 

A prova adicional (em 1 Pedro 5:10) que o Deus de toda a graça conduzirá com segurança ao Céu, através de todos os sofrimentos e as tentações, aqueles a quem Ele chamou, está contida nas palavras “nos chamou para a sua glória eterna”. Embora nós ainda não estejamos na posse real e pleno gozo da mesma, no entanto, Deus já nos investiu com um direito pleno e imprescritível dela. Esta “glória” foi o primeiro de todos os pensamentos e intenções de Deus ao nosso respeito, pois era o fim ou resultado de Seus propósitos graciosos para conosco. Disse o Senhor Jesus: “Não temais, ó pequeno rebanho, porque a vosso Pai agradou dar-vos o reino” (Lucas 12:32), e Ele exclamará no dia vindouro: “Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo” (Mateus 25:34), que se refere em si mesmo ao céu, onde Deus reina como Rei incontestado.

 

Agora o coração de Deus está tão posto sobre esta glória como Sua primeira e última finalidade para o Seu povo que, quando Sua graça eletiva torna-se conhecida em nosso chamado, Ele, então, nos concede o pleno direito à mesma. Embora Ele suspende o dar-nos a plena posse dela por alguns anos, entretanto Ele não suspende o pleno título da mesma, pois a totalidade da salvação é, então, conferida a nós. Um belo (e proposital) tipo disso é encontrado em 1 Samuel 16:18. Aos olhos de seus irmãos, Deus enviou Samuel a Davi, enquanto ele ainda era jovem, e o ungiu rei, investindo-o assim do seguro direito ao reino de Israel, sendo esta unção o penhor e garantia de todo o restante. Mas, por muitos anos a posse do reino de Davi foi adiada e, durante esse tempo, ele sofreu muito nas mãos de Saul; no entanto, Deus milagrosamente o preservou e trouxe-o com segurança para o trono do reino.

 

Mas, observe bem que Deus não somente nos chamou à Sua glória, mas para a “sua eterna glória”, no que está implícito não simplesmente que a glória é eterna como um complemento da mesma, mas que a nossa vocação e propriedade, assim, é para a eternidade daquela glória, bem como para a própria glória. Isto implica em duas coisas. Em primeiro lugar, aquele que é chamado de Deus tem uma vida ou glória espiritual iniciada em sua alma, que é eterna; observe como a imagem de Cristo operada no crente nesta vida é chamada de “glória” em 2 Coríntios 3:18. Esta glória da vida espiritual do Cristão é indestrutível: “quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá” (João 11:25). Em segundo lugar, importa que, quando um homem é chamado, ele é colocado na posse de um direito eterno de glória, e não um direito presente de glória apenas, mas um direito perpétuo; uma dádiva segura, que alcança a eternidade. “Para que, sendo justificados pela sua graça, sejamos feitos herdeiros segundo a esperança da vida eterna” (Tito 3:7).

 

Há ainda uma outra frase em 1 Pedro 5:10, que deve continuar a ser considerada: “Em Jesus Cristo”. Há uma segurança que Jesus Cristo concedida, assim como a do Pai, para confirmar a fé do crente que ele será fortalecido e capacitado a perseverar. Deus é o Deus de toda a graça para nós por Jesus Cristo: todos os Seus atos de graça para conosco são em e por meio dEle. Ele elegeu-nos em primeiro lugar e, em seguida, amou-nos apenas enquanto considerando-nos em Jesus Cristo. Deus, tendo assim estabelecido Cristo como Mediador, ou melhor, como o Fundamento de Sua graça, é uma base segura da continuidade desta para nós. Todos os propósitos de graça foram feitos em Cristo, e todas as Suas promessas são estabelecidas e executadas em e por meio dEle.

 

Há duas Pessoas engajadas na preservação dos santos para a glória: Deus, o Pai e Jesus Cristo. Nós temos visto que esta confirmação fornece à nossa fé os interesses de Deus o Pai para conosco; igualmente pleno e forte é aquele suprido pelo interesse que Jesus Cristo tem para com eles. A realização da nossa segura e firme salvação contra toda a oposição está diretamente fundamentada sobre Ele e relacionada a Ele. A respeito de Jesus Cristo, Deus diz: “Eis que ponho em Sião a pedra principal da esquina, eleita e preciosa; e quem nela crer não será confundido” (1 Pedro 2:6). Nós somos “chamados para serdes de Jesus Cristo” (Romanos 1:6). Temos “a vida eterna, por Cristo Jesus nosso Senhor” (Romanos 6:23). Deus “nos confirma convosco em Cristo” (2 Coríntios 1:21).

 

Pouco espaço nos resta para considerarmos a segurança que uma devida contemplação que a Pessoa de Cristo, a Sua relação conosco, e ofício por nós fornecem à nossa fé, de forma que sejamos divinamente fortalecidos para perseverar até o fim. Assim, apenas alguns detalhes podem ser mencionados. Em primeiro lugar, a Sua obra redentora. Esta é de tal infinito valor que Ele não somente comprou para nós o nosso primeiro chamado para a graça (Romanos 5:2), mas junto com isso, a nossa continuidade nesta graça. Cristo meritoriamente anulou todas as nossas tentações e há uma habilidade nEle mesmo para socorrer-nos e nos firmar até o fim. “O qual se deu a si mesmo por nossos pecados, para nos livrar do presente século mau” (Gálatas 1:4). “O qual se deu a si mesmo por nós para nos remir de toda a iniquidade e purificar para si um povo seu especial, zeloso de boas obras” (Tito 2:14). Enquanto Seu precioso sangue conservar o seu valor infinito na estima de Deus, nenhuma de Suas ovelhas pode perecer.

 

Em segundo lugar, a terna compaixão de Cristo. “Porque naquilo que ele mesmo, sendo tentado, padeceu, pode socorrer aos que são tentados” (Hebreus 2:18). No versículo anterior é declarado que Ele é “misericordioso Sumo Sacerdote”, para apiedar-se de nós, de forma que Ele tem um coração e disposição de ajudar o Seu povo; mas no verso 18 é adicionado que Ele é capaz de assim fazê-lo. E observe, não é afirmado que Ele é capaz em relação ao Seu poder pessoal, como Ele é Deus, mas que há uma possibilidade além e adquirida, dEle como sendo Homem. Ele ter sido feito um homem frágil, sujeito a tentações, e as dolorosas experiências pelas quais Ele passou nos dias de Sua humilhação, atrai o Seu coração à piedade por nós quando estamos em perigo, e por causa dessa ternura adquirida, Ele é capaz de nos socorrer na tentação.

 

Em terceiro lugar, a Sua intercessão. “Porque se nós, sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, muito mais, tendo sido já reconciliados, seremos salvos pela sua vida” (Romanos 5:10), isto é, pela Sua vida por nós no Céu. “Portanto, pode também salvar perfeitamente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles” (Hebreus 7:25). Se, então, tu vens a Deus por meio dEle, a intercessão de Cristo efetivamente protege a tua salvação em extremo. Porque Ele tem te levado em Seu coração, Ele tem te levado em Suas orações. Uma vez que Cristo nos conduz em Suas orações, Ele nunca nos deixará, mas prevalece por nós, qualquer que seja a nossa situação, ou seja no que for que caiamos (1 João 2:1), uma clara prova disso foi fornecida pelo caso de Pedro. Um homem pode ser lançado fora das orações de um santo, como Saul foi lançado fora das de Samuel; mas ninguém jamais foi expulso das orações de Cristo, tendo uma vez estado em Suas orações. Suas orações prevalecerão para impedir-te de cair em tais pecados como os que Deus não perdoará.

 

Em quarto lugar, o interesse de Cristo naquela glória para a qual somos chamados e nossa participação na glória de Cristo, pois elas são uma. “Fiel é Deus, pelo qual fostes chamados para a comunhão de seu Filho Jesus Cristo nosso Senhor” (1 Coríntios 1:9); ou seja, somos participantes das mesmas coisas (em nossa medida) que Ele é participante. “Porque, se fomos plantados juntamente com ele na semelhança da sua morte, também o seremos na da sua ressurreição” (Romanos 6:5). O apóstolo declara que Deus “vos chamou, para alcançardes a glória de nosso Senhor Jesus Cristo” (2 Tessalonicenses 2:14). É para a própria glória de Cristo — a recompensa dessa obra maravilhosa pela qual Ele de forma tão ilustre magnificou o Pai — que o Seu povo é trazido, pois nada menos do que isso satisfaria o coração de Cristo: “Pai, aqueles que me deste quero que, onde eu estiver, também eles estejam comigo, para que vejam a minha glória que me deste” (João 17:24).

 

Aqui, então, é como a eleição secreta de Deus na eternidade passada é manifestada abertamente ao Seu povo neste estado temporal: por meio de um chamado sobrenatural, e por milagrosamente conduzi-los através do mundo, que é tão hostil às suas almas quanto a fornalha da Babilônia era aos corpos dos três hebreus.