Cap. 1: As Sagradas Escrituras | Série de Comentários Expositivos na CFB1689

Algumas confissões começam com a doutrina de Deus (por exemplo: Confissão de Augsburg; Os Trinta e Nove Artigos; Confissão de Fé Francesa; Confissão de Fé Belga) e, assim, assumem a autoridade da Escritura como um de seus artigos doutrinários distintivos. A Segunda Confissão Helvética e a Confissão de Fé de Westminster começam afirmando a Bíblia, a Sagrada Escritura, como a Palavra de Deus e, portanto, a única autoridade para nosso conhecimento de Deus e sua maneira de lidar com os pecadores. A Segunda Confissão de Londres segue esse padrão. Esse método é sábio e edificante, bem como coerentemente racional. Como a igreja é o “coluna e firmeza” da verdade, o conteúdo daquilo que ela proclama e ensina surge da Sagrada Escritura, pois ela é “divinamente inspirada, e proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça” (1 Timóteo 3:15; 2 Timóteo 3:16). Estabelecer a certeza desse fundamento como prolegômeno para uma exposição de doutrinas a serem cridas deve satisfazer a mente e o espírito e dar o tom certo urgência e sobriedade à exposição das outras doutrinas da fé.

Este capítulo começa com uma declaração que não faz parte da Confissão de Fé de Westminster. “A Sagrada Escritura é a única, suficiente, correta e infalível regra de todo conhecimento, fé e obediência salvíficos”. A palavra “única” modifica as três palavras que se seguem, confirmando o princípio da Reforma do sola scriptura. Este princípio nega que os livros os apócrifos sejam autotidade para desenvolver doutrina (como indicado no parágrafo 3). Outrossim, isso elimina a autoridade da igreja como desenvolvida no catolicismo romano, e aponta para o testemunho que a Escritura dá de si mesma de que sua autoridade se deriva da autoridade de Deus (parágrafo 4). O parágrafo 10 encerra esse capítulo com outra forte afirmação acerca da singularidade da autoridade da Escritura. O juiz final de todos os concílios, conpetnete para resolver todas as controvérsias, suficiente para desenvolver todas as doutrinas e para testar todas as opiniões privadas e reivindicações de discernimento espiritual em “em cuja sentença devemos nos firmar, não pode ser outro senão as Sagradas Escrituras anunciadas pelo Espírito; então, de acordo com o que a Escritura anuncia, nossa fé é finalmente decidida” (10). Toda a história da revelação divina através de profetas, poetas, reis e apóstolos foi, finalmente, entregue “completamente por escrito”. Isso faz com que a Escritura seja muito necessária porque “Aqueles antigos modos de Deus revelar a sua vontade ao seu povo” agora cessarão — sola scriptura. Esse compêndio da verdade revelada está contido nos 66 livros do Antigo e do Novo Testamento originalmente escritos em hebraico e grego é dado “por inspiração de Deus” (parágrafo 2).

Tão insistentes na exclusividade da Escritura como autoritativa foram os autores da Confissão de Fé Batista que novamente se afastaram da linguagem da Confissão de Westminster — “ou por boas e necessárias consequências podem ser deduzidas da Escritura” — e a substituíram por, “ou necessariamente contido na Sagrada Escritura”. A declaração confessiona diz o seguinte: “Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a sua própria glória bem como para salvação, fé e vida do homem ou é expressamente declarado ou necessariamente contido na Sagrada Escritura, ao que nada, em qualquer tempo, deve ser acrescentado, seja por novas revelações do Espírito ou por tradições de homens” (6). Ao mesmo tempo, a confissão reconhece que “algumas circunstâncias concernentes ao culto a Deus e ao governo da igreja” devem ser ordenadas pela “luz da natureza e pela prudência cristã” em conformidade com “as regras gerais da Palavra, as quais devem sempre ser observadas” (6). Isso dá espaço para as igrejas desenvolverem documentos orientadores como estatutos, procedimentos para o funcionamento de um comitê para a admissão de pastores, o modo como a ceia do Senhor deverá ser distribuida, quantas classes de escola dominical devem haver e a faixa etária de seus participantes, em que tipo de edifício a igreja deve se reunir para seu culto corporativo e ensino, e como a evangelização deve ser realizada.

Um comentário esclarecedor sobre a sua suficiência vem logo após a primeira frase: “Embora a luz da natureza e as obras da criação e da providência manifestem a bondade, a sabedoria e o poder de Deus a ponto de tornar os homens indesculpáveis, ainda assim, não são suficientes para oferecer aquele conhecimento de Deus e de sua vontade que é necessário para a salvação”. Assim, vemos a importância da expressão “conhecimento salvífico”. Deus deu aos portadores da sua imagem muitas maneiras de alcançar o conhecimento do mundo que ele criou e de discernir a verdadeira natureza da linguagem. A investigação empírica (indução) combinada com a lógica dedutiva produz uma compreensão cada vez maior do mundo que nos foi ordenado dominar. Isto produz uma esfera de descobertas para a tecnologia, compreensão sobre doenças, desenvolvimento de curas, cultivos de melhor rendimento que contribuem para o florescimento humano nesta vida. O caminho para a vida eterna, porém, através do perdão dos pecados só vem da revelação divina, pois tal redenção exige a sabedoria divina — “…as que Deus preparou para os que o amam… Deus no-las revelou pelo seu Espírito” (1 Coríntios 2:9,10).

A Escritura é “certa”. Esta palavra é praticamente sinônimo de “infalível” ou “inerrante”. Ela não engana nem se engana. Nenhuma de suas proposições, quando corretamente deduzidas do texto da Escritura, será encontrada com erros. Se a Bíblia errasse, muito provavelmente erraria nas áreas de maior mistério e não estaria aberta à investigação ou dedução humanas. Se fosse detectado erro na narrativa histórica, quanta confiança poderia ser dada às afirmações que refletem a mente e o propósito de Deus, a natureza miraculosa e o mistério do que é transcendental? Entretanto, a Escritura não sofre de nenhuma incerteza porque cada parte dela é dada “por inspiração de Deus para serem a regra de fé e vida” (2). Sua autoridade absoluta deve ser recebida “porque é a palavra de Deus” (4).

De fato, a Bíblia não apenas não contém erros, como também é impossível que ela possa contê-los. Ela é “infalível”. Como obra literária que se estende por mais de um milênio e meio, a coerência e o caráter não contraditórios de seu texto, a relevância atual e pertinência eterna dos seus ensinamentos são garantidos pela realidade de que ela é “inspirada por Deus”.

Uma abundância de evidências pode convencer o leitor da origem divina da Escritura: “O testemunho da igreja de Deus… o caráter celestial do seu assunto, a eficácia da sua doutrina, a majestade do estilo” juntamente com o “a concordância de todas as partes” e a intenção consistente de trazer toda glória a Deus através da sabedoria do caminho de salvação do homem, suas “excelências incomparáveis”, bem como sua “completa perfeição”. Além dessas evidências observáveis de que a Bíblia é exatamente o que ela diz ser — a palavra da verdade dada como um “assim diz o Senhor” — o elemento final de convencimento é a “operação interna do Espírito Santo que testemunha por meio da Palavra e com a Palavra em nossos corações”. É essa operação interna e sobrenatural que produz “nossa plena persuasão e certeza de sua verdade infalível e autoridade divina” da Sagrada Escritura. A confissão usa a palavra “infalível” pela terceira vez neste capítulo quando ensina que “A regra infalível de interpretação da Escritura é a própria Escritura” (9).

Como entender essa Palavra que nos foi dada por Deus? A confissão aponta para duas realidades. Uma é a natureza do estudo da linguagem quando se procura deduzir uma mensagem consistente a partir de um texto. A segunda é a realidade da “iluminação interior do Espírito de Deus para a compreensão salví-fica das coisas reveladas na Palavra” (6). A confissão reivindica perspicuidade para a Escritura, mas reconhece diferentes níveis de dificuldade na compreensão de partes distintas: “Nem todas as coisas em si mesmas são igualmente claras na Escri-tura, nem igualmente claras a todos” (7). Porém, pelo princípio da analogia da fé pode-se comparar a Escritura com a Escritura e encontrar maior clareza em algumas partes que produzirá uma clareza progressiva em outras (9). A Escritura não é contraditória, nem é de tal natureza que o significado seja maleável. O significado não é “múltiplo, mas único”. Pelo processo de compração da Escritura com a Escritura, pode-se eventualmente chegar ao “verdadeiro e pleno sentido de qualquer Escritura” (9).

A segunda coisa uqe nos ajuda a compreender é a operação do Espírito Santo sob cuja inspiração a Escritura foi dada. Essa compreensão é chamada de “compreensão salvífica” (6). O verdadeiro poder e o resultado pretendido pelas Escrituras são que podemos interiorizar a proposição e sentir sua veracidade. Conhecer a proposição: “Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus” (Romanos 3:23), e acreditar que ela é verdadeira é de um tipo de conhecimento diferente de sentir o peso do pecado e seu poder condenatória. Nesse reconhecimento, voltamos à primeira frase do primeiro parágrafo, que chama a Escritura de “regra de todo conhecimento, fé e obediência salvíficos”. O conhecimento salvífico se distingue por trazer o conteúdo daquilo que é necessário conhecer para a salvação nas áreas de nossa queda, as qualificações de Jesus como Salvador, a natureza do arrependimento e a esperança de vida eterna. Esse é o conteúdo a partir do qual a verdade cristã organizada é desenvolvida. Neste contexto, a “fé” significa o assentimento do coração a essas verdades assim deduzidas da Escritura. O conteúdo é a fonte material para a operação efetiva do Espírito no novo nascimento, a doação de um novo coração, a concessão de vida espiritual. A “obediência” se refere à vida pela fé ao substituirmos nossos padrões mundanos de vida e pensamento pela verdade divina. Essa verdade nos santifica e nos ajuda a renunciar ao embaraço do pecado e nos dá poder para “nos purificarmos de toda a imundícia da carne e do espírito, aperfeiçoando a santificação no temor de Deus” (2 Coríntios 7:1).

À medida que avança na exposição confessional das doutrinas ensinadas pela Bíblia, esse capitulo nos assegura que não estamos fazendo uma investigação aleatória de meras opiniões e preconceitos da racionalidade humana, mas que estamos olhando para as próprias palavras de vida eterna. De acordo com as verdades expostas aqui, aprendemos que nenhuma “criatura alguma encoberta diante dele; antes todas as coisas estão nuas e patentes aos olhos daquele com quem temos de tratar” (Hebreus 4:13).

Dr. Tom Nettles
24 de abril de 2021

 

 

Título original: 1689 Blog Series: Chapter 1 Of The Holy Scriptures — Via: Parresia Books • Traduzido e publicado com permissão • Tradução: William e Camila Rebeca Teixeira.
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