Receio que negligenciar a oração em família seja algo muito comum entre os cristãos professos da atualidade. Fico feliz que você considere isso como um dever e um privilégio, e, que pela graça, esteja determinado, quando se tornar o chefe de uma família, a adorar a Deus com toda a sua casa. Abraão foi honrado não apenas por que serviu ao Senhor individualmente, mas preocupou-se com seus filhos e sua família, para que O servissem da mesma maneira. Estou certo de que Aquele que inclina o seu coração a seguir os passos do fiel Abraão, o abençoará nesse desafio e lhe dará paz em seu lar; uma misericórdia que raramente é desfrutada e que, de fato, dificilmente pode ser esperada nas famílias que não invocam ao Senhor.
Embora atenda prontamente ao seu pedido — e ficaria feliz em poder oferecer algo que pudesse ajudá-lo ou animá-lo nesse seu bom propósito — receio que não atenda às suas expectativas em relação aos detalhes de sua pergunta, no que diz respeito aos aspectos mais adequados quanto ao método de condução do culto familiar. As circunstâncias das famílias são tão diversas que não podem ser estabelecidas regras determinadas, e nem a Palavra de Deus o faz; porque, sendo de obrigação universal, tal prática é sábia e graciosamente acomodada para se adequar às diferentes situações do povo de Deus. Você deve, portanto, quanto às circunstâncias, julgar por si mesmo. Você fará bem em seguir um método que achar mais conveniente para si mesmo e para a sua família, sem se comprometer meticulosamente com algo, quando a própria Escritura lhe concede liberdade.
Não temos preceitos positivos que nos determinam um horário específico para a oração, nem mesmo com que frequência devemos orar, seja em público ou em particular; embora as expressões como “perseverai em oração”, “orai sem cessar” e outras semelhantes, revelem claramente que a oração deve ser frequente. Daniel orava três vezes ao dia; de igual modo o salmista fala de sua prática de oração; e em certa passagem declara o seu propósito de louvar a Deus sete vezes por dia. Essa última expressão é talvez indefinida, não seriam precisamente sete vezes, mas algo praticado com muita frequência. De fato, uma pessoa que vive no exercício da fé e do amor, e que descobre por experiência quão bom é se aproximar de Deus, não precisará que alguém lhe oriente com que frequência deve orar, ou ainda com que frequência deve conversar com um amigo terreno. Gostamos muito de estar com aqueles a quem amamos. O amor é o melhor casuísta [1] e resolve ou evita mil escrúpulos e perguntas, o que pode deixar perplexos aqueles que servem a Deus apenas a partir de princípios de restrição e medo. Um crente reputará por mais felizes aqueles dias nos quais tiver mais prazer e mais liberdade de espírito para o exercício da oração.
No entanto, acho que a oração em família deve ser realizada pelo menos diariamente e, quando obstáculos inevitáveis não impedem, duas vezes por dia. Embora todos os tempos e épocas sejam semelhantes ao Senhor, e Seus ouvidos estejam permanentemente abertos sempre que tivermos um coração para invocá-lO; todavia, para nós existe uma conveniência peculiar no romper da manhã e no findar do dia para a oração. Pela manhã, devemos reconhecer a Sua bondade em nossa preservação durante a noite e implorar a Sua presença e bênção para as nossas famílias durante todo aquele dia; e à noite, devemos orar a fim de adorá-lO pelas misericórdias do dia que passou, para nos humilharmos diante dEle pelos erros cometidos, para esperar da parte dEle uma manifestação renovada de Seu amor perdoador e para encomendarmos a nós mesmos e as nossas preocupações aos Seus cuidados e proteção enquanto dormimos.
Você deve escolher, é claro, aquelas horas menos suscetíveis de ser interrompido pelas demandas dos negócios e quando a família pode se reunir com maior conveniência. Eu apenas recomendo algo que o ajudará grandemente a manter a regularidade e boa organização de sua casa, a saber, que você deve manter sempre o mesmo horário para praticar a adoração familiar. E da mesma forma, se puder ser evitado, é melhor não protelar a oração da noite até muito tarde; para evitar que alguns que participem dessa prática, e talvez a própria pessoa que o lidera, estejam cansados ou com muito sono para prestar a devida atenção. Por esse motivo, eu recomendo que orem em família antes do jantar, quando as pessoas estiverem mais dispostas e aptas.
Penso que para você é muito conveniente e apropriado que a leitura de uma porção da Palavra de Deus seja normalmente parte da adoração em família; do mesmo modo, cantar um hino ou salmo – ou apenas parte dele – fica a seu critério; desde que haja algumas pessoas na família que possuam ouvidos e vozes musicais capazes para conduzir o canto de maneira tolerável: caso contrário, talvez seja melhor omitir essa parte. Se você for ler, cantar e orar, deve tomar cuidado para que tais partes combinadas não tenham uma duração inconveniente.
Devemos estar atentos a algo muito importante: esse é um exercício espiritual; e o grande mal a ser temido e evitado em todo dever que realizamos com frequência é a formalidade. Se uma conduta constante de oração em família é mantida tão regularmente quanto o bater do relógio, com o tempo isso pode ser realizado de maneira mecânica, a menos que estejamos continuamente olhando para o Senhor para manter os nossos corações avivados.
Acontece com muita frequência que um ou mais membros de uma família são pessoas não convertidas. Quando for esse o caso, deve-se ter uma grande consideração por eles, e tudo deve ser conduzido com vistas à sua edificação, para que não fiquem enojados ou cansados, ou tentados a pensar que tal prática não passa de uma moda ou do costume da casa; o que provavelmente será verdadeiro, a menos que o chefe da família seja animado e sério no desempenho do seu dever, e igualmente prudente e consistente em todos os aspectos de seu comportamento, inclusive em outros momentos. Ao liderar a adoração a Deus diante de crianças ou estranhos, um homem gera vínculo (por assim dizer) ao seu comportamento e acrescenta força a qualquer outro motivo que o engajaria a abster-se de toda aparência de mal. Deveria haver uma constante sondagem de nossa língua e temperamentos na presença de nossas famílias, levando em consideração que começamos o dia, e nos propomos terminá-lo, com eles em oração. O apóstolo Pedro usa esse argumento para influenciar a conduta de maridos e mulheres em relação um ao outro; e é igualmente aplicável a todos os membros de uma família; “Para que suas orações não sejam impedidas”, isto é, interrompidas e adiadas, ou despojadas de toda a vida e eficácia pelo fermento de paixões pecaminosas.
Por outro lado, o exercício apropriado da oração em família, quando recomendado por uma conduta adequada, é um meio feliz de instruir as crianças nas grandes verdades da religião, de abrandar seus preconceitos e inspirá-las com um temperamento de respeito e afeição, o que as tornará dispostas à alegre obediência e as fará relutantes em afligir ou ofender.
Nesse caso, como em todos os outros, podemos observar, que os mandamentos do Senhor ao Seu povo não são compromissos arbitrários; mas na medida em que sejam conscientemente cumpridos, eles têm uma evidente tendência e adequação para promover o nosso próprio proveito. Ele exige que O reconheçamos em nossa família, para o nosso próprio bem; não porque Ele precise de nossa mísera adoração, mas porque precisamos de Sua bênção; e sem a influência de Sua graça (que é prometida a todos que a buscam) certamente seremos infelizes em nós mesmos e em todas as nossas relações.
Quando marido e mulher são participantes felizes da mesma fé, parece conveniente e para o seu bem mútuo que, além de suas devoções particulares e da oração em família, eles devem orar juntos. Eles têm muitas necessidades, misericórdias e preocupações em comum e distintos do restante da família. A maneira pela qual eles devem aprimorar um pouco mais o tempo neste exercício conjunto não pode muito bem ser prescrita por uma terceira pessoa: mesmo assim, me arriscarei a sugerir uma coisa; principalmente porque não me lembro de ter encontrado isso impresso em algum livro. Penso que pode ser muito reconfortante orar alternadamente, não apenas o marido com a esposa e por ela, mas a esposa com o marido e por ele. O Espírito de Deus, pelo apóstolo, restringiu expressamente as mulheres do exercício de dons espirituais em público; mas entendo que a prática da qual estou falando não interfira nessa restrição. Eu os imagino orando em particular, e assim julgo ser igualmente certo e apropriado que cada um deles ore pelo outro. Também não encontro nada nos escritos de Paulo que me impeça de pensar que se ele fosse um homem casado – embora fosse um apóstolo – ficaria feliz em contar com as orações de sua esposa. Se você perguntar: Com que frequência eles devem orar juntos? Penso que quanto mais frequentemente, melhor. E desde que não negligenciem os seus deveres – que o façam pelo menos uma vez por dia. Caso eles possam optar pelo melhor horário, que o façam a alguma distância dos demais momentos de adoração. Mas gostaria de observar, como antes, que em assuntos não ordenados expressamente, a prudência e a experiência devem direcionar a prática.
Eu escrevo supondo que você pratica a oração espontânea; mas como existem muitos chefes de família que temem ao Senhor, e ainda assim não alcançaram a liberdade de orar espontaneamente diante dos outros, eu acrescentaria que a incapacidade deles a esse respeito – quer seja real, quer apenas proveniente do medo, ou ainda de uma consideração indevida referente a si próprio – não os justificará na omissão da oração em família. Ajuda pode ser obtida. O livro “As Devoções do Sr. Jenks” está acessível a muitos; e não duvido que existam outros livros excelentes do mesmo tipo com os quais não estou familiarizado. Se eles começarem com um livro como modelo – não com o objetivo de se limitarem sempre a ele, mas fazendo de tal modelo parte de suas súplicas secretas junto ao Trono da Graça, para serem favorecidos com o dom e o espírito de oração; e, ao se acostumarem, enquanto usam esse modelo, e intercalarem algumas petições próprias – não duvido que, com o tempo eles encontrarão um crescimento na liberdade e na capacidade de orar e, por fim, deixarão o livro de lado. Por ser o dever de todo crente adorar a Deus em sua família, pode-se confiar na Sua promessa de conceder a suficiência em todas as coisas para a prática do culto que Deus exige deles.
Feliz é aquela família em que a adoração a Deus é mantida de modo constante e consciente. Tais casas são templos nos quais o Senhor habita e castelos guarnecidos pelo poder divino. Não digo que, honrando a Deus em sua casa, você escapará totalmente das provações e incidentes próprios do atual estado incerto das coisas. Uma medida dessas provações será necessária para o exercício e a manifestação de Suas graças; para lhe dar uma prova mais convincente da verdade e doçura das promessas feitas em tempos de aflição; para mortificar o corpo do pecado; e para desmamar você mais efetivamente desse mundo. Mas eu digo com confiança que o Senhor honrará e confortará aqueles que O honram. Períodos virão sobre você nos quais saberá – e provavelmente seus vizinhos serão obrigados a tomar conhecimento também – de que o Senhor não ordenou que você O buscasse em vão. Se você se deparar com problemas, eles deverão ser acompanhados de apoios e seguidos de libertação; e você experimentará, em muitas ocasiões que Deus é seu protetor, que preserva você e os seus dos males pelos quais você verá outros sofrendo ao seu redor.
Eu acabei excedendo aos limites que propus; e, portanto, acrescentarei apena uma solicitação: Que em suas petições junto ao Trono da Graça, você se lembre de mim.
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[1] Casuísta: Teólogo que se dedica a resolver casos de consciência pelas regras da razão e da religião. – N. de T.