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Considerações Sobre O Amor De Deus, por John Gill

“Ora o Senhor encaminhe os vossos corações no amor de Deus, e na paciência de Cristo.” (2 Tessalonicenses 3:5)

 

Uma porção principal do propósito do apóstolo ao escrever esta epístola foi consolar algumas pessoas nesta Igreja, que estavam abaladas em espírito, e atribuladas, como se o dia de Cristo estivesse à mão. Ele assegura-lhes, assim, no segundo Capítulo, que não estava; pois havia várias coisas que Ele faria antes disso: como a remoção do império Romano; a grande apostasia que aconteceria nas Igrejas; e o estabelecimento do homem do pecado, o Anticristo Papal. Ele, portanto, exorta-os à firmeza nas doutrinas do Evangelho; e deseja-lhes muitas coisas boas. No início deste capítulo, ele deseja-lhes que orem por ele, e pelos demais ministros do Evangelho; sugere o que é a razão pela qual ele gostaria que orar: “No demais, irmãos, rogai por nós, para que a palavra do Senhor tenha livre curso e seja glorificada, como também o é entre vós; e para que sejamos livres de homens dissolutos e maus; porque a fé não é de todos”. E depois, para o seu consolo, expressa a sua segurança da preservação final deles. “Mas fiel é o Senhor, que vos confirmará, e guardará do maligno”. E também a sua grande confiança em sua disposta e completa obediência aos mandamentos de Deus, dizendo: “E confiamos quanto a vós no Senhor, que não só fazeis como fareis o que vos mandamos”. Com o intuito de que, ele eleve uma oração por eles, nas palavras do texto: “Ora o Senhor encaminhe os vossos corações […]” etc. Assim, as palavras são uma oração do apóstolo consistindo em duas petições, a saber: que o Senhor encaminhe os seus corações ao amor de Deus. E, que o mesmo Senhor também encaminhe os seus corações à paciência de Cristo. É na primeira destas que insistiremos neste momento. Para o explicar, farei as seguintes considerações:

 

I. O que devemos entender por amor de Deus.

II. O que é ter o coração encaminhado a isso.

III. Quem é este Senhor, a quem se orou para que faça isso por nós. E,

IV. Qual é a grande utilidade de ter nossos corações assim encaminhados.

 

 

I. O que devemos entender por amor de Deus. Isto pode ser entendido ativa ou passivamente. Ativamente, sobre o amor com que amamos a Deus. Ou, de forma passiva, sobre o amor com que somos amados por Deus. Em outras palavras, por isso podem ser entendidos, tanto o nosso amor por Deus, ou o amor de Deus por nós; e vendo que as palavras admitirão um ou outro sentido, vou considerá-los em ambos. E por meio do amor de Deus, pode ser compreendido, o nosso amor a Deus; a respeito do qual, são observados os seguintes aspectos.

 

1. Que este é a soma e a substância da lei moral; pelo menos, é a parte essencial e principal da mesma, como pode ser facilmente inferido a partir da resposta de nosso Senhor à pergunta do doutor da lei, em Mateus 22:35, 40; a pergunta do doutor da lei é: “Mestre, qual é o grande mandamento na lei?” A resposta de Cristo é: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento”. Amar a Deus, ordenado sob a dispensação do Evangelho, é o mesmo que é ordenado pela lei de Moisés. Cristo e Moisés concordam nisto, como demonstrado em Deuteronômio 6:4-5: “Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças”. Este não é um novo mandamento do Evangelho; ele é apenas confirmado sob a dispensação do Evangelho, e pressionado por motivos mais fortes.

 

2. Deixe também ser observado que todos os homens, por natureza, estão destituídos de amor a Deus: não, não existe apenas uma falta de afeição, mas mesmo uma aversão a Ele; sim, uma inimizade contra Ele. Pois, o pendor da carne é inimizade contra Deus. Uma parte da característica dos pagãos (Romanos 1:30) que eram alienados de Deus e entregues às suas próprias concupiscências, é que eles eram θεοσυγεις; o que significa, não apenas que eles tinham ódio a Deus, mas que eles eram inimigos de Deus. Da mesma forma, no relato que o apóstolo oferece sobre a degeneração que haverá nos últimos dias, ele diz (2 Timóteo 3:4) que os homens serão mais amigos dos deleites do que amigos de Deus. E este não é apenas o caso das pessoas agora mencionadas, mas de toda a humanidade, mesmo dos eleitos de Deus, enquanto em um estado natural. Pois eles, assim como outros, são inimigos em suas mentes, por meio de obras ímpias. Eles vivem em um estado de rebelião, e cometem atos de hostilidade aberta contra o Deus do céu. Eles estendem as mãos contra Deus, e se fortalecem contra o Todo-Poderoso. Eles correm contra Ele, até mesmo em seu pescoço, e sobre as protuberâncias de seu escudo.

 

3. Que seja observado ainda que o amor a Deus é uma graça implantada no coração, pelo Espírito de Deus. Este é um dos frutos do Espírito; e é mencionado no topo deles, Gálatas 5:22: “O fruto do Espírito é: amor, etc.”. É, com as outras graças, forjado na alma na regeneração. Esta graça do Senhor, que vem com isso, flui para o coração do pecador na conversão; é superabundante, com a fé e o amor que estão em Cristo Jesus. Estas duas graças sempre andam juntas; sendo implantadas de uma vez, ao mesmo tempo. E a fé, particularmente, opera pelo amor, e o amor é geralmente mais aquecido, ativo e vigoroso, primeiramente na conversão. De tal maneira, que o Senhor faz especial observação quando este é deixado por nós; de acordo com Jeremias 2:2: “Lembro-me de ti, da piedade da tua mocidade, e do amor do teu noivado, quando me seguias no deserto, numa terra que não se semeava”. O que me leva a observar,

 

4. O fervor desse amor frequentemente diminui; embora a graça em si nunca seja perdida. Isto ocorre com frequência a partir das abundâncias de pecado, tanto em nós mesmos e em outros. Pois, ao se multiplicar a iniquidade, o amor de muitos esfriará, de acordo com Mateus 24:12. Muitas vezes, também surge a partir de uma busca desmedida por coisas deste mundo. Por isso o apóstolo em 1 João 2:15, aconselha a não amar o mundo, nem as coisas que há no mundo, pois, ele diz, se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele. Isto é, há apenas pouca evidência de amor a Deus, no coração do homem, cujas afeições estão colocadas nas coisas deste mundo. Essas coisas, embora não possam destruir a graça, onde foi uma vez operada; ainda assim provocam uma grande frieza sobre ela. A graça do amor, de fato, não pode ser perdida; mas depois, ela pode ser deixada, como foi pela igreja em Éfeso, de quem o Senhor reclama em Apocalipse 2:4, dizendo: “Tenho, porém, contra ti que deixaste o teu primeiro amor”. Ele não diz, que o tens perdido; a palavra não significa Amittere, perder; mas Remittere, diminuir de intensidade, ou decair, no fervor do mesmo. E isso, todo o povo de Deus, mais ou menos, mais cedo ou mais tarde, vivencia para sua grande tristeza: especialmente no momento em que vivemos. Portanto,

 

5. Há uma grande necessidade de orar, com o apóstolo, para que o Senhor encaminhe os nossos corações para este amor. Ou seja, que Ele opere em nossos corações, e estimule o nosso amor a Deus: atice e transborde-o em uma chama. Isso Ele faz, ao nos mostrar a vaidade de todos os prazeres terrenos; o que Deus é em Si mesmo, e que Ele é para o Seu povo. Como Ele é digno de sua mais elevada afeição; e, mais especialmente, derramando o amor de Deus em nossos corações; o que nada pode fazê-lo mais efetivamente. Pois, nós O amamos, porque Ele nos amou primeiro (1 João 4:19). Uma percepção disso revigora o nosso amor, arrebata as nossas almas, e nos compele a dizer com o salmista: “Quem tenho eu no céu senão a ti? e na terra não há quem eu deseje além de ti” (Salmos 73:25). Mas, eu escolho o melhor,

 

Por amor de Deus, aqui, para entender o amor de Deus por nós; sobre a natureza e a glória disso, observe as seguintes elucidações.

 

1. Quanto à origem do mesmo, é livre e soberano, nada fora de Deus o levou a isso. Ele não colocou o Seu amor sobre nós, devido a qualquer beleza em nós; ou por causa de qualquer amor em nós por Ele. Não por causa de qualquer amabilidade em nós mesmos. Pois nós não éramos mais sábios do que outros, sendo por natureza filhos da ira. Nem por causa de qualquer amor em nós por Ele; pois Seu amor é anterior ao nosso, como a causa em relação ao efeito. E, de fato, Ele nos amou, antes que fizéssemos o bem ou o mal, para que o propósito de Deus, segundo a eleição, ficasse firme. Nenhuma outra razão pode ser dada ao amor de Deus por Seu povo, senão a Sua própria Ευδοχια; sua Soberana boa vontade e prazer. Nem deveria qualquer outro ser procurado, Ele os ama porque Ele quer ama-los. E, embora, talvez, isso não seja admitido como uma razão suficiente, por vocês, homens racionais; no entanto, isto é o que o Espírito Santo pensa ser apropriado a conceder-nos, e devemos estar satisfeitos com isso, Deuteronômio 7:7-8: “O Senhor não tomou prazer em vós, nem vos escolheu, porque a vossa multidão era mais do que a de todos os outros povos, pois vós éreis menos em número do que todos os povos; Mas, porque o Senhor vos amava”.

 

2. Quanto aos objetos do amor de Deus, estes são específicos e distintivos. Ele ama alguns, e não outros. É verdade, Ele tem um amor geral, e que diz respeito a todas as Suas criaturas. Ele é bom para todos, e as Suas misericórdias são sobre todas as Suas obras. Todas elas compartilham das graças de Sua providência. Ele faz o sol brilhar sobre os maus e os bons. Ele faz chover sobre os justos e sobre os injustos. Mas, então, Ele escolheu para Si a Jacó, e a Israel para Seu tesouro peculiar. Por isso, Ele concede bênçãos peculiares sobre aqueles a quem Ele tem um amor peculiar. Davi diz, no Salmo 106:4: “Lembra-te de mim, Senhor, segundo a tua boa vontade para com o teu povo”, mui claramente indicando que esse era específico e distintivo; de natureza diferente daquele que Ele concedeu a outros. Um exemplo pleno deste amor distintivo, temos em Malaquias 1:2-3: “Eu vos tenho amado, diz o Senhor. Mas vós dizeis: Em que nos tens amado? Não era Esaú irmão de Jacó? disse o Senhor; todavia amei a Jacó, e odiei a Esaú”. É, como eu disse antes, nenhuma outra razão pode ser dada a essa distinção que Deus faz entre os perdidos filhos de Adão, senão a Sua própria vontade soberana; que terá misericórdia de quem quer tiver misericórdia, e será gracioso com quem for gracioso, deixem um mundo debatedor dizer o que quiser.

 

3. Quanto ao seu início, é desde a eternidade. Deus amou o Seu povo com um amor eterno; e, portanto, com bondade amorosa, Ele os atrai para Si no tempo. Muitos são os exemplos que poderiam ser dados, em prova da antiguidade desse amor. Sua escolha deles em Cristo, antes da fundação do mundo, foi um ato de Seu amor, pois Electio præsupponit dilectionem. Eleição pressupõe amor. O Seu entrar em uma aliança eterna com o Seu Filho, em consideração àqueles que Ele escolheu; o Seu estabelecer-Se como o Mediador da Aliança, desde a eternidade; e Sua doação de graça a eles, nEle, antes que o mundo existisse; muitas são as demonstrações de Seu antigo amor por eles. Como também, o Seu colocar das suas pessoas nas mãos de Cristo, e assim torna-los Sua proteção e encargo. Porque Ele amou o povo (Deuteronômio 33:5), todos os Seus santos estão em Sua mão. Agora, pode alguma vez ser imaginado, que deveria haver uma escolha de pessoas; uma Aliança da graça, tão bem estruturada e suprida; uma promessa de vida concedida; e segurança e graça dada tanto à pessoa, e ainda assim, nenhum amor em tudo isso? Não, essas coisas provam Seu amor, e este amor não começa com o nosso; nem, de fato, com o tempo; mas data desde a eternidade.

 

4. Quanto à duração deste, é para a eternidade; pois ele alcança de uma eternidade à outra. Tendo amado os Seus, que estavam no mundo, amou-os até o fim. Ele os ama até o fim dos tempos, e vai amá-los ao longo dos séculos sem fim por toda a eternidade; pois Ele repousa em Seu amor em direção a eles, e disto não pode haver separação. “Porque eu estou bem certo de que nem morte nem vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem coisas presentes, nem coisas por vir, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura, nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor” (Romanos 8:38-39).

 

5. Quanto ao seu grau ele é incomparável. Isso se evidencia mui grandioso na conversão de um pobre pecador. Assim, diz o apóstolo em Efésios 2:4, 5: “Mas Deus, que é riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos amou, Estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo (pela graça sois salvos)”, “Porque apenas alguém (diz o apóstolo, em Romanos 5:7-8) morrerá por um justo; pois poderá ser que pelo bom alguém ouse morrer. Mas Deus prova o seu amor para conosco, em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores”. Há nessas palavras uma belíssima gradação. O apóstolo parece aludir à distribuição do povo judeu; entre o qual havia três tipos de pessoas. A um tipo chamavam pessoas justas, observadores muito estritos da letra da lei; mas não faziam mais do que somente o que eram obrigados a fazer pela lei. Havia um outro tipo chamado, bons homens. Estes eram muito generosos e liberais com os pobres, e custeavam todas as despesas do serviço do templo, no que ultrapassavam as rigorosas exigências da lei. Mas, então, havia um terceiro tipo, chamado homens pecadores; a parte devassa e dissoluta das pessoas, entregues às suas próprias concupiscências, e o próprio lixo da humanidade. Agora, é como se o apóstolo dissesse, raramente por uma destas pessoas justas, alguém morrerá, que não fará mais do que ele é exatamente obrigado a fazer; ainda assim, porventura, por um desses homens bons, que foram tão generosos (e, consequentemente, tiveram a afeição das pessoas) ainda há quem ouse morrer. Mas quem morrerá por aqueles ímpios desgraçados, devassos, e dissolutos? Ninguém; mas Deus recomendou o Seu amor a nós; enquanto éramos ainda pecadores, Cristo morreu por nós. Graça incomparável, inigualável!

 

6. Quanto à natureza e qualidade do mesmo, é inalterável. É tão invariável quanto a Sua própria natureza; ou melhor, é a Sua natureza, pois Deus é amor (1 João 4:16). As bênçãos de Sua graça são irreversíveis, porque elas procedem dEle, que é o Pai das luzes, em Quem não há mudança, nem sombra de variação. Disso, também a nossa salvação não permanece sobre uma fundação precária, o que seria, se Seu amor por nós mudasse, como o nosso por Ele. Mas Ele é o Senhor, que não muda; portanto, os filhos de Jacó não são consumidos. Deus, às vezes, muda as dispensações de Suas providências em direção ao Seu povo; mas nunca muda Seu amor. Ele às vezes Se esconde, e Ele às vezes repreende; mas em todas às vezes, Ele ama. Quando Ele esconde o rosto de Seu povo, por um momento; Ele ainda, com benignidade eterna terá misericórdia deles. Porque os montes se retirarão, e os outeiros serão abalados; porém a minha benignidade não se apartará de ti, e a aliança da minha paz não mudará, diz o Senhor que se compadece de ti (Isaías 54:8, 10). O amor produz alterações na condição do povo de Deus; mas essas alterações não produzem nenhuma mudança no amor de Deus. O amor fez uma singular alteração no estado do apóstolo Paulo; que, de um perseguidor, blasfemo e ofensivo Saulo, foi feito, não apenas um crente em Cristo, mas um pregador do Evangelho eterno. Mas esta maravilhosa mudança nele, não produziu nenhuma mudança em Deus, nem em Seu amor. Mas se as coisas são assim, você dirá: "Então, Deus ama o Seu povo com o mesmo amor, antes da conversão, como depois”. E onde está a grande mágoa ao dizer isso? De uma vez, eu afirmarei: Ele o faz; e algumas poucas considerações levarão ao reconhecimento disso. Vamos considerar um pouco, as instâncias do amor de Deus, antes e depois da conversão, e compará-las juntos; a partir do que nós podemos ser capazes de concluir largamente. Eu poderia tomar conhecimento do amor de Deus na escolha deles em Cristo; em fazer uma aliança de graça com Ele, por causa deles; e em colocar tanto as Suas pessoas e Sua graça em Suas mãos, que são todas grandes instâncias de amor, antes da conversão. Mas eu apenas observarei a você três grandes dons do amor de Deus ao Seu povo antes da conversão; que, eu penso, nunca podem ser igualados por qualquer instância após a conversão. E são estes,

 

1. O dom de Deus de Si mesmo para eles; pois Deus, em Sua aliança eterna (e isso muito antes da conversão) fez para Si mesmo o Seu povo. A posse do qual é executado assim: Eu serei o seu Deus e eles serão o Meu povo.

 

2. O grande dom de Seu Filho para eles, e por eles; no que Ele mostrou a suprema grandeza do Seu amor por eles. Nisto consiste o amor, diz o apóstolo, não em que nós tenhamos amado a Deus; (tão longe disso, éramos inimigos dEle, pois foi quando ainda éramos pecadores, que Cristo morreu por nós), mas em que Ele nos amou, e enviou o Seu Filho como propiciação pelos nossos pecados (1 João 4:10, 3:16; Romanos 5:6, 8, 10).

 

3. O grande dom do Espírito, que é enviado para os corações do povo de Deus, antes da conversão, a fim de efetuar a grande obra; ou seja, convencer do pecado, da justiça e do juízo. E agora, depois de ter observado essas coisas, eu estou pronto para perguntar: Pode ser produzido qualquer exemplo maior do amor de Deus por Seu povo, após a conversão? Se a própria glória celeste for mencionada, com todas as alegrias daquele estado deleitoso; nego-a ser um maior exemplo do amor de Deus do que o dom de Si mesmo, ou do Seu Filho, do Seu Espírito. E, de fato, tudo o que Deus faz no tempo, ou fará na eternidade, é somente contar ao Seu povo, o quanto Ele os amou desde a eternidade; tudo é apenas, como foi, por assim dizer, um comentário sobre esta antiguidade de Seu amor. Se, então, não há maior exemplo de amor que possa ser produzido, após a conversão, do que foi antes, não precisamos ter medo, nem vergonha de dizer que Deus ama o Seu povo com o mesmo amor antes da conversão, como Ele o faz após.

 

Essa doutrina, eu sou razoável, não é facilmente digerida; e, portanto, muitas distinções são formadas, a fim de colocá-la de lado. Alguns distinguem o amor de Deus em antecedente e consequente; uma distinção sem qualquer fundamento na Palavra de Deus; e é, de fato, por si só, um mero jargão de palavras, que não transmite ideias apropriadas do amor de Deus; senão tais que são depreciativas à glória de Seu ser e perfeições, e servem apenas para introduzir confusão e angústia na mente dos homens.

 

Há outra distinção do amor de Deus, o que eu tenho observado praticamente assegurada entre as pessoas, embora tão sem fundamento quanto antiga. É isso: Deus ama o Seu povo antes da conversão, com um amor benevolente ou de boa vontade. Ele deseja-lhes bem; mas Ele não os ama com uma ativa complacência, até após a conversão. Mas puramente o Senhor Jesus Cristo amou o Seu povo, com um mínimo de tolerância, antes da conversão; pois, diz-se, desde o início, ou sempre que a terra existiu, Suas delícias eram os filhos dos homens (Provérbios 8:23-31). A palavra hebraica traduzida por delícias, não está apenas no plural, mas suas letras radicais estão dobradas; o que, de acordo com o uso dessa língua, sempre aumenta o significado da palavra: de modo que é expressiva da excedente grandeza do deleite e complacência de Cristo, que Ele tinha em Seu povo. Não, Ele parece ter tido um prazer nas s visões antecipadas dos próprios lugares aonde sabia que Seus eleitos habitariam, pois é dito que Ele regozijava-se nas partes habitáveis de Sua terra. E agora, por que Deus o Pai não os amaria com o mesmo amor que Filho amou, eu não posso perceber. O amor de Deus é sempre o mesmo, como a Sua natureza e essência o são. Isso, de fato, aparece mais em alguns atos de Deus do que em outros e é mais claramente manifesto em um momento do que em outro, mas, por si só, é sempre o mesmo. Toda a diferença entre o amor de Deus, antes e depois da conversão, está na manifestação do mesmo. Ele manifesta-se na, e após a conversão; e isto às vezes mais outras vezes menos; apenas não foi de todo manifestado anteriormente. Porém, a mudança ocorre em nós, e não no amor de Deus.

 

Mas, se esta doutrina for verdade, você dirá: Deus deve amar o Seu povo em seus pecados. Bem, e onde está a mágoa ao dizer que Ele o faz? Teria sido miserável, para todos os intentos e propósitos, a você e a mim, se Ele não o fizesse assim. Quando Ele nos viu chafurdar no nosso sangue, com toda a impureza da nossa natureza, com os nossos inúmeros pecados e transgressões presentes em nós; não fosse então o Seu tempo, sido um tempo de amor, se Ele não colocasse a Sua capa sobre nós, e manifestasse a Sua graça pactual a nós, nunca seríamos Seus. Talvez possa ser respondido, de acordo com esta noção, que Deus tem prazer nos pecados de Seu povo, mas onde está a razão para assim concluir? O quê, não pode ser feita qualquer distinção entre o deleite de Deus nas pessoas dos Seus eleitos, e deleite em seus pecados? A distinção é permitida após a conversão; que Deus ama as pessoas de Seu povo, embora Ele odeie seus pecados. E por que não pode a mesma distinção ser permitida antes, como após a conversão? Sabemos que Deus é tão puro de olhos que não pode contemplar o mal, ou olhar para a iniquidade; Ele não tem prazer no pecado, nem com Ele habitará o mal, mas odeia todos os que praticam a iniquidade. Abominamos e detestamos todas as noções contrárias; ainda assim, acredito firmemente na imutabilidade do amor de Deus por Seu povo. Alguém pode perguntar: como é possível que uma pessoa seja um filho da ira, e um objeto de amor, ao mesmo tempo? Pois, os eleitos de Deus são por natureza filhos da ira, como os outros; como, então, ao mesmo tempo, eles podem ser os objetos de amor? Eu respondo: como Jesus Cristo foi o objeto de amor e da ira de Seu pai, ao mesmo tempo? Ora, era como se Ele carregasse duas características diferentes, e estivesse em duas relações diferentes com Seu Pai, a saber; por um lado como um filho, e isto com certeza. Como Ele era o Filho de Deus, Ele sempre foi o objeto de Seu amor e júbilo; mas por outro lado Ele era o fiador dos pecadores, Ele era o objeto de Sua ira e descontentamento. Por isso, é dito: Mas tu rejeitaste e aborreceste; tu te indignaste contra o teu ungido (Salmos 89:38), contra o Teu Messias, ou Cristo. Mas, ainda assim, mesmo quando Ele derramou a Sua ira sobre Ele até ao fim, por causa dos pecados de Seu povo; quando Ele ordenou que a justiça desembainhasse a espada e O ferisse, o Seu amor por Ele não foi no mínimo diminuído. Assim, também os eleitos de Deus, considerados em diferentes pontos de vista, podem ser verdadeiramente ditos serem filhos da ira, e ainda objetos de amor, a um só e ao mesmo tempo. Considerados em Adão, e sob um pacto de obras, eram filhos da ira, expostos às maldições da justa lei de Deus, e passíveis da ira de Deus. Mas, enquanto considerados em Cristo, e sob o pacto da graça, sempre foram, e sempre serão, os objetos do amor de Deus.

 

Nem tem essa doutrina qualquer tendência para incentivar a licenciosidade; ou para desencorajar a realização de boas obras; ou prejudicar a verdadeira humilhação pelo pecado; mas ao contrário, a consideração dela, que Deus me amava, antes que eu O amasse; ou melhor, quando eu era um inimigo dEle; que Seus pensamentos estavam operando a minha salvação, quando eu não pensava nEle, ou preocupava-me comigo mesmo; coloca-me sob dez mil vezes maiores obrigações de servir, temer e glorificá-lO, do que uma suposição de que Ele começou a me amar, quando eu comecei a amá-lO, ou porque eu fiz isso, Ele pôde possivelmente amar. Isso pode ser uma resposta completa para aqueles que perguntam onde está a utilidade desta doutrina?

 

7. Se nós investigarmos a excelência do amor de Deus, isto é preferível a todos os prazeres da criatura; a Tua benignidade é melhor do que a vida. E se assim for, deve ser melhor do que todos os confortos e prazeres da vida. Os fluxos deste rio do amor de Deus alegram a cidade de Deus. Uma percepção disto faz o crente alegre em todas as suas provações, e fixa sua confiança em Deus. “Quão preciosa é, ó Deus, a tua benignidade, pelo que os filhos dos homens se abrigam à sombra das tuas asas” (Salmos 36:7). Mas eu prossigo,

 

 

II. Para investigar o que isto, a saber, ter os nossos corações encaminhados para este Amor.

 

1. Ter os nossos corações encaminhados no amor de Deus, é sermos conduzidos a Ele, por assim dizer, por uma linha reta; pois assim, a palavra κατευθ?ναι, aqui utilizada, propriamente significa. Agora, esta é a obra do Espírito de Deus, conduzir as almas para o amor de Deus, diretamente, ao mesmo tempo, em uma linha reta; e não em um círculo sobre a maneira como algumas pessoas são levadas, sendo dirigidas por falsos guias; que lhes dizem que eles devem passar pelo vale da humilhação, e subir o morro da obediência, antes que possam entrar no amor de Deus. Mas o Espírito de Deus leva a alma diretamente a Ele, independente de toda a sua obediência e humilhação pelo pecado; tal amor, quando direcionado interiormente, estabelecerá as pessoas no caminho da obediência, e as colocará em humilhação pelo pecado, de outra maneira e forma.

 

2. Ter os nossos corações encaminhados no amor de Deus, significa sermos conduzidos até Ele, mais e mais; de modo que sejamos capazes de compreender com todos os santos, qual é a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade dela. Esta obra é progressiva, e pode muito bem ser representada pelas águas de Ezequiel; que foram primeiro até os artelhos, depois até os joelhos, e depois para os lombos; mas depois disso, elas eram águas que se deviam passar a nado, rio pelo qual não se podia passar (Ezequiel 47:3-5).

 

3. Ter os nossos corações encaminhados no amor de Deus, significa sermos levados a Ele, de modo a conhecer o nosso próprio interesse especial nele. Assim, o apóstolo Paulo sabia que Deus o amava em particular, e estava convencido de que nada seria capaz de separá-lo dele, como diz Romanos 8:38-39.

4. Ter os nossos corações encaminhados no amor de Deus, é por assim, sermos levados a Ele a ponto de termos os nossos corações afetados e influenciados por ele. Um homem pode ter noções do amor de Deus em sua cabeça, que nunca sentiu o poder disso sobre o seu coração, e eu tenho medo que algumas pessoas são mais solícitas a ter a cabeça cheia de ideias sobre o assunto, do que ter seus corações e vidas influenciados por ele. Mas o nosso apóstolo não ora para que o Senhor encaminhe suas cabeças, mas os seus corações, ao amor de Deus. Eu agora avanço,

 

 

III. Para considerar o que se quer dizer com [a palavra] Senhor aqui; a quem se orou para fazer isso pelos santos. A palavra κ?ιος, aqui utilizada, é comumente, no Novo Testamento, aplicada a Jesus Cristo; embora o Espírito Santo seja também por vezes assim indicado, como em 2 Coríntios 3:17: “Ora, o Senhor é o Espírito; e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade”. E, eu sou da opinião, que pelo Senhor, em nosso texto, devemos entender o Espírito Santo; pois Ele é mui manifestamente distinto de Deus o Pai, em cujo amor, e de Jesus Cristo, em cuja paciência anelada, os corações dos santos devem ser encaminhados. Assim, temos aqui uma prova da doutrina da Trindade de Pessoas. Além disso, somos capacitados, a partir disso, com mais argumentos do que um, em favor da Divindade do Espírito Santo; que não apenas é chamado de Senhor, o que é expressivo do domínio; mas também é dito encaminhar o coração; o que somente Deus pode fazer. Pois, o coração do rei, assim como o de todos os homens, está na mão do SENHOR, que o inclina a todo o seu querer (Provérbios 21:1) e, especialmente, Ele deve ser Deus, pois, pode encaminhar o coração no amor de Deus; que é uma das coisas mais profundas de Deus, que apenas o Espírito de Deus pode perscrutar, e revelar para nós. Além disso, a oração é aqui dirigida a Ele; o que é tão considerável parte do culto Divino, que às vezes é considerado por todo ele, como em Romanos 10:13 e, portanto, nunca poderia ser oferecido ao Espírito, se Ele não fosse verdadeiramente Deus. Agora, é obra do Espírito encaminhar as almas no amor de Deus. Ele não apenas toma as coisas de Cristo (Sua pessoa, sangue e justiça) e as revela para nós, e nosso interesse por elas; mas Ele também toma as coisas do Pai, e, particularmente, o Seu amor, Ele derrama em nossos corações, e encaminha os nossos corações para Ele; e, ao fazê-lo, age como um Consolador para nós. Agora,

 

 

IV. Investigarei a utilidade de ter os nossos corações direcionados ao amor de Deus.

 

1. Isso é muito útil para aumentar o nosso amor a Deus. Nunca o amor a Deus, a Cristo, ao seu Evangelho, às pessoas, aos Seus caminhos e ordenanças, foi mais frio do que é agora. Há grande necessidade de mantê-lo vivo e aumentado; e nada pode mais efetivamente fazê-lo, do que isso: ter nossos corações encaminhados no amor de Deus. Foi este que, sendo derramado em nossos corações, produziu pela primeira vez o nosso amor a Deus; e somente ele pode animá-lo e estimulá-lo, depois de ter se tornado frio. Conforme a percepção que temos do amor de Deus por nós, é que o nosso amor para Ele se eleva. Os seus muitos pecados lhe são perdoados, porque muito amou; mas aquele a quem pouco é perdoado pouco ama (Lucas 7:47).

 

2. Isso é muito útil para promover a amor ao próximo. Atualmente há uma decadência muito visível do amor fraternal entre os santos; o que se manifesta a partir dessas discórdias, divisões, contendas e maledicências que em todos os lugares abundam nas igrejas. Agora, nada é mais provável para recuperar o nosso amor de uns para com os outros, do que ter nossos corações encaminhados no amor de Deus. Os santos primitivos, tendo uma grande efusão do Espírito sobre eles, e um grande senso do amor de Deus por eles, eram cheios de afeição uns aos outros. De tal maneira, que não havia necessidade de ser estimulados; pois eles foram ensinados por Deus a amar uns aos outros. Não, mesmo no tempo de Tertuliano, tão forte e veemente era o seu amor um pelo outro, que os próprios pagãos não podiam deixar de tomar conhecimento disso, enquanto caminhavam pelas ruas, e diziam: Vide, ut se invicem diligant. Veja, como eles se amam! Não há maior incentivo para esse dever do que o amor de Deus e de Cristo. Por isso, o apóstolo João, após ter discursado sobre o amor de Deus ao enviar o seu Filho para morrer pelos pecadores, assim argumenta: “Amados, se Deus assim nos amou, também nós devemos amar uns aos outros” [1 João 4:11]; bem sabendo que nada poderia mais veementemente provocá-lo.

 

3. Isso é muito útil para ampliar a nossa obediência a Deus. E, de fato, parece ser com este objetivo que o apóstolo coloca esta petição aqui. No versículo anterior ele expressa sua confiança naqueles Tessalonicenses, que tanto fizeram, e fariam, as coisas que foram ordenadas a eles, e, a respeito disso, ora para que o Senhor encaminhe o coração deles no amor de Deus; sabendo que nada mais dilataria os seus corações a seguir com alegria nos caminhos dos mandamentos de Deus. Assim, isto constrange as almas a viverem para a glória de Deus; e faz com que até mesmo aqueles que estavam vagarosos no cuidado, sejam fervorosos no espírito, servindo ao Senhor. Nunca houve mais necessidade de ter nossos os nossos corações encaminhados no amor de Deus do que agora; quando há uma tal negligência do dever entre os professos; não apenas em seus quartos e famílias, mas também na igreja de Deus.

 

4. Isso é muito útil para nos habilitar a lamentar corretamente pelo pecado. Temos grande motivo para nos humilharmos diante de Deus, e para lamentar tanto pelos nossos próprios pecados e pelos pecados dos outros. Mas nós nunca nos lamentamos mais, nem melhor, do que quando impressionados com um senso do amor de Deus. É isso que lança nossa humilhação pelo pecado em uma via adequada. Nossa tristeza por isso nunca se eleva; nem somos envergonhados por ele, e o ódio por ele cresce, mais do que quando somos feitos sensíveis ao pacificador amor de Deus por nós. Veja Ezequiel 16:61-63. Foi um olhar amoroso de Cristo, que levou Pedro a sair e chorar amargamente, depois de tão vergonhosamente negar o seu Senhor; e foi uma revelação do amor de Cristo para a pobre mulher, que produziu aquelas torrentes de lágrimas dos olhos, com as quais ela lavou os pés de Cristo, e os enxugou com os cabelos de sua cabeça.

 

5. Isso é muito útil por habilitar-nos a carregar a cruz de Cristo com alegria; e, talvez, esta pode ser a razão pela qual esta outra cláusula é adicionada: e na paciência de Cristo. Isso pode intencionar, seja uma paciente espera pelo segundo Advento de Cristo, e é o que a nossa versão parece considerar; ou um paciente carregar a cruz por amor de Cristo. As palavras no original admitirão ambos os sentidos. É o dever dos santos o suportar todas as injúrias e provações, pacientemente, por causa de Cristo; e isso, em imitação dAquele que lhes deixou um exemplo. E eles têm grande necessidade de considerá-lO, que suportou tamanha oposição dos pecadores contra Si mesmo; para que eles não desfaleçam, e nem enfraqueçam em seus espíritos. E não apenas uma consideração da Pessoa de Cristo, mas um sentimento do amor de Deus é muito necessário para apoiá-los em dispensações adversas da providência; para que quando eles a tenham, gloriem-se nas tribulações, sabendo que esta opera a paciência, e a paciência a experiência, e a experiência a esperança, e a esperança não traz confusão, porquanto o amor de Deus está derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado (Romanos 5:5). Por isso o apóstolo talvez cogitou orar, para que os seus corações fossem encaminhados no amor de Deus, a fim de que eles pudessem suportar com paciência todas as coisas por amor de Cristo. Assim, tendo considerado a natureza do amor de Deus, e lhes demonstrado o que é ser encaminhado nele, concluirei tudo com aquelas calorosas petições do apóstolo nos dois últimos versículos do capítulo anterior… “E o próprio nosso Senhor Jesus Cristo e nosso Deus e Pai, que nos amou, e em graça nos deu uma eterna consolação e boa esperança, console os vossos corações, e vos confirme em toda a boa palavra e obra”.