[Capítulo 12 do livro The Doctrine of Election • Editado]
Durante as últimas duas ou três gerações, o púlpito tem dado cada vez menos importância à pregação doutrinária, até mesmo hoje — com raríssimas exceções — ela não tem lugar. Em alguns lugares o clamor do banco era: queremos uma vívida experiência e não doutrina seca; em outros: precisamos de sermões práticos e não de dogmas metafísicos; e ainda em outros: dá-nos Cristo, e não teologia. É triste dizer, mas esses clamores insensatos foram geralmente atendidos; “insensatos”, dizemos, pois não há outra forma segura de experiência de testes, como não há fundamento sobre o qual construir práticas, se eles estiverem dissociados da doutrina Bíblica; assim como Cristo não pode ser conhecido, a menos que Ele seja pregado (1 Coríntios 1:23), e Ele certamente não pode ser “pregado” se a doutrina é engavetada. Várias razões podem ser dadas para a lamentável falha do púlpito, as principais dentre elas sendo a preguiça, desejo de popularidade, “evangelismo” superficial e unilateral, amor pelo sensacional.
Preguiça. É uma tarefa muito mais exigente, algo que exige confinamento muito mais restrito em estudo, preparar uma série de sermões sobre, digamos, a doutrina da justificação, do que fazer pregações sobre oração, missões, ou obra pessoal. Isso demanda uma mais ampla familiaridade com as Escrituras, uma disciplina mais rígida da mente, e uma mais extensa leitura dos escritores mais antigos. Mas isso foi uma exigência muito grande para a maioria dos ministros, e por isso eles escolheram a linha de menor resistência e seguiram um curso mais fácil. É por causa de sua propensão a essa fraqueza que o ministro é particularmente exortado, “persiste em ler… tem cuidado de ti mesmo e da doutrina. Persevera nestas coisas” (1 Timóteo 4:13, 16), e novamente: “procura apresentar-te a Deus aprovado, como obreiro que não tem de que se envergonhar, que maneja bem a palavra da verdade” (2 Timóteo 2:15).
Desejo por popularidade. É natural que o pregador queira agradar os seus ouvintes, mas é espiritual que ele deseje e vise a aprovação de Deus. Nenhum homem pode servir a dois senhores. Como o apóstolo expressamente declarou: “se estivesse ainda agradando aos homens, não seria servo de Cristo” (Gálatas 1:10), estas são palavras solenes. Como elas condenam aqueles cujo objetivo principal é pregar para igrejas lotadas. Contudo, que graça é necessária para nadar contra a maré da opinião pública, e pregar o que é inaceitável para o homem natural. Mas, por outro lado, quão temível será a desgraça daqueles que, a partir de uma determinação para agradar os homens, deliberadamente retêm aquelas porções da verdade mais necessária aos seus ouvintes. “Não acrescentareis à palavra que vos mando, nem diminuireis dela” (Deuteronômio 4:2). Oh! poder dizer com Paulo: “Como nada, que útil seja, deixei de vos anunciar… Portanto, no dia de hoje, vos protesto que estou limpo do sangue de todos” (Atos 20:20, 26).
A “evangelização” superficial e unilateral. Muitos dos pregadores dos últimos 50 anos atuaram como se o primeiro e o último objeto de sua vocação fosse a salvação das almas, tudo sendo feito para curvar-se a esse objetivo. Em consequência, a alimentação do rebanho, a manutenção de uma disciplina Bíblica na igreja, e a inculcação de piedade prática foram lançadas fora; e com muita frequência todos os tipos de dispositivos mundanos e métodos carnais foram empregados sob o argumento de que o fim justifica os meios; e, assim, as igrejas foram cheias de membros não-regenerados. Na realidade, esses homens destruíram o seu próprio objetivo. O coração duro deve ser arado e atribulado antes que ele possa ser receptivo à semente do Evangelho. Instrução doutrinária deve ser dada sobre o caráter de Deus, os requisitos de Sua lei, a natureza e a hediondez do pecado, se um fundamento deve ser colocado para o verdadeiro evangelismo. É inútil pregar a Cristo para as almas até que elas vejam e sintam a sua desesperada necessidade de Deus.
Amor pelo sensacional. Em tempos mais recentes, o curso foi alterado. Uma geração surgiu, a qual era menos tolerante até mesmo à evangelização superficial, que hesitava diante de qualquer coisa na escuta do que fosse projetado para torná-los minimamente desconfortáveis em seus pecados. É claro, essas pessoas não seriam expulsas das igrejas, antes elas deveriam ser atendidas e supridas com algo que agradasse os seus ouvidos. O cenário da ação pública ofereceu material abundante. A guerra mundial e personagens como o Kaiser, Stalin, Mussolini eram muitos aos olhos do público, como Hitler e Abissínia foram desde então. Sob o pretexto de expor profecia, o púlpito voltou sua atenção para o que foi denominado de “os Sinais dos Tempos” e a membresia foi levada a acreditar que os “ditadores” estavam cumprindo as previsões de Daniel e Apocalipse. Não havia nada em tal pregação que atingisse a consciência, ainda assim dezenas de milhares foram iludidos a pensar que o próprio ouvir de tal lixo as tornava religiosas, e assim, as igrejas foram habilitadas a “seguir em frente”.
Antes de prosseguir, que seja salientado que as objeções mais comuns feitas contra a pregação doutrinária são bastante inúteis. Tome, em primeiro lugar, o clamor pela pregação experimental. Em certos lugares — lugares que embora muito restritos, ainda se consideram os próprios defensores da ortodoxia e os mais altos expoentes da piedade vital — a demanda é por um rastreamento detalhado das variadas experiências de uma alma vivificada tanto sob a lei como sob a graça, e qualquer outro tipo de pregação, especialmente doutrinária, é desaprovada como sendo nada mais do que o fornecimento de casca. Mas, como um escritor laconicamente disse: “Apesar de que as questões doutrinárias são, por alguns, consideradas apenas como a casca da religião, e a experiência como a semente, contudo, que seja lembrado que não há acesso à semente, senão através da casca; e enquanto a semente dá valor à casca, a casca é a guardiã da semente. Destrua àquela e você fere esta”. Elimine a doutrina e você não tem mais nada pelo que testar a experiência, e o misticismo e fanatismo são inevitáveis.
Em outros lugares a procura tem sido pela pregação sobre linhas práticas, supondo e insistindo essas pessoas que a pregação doutrinária é meramente teórica e impraticável. Tal conceito revela lamentável ignorância. “Toda a Escritura é divinamente inspirada, e proveitosa [primeiro] para ensinar, [e depois] para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça” (2 Timóteo 3:16). Estude as epístolas de Paulo e veja quão firmemente esta ordem é mantida. Os Capítulos 1-11 da Epístola aos Romanos são estritamente doutrinais, e os Capítulos de 12-16 são exortações práticas. Vejamos um exemplo concreto: em 1 Timóteo 1:9-10, o apóstolo elabora um catálogo de pecados contra os quais as denúncias da lei são iminentemente dirigidas, em seguida, ele acrescentou: “e para o que for contrário à sã doutrina”. Que evidente indicação é esta que o erro em princípios fundamentais tem uma influência mui desfavorável na prática, e que na proporção em que a doutrina de Deus é desacreditada, a autoridade de Deus é repudiada. É a doutrina que fornece motivos para a obediência aos preceitos.
Em relação àqueles que clamam, pregamos a Cristo e não teologia, nós temos observado que eles nunca O pregam como Aquele com quem Deus fez uma aliança (Salmos 89:3), nem como Seu “eleito” em quem Sua alma se deleita (Isaías 42:1). Eles pregam um “Cristo” que é o produto de sua própria imaginação, a criação do sentimento. Se pregamos o Cristo das Escrituras devemos anunciá-lO como o servo da escolha de Deus (1 Pedro 2:4), como o Cordeiro “cordeiro imaculado e incontaminado, O qual, na verdade, em outro tempo foi conhecido, ainda antes da fundação do mundo” (1 Pedro 1:19-20), como Alguém “posto para queda e elevação de muitos em Israel” (Lucas 2:34), como “pedra de tropeço, e uma rocha de escândalo” [Romanos 9:33]. Cristo não deve ser pregado como separado de Seus membros, mas como a Cabeça do Seu corpo místico — Cristo e aqueles a quem Deus escolheu, nEle, são um só, eternamente e imutavelmente, um. Então não pregue um Cristo mutilado. Pregue-O segundo os conselhos eternos de Deus.
Agora, se a pregação doutrinária, em geral, é tão impopular, a doutrina da eleição é particular e preeminentemente assim. Sermões sobre a predestinação são, com raríssimas exceções, acaloradamente ressentidos e amargamente denunciados. “Parece haver um preconceito inevitável na mente humana contra esta doutrina, e embora a maioria das outras doutrinas sejam recebidas por Cristãos professos, algumas com cautela, outras com prazer, contudo esta parece ser mais frequentemente desconsiderada e descartada. Em muitos de nossos púlpitos seria considerado um grande pecado e traição pregar um sermão sobre a eleição” (C. H. Spurgeon). Se esse era o caso há cinquenta anos, muito mais o é agora. Mesmo nos círculos declaradamente ortodoxos a simples menção da predestinação é como o acenar de um pano vermelho diante de um touro. Nada manifesta tão rapidamente a inimizade da mente carnal no presunçoso religioso e fariseu hipócrita quanto o faz a proclamação da Soberania Divina e Sua graça distintiva; e, agora, poucos de fato são os homens remanescentes que se atrevem a lutar bravamente pela verdade.
Temíveis além das palavras são as extensões do horror e do ódio em relação à eleição que têm acompanhado líderes declaradamente evangélicos em seus discursos blasfemos contra esta bendita verdade; nós nos recusamos a contaminar estas páginas, citando seus discursos ímpios. Alguns foram tão longe a ponto de dizer que, mesmo que a predestinação seja revelada nas Escrituras é uma doutrina perigosa, criando dissensão e divisão, e, portanto, não deveria ser pregada nas igrejas; esta é a mesma objeção usada pelos Romanistas contra oferecer a Palavra de Deus para as pessoas comuns em sua própria língua materna. Se devemos negar a verdade, de modo a pregar apenas o que é aceitável para o homem natural, quanto sobraria? A pregação de Cristo crucificado para os Judeus é escândalo e loucura para os Gregos (1 Coríntios 1:23). O púlpito deve silenciar-se quanto a isso? Porventura os servos de Deus deixarão de proclamar a Pessoa, ofício e obra de Seu Filho amado, simplesmente porque Ele é “uma pedra de tropeço e rocha de escândalo” (1 Pedro 2:8) para os réprobos?
Muitas são as objeções apresentadas contra essa doutrina por aqueles que desejam desacreditá-la. Alguns dizem que a eleição não deveria ser pregada, porque é muito misteriosa, e coisas encobertas pertencem ao Senhor. Mas, ela não é um segredo, pois Deus claramente a revelou em Sua Palavra; e se não deve ser pregada por causa de seu mistério, então, pela mesma razão, nada deve ser dito sobre a unidade da natureza Divina subsistente em uma Trindade de Pessoas, nem sobre o nascimento virginal, nem da ressurreição dos mortos. Segundo outros, a doutrina da eleição corta o nervo de todos empreendimentos missionários, na verdade se opõe a toda pregação, tornando-a totalmente negatória. Então, nesse caso, a pregação do próprio Paulo era totalmente inútil, pois estava repleta desta doutrina: leia suas epístolas e será encontrado que ele proclamou a eleição continuamente, mas nunca lemos sobre ele deixar de prega-la porque ela tornou seu trabalho inútil.
Paulo ensinou que “Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade” (Filipenses 2:13), mas não acho que por causa disso ele deixou de exortar os homens à desejarem e a esforçarem-se pelas coisas que agradam a Deus, e labutarem, eles mesmos, com todas as suas forças. Se não somos capazes de perceber a consistência das duas coisas, isso não é motivo por que nos recusemos a crer e prestar atenção tanto a uma ou à outra. Alguns argumentam contra a eleição por que prega-la estremece a segurança e enche a mente dos homens com dúvidas e medos. Mas, especialmente nos dias de hoje devemos ser gratos por qualquer verdade que quebre a complacência de professos vazios e desperte os indiferentes a examinarem-se diante de Deus. Com tanta razão pode-se dizer que a doutrina da regeneração não deve ser promulgada, pois, é algo mais fácil certificar-me de que eu realmente nasci de novo do que é verificar se eu sou um dos eleitos de Deus? Não é.
Outros ainda insistem que a eleição não deve ser pregada porque o ímpio fará um mau uso da mesma, que eles abrigarão atrás dela desculpa para a sua despreocupação e procrastinação, argumentando se eles foram eleitos para a salvação, enquanto eles vivem como eles querem e multiplicam seus pecados. Tal objeção é pueril, infantil ao extremo. Mas, que verdade há ali que os ímpios não perverteram? Por que, eles tornarão a graça de Deus em dissolução, e utilizarão (ou melhor, mal utilizarão) Sua própria bondade, Sua misericórdia, Sua longanimidade, para a continuarem em um curso de ação ímpia. Arminianos nos dizem que pregar a segurança eterna do Cristão incentiva a preguiça; enquanto no extremo oposto, hiper-Calvinistas opõem-se à exortação do regenerado para o arrependimento e a fé no fundamento de que isso inculca a capacidade da criatura. Não vamos fingir ser sábios acima do que está escrito, mas preguemos todo o conselho de Deus e deixemos os resultados por conta Ele.
O servo de Deus não deve ser intimidado ou desencorajado de professar e proclamar a pura verdade. Sua comissão, hoje, é a mesma de Ezequiel no passado: “E tu, ó filho do homem, não os temas, nem temas as suas palavras; ainda que estejam contigo sarças e espinhos, e tu habites entre escorpiões, não temas as suas palavras, nem te assustes com os seus semblantes, porque são casa rebelde. Mas tu lhes dirás as minhas palavras, quer ouçam quer deixem de ouvir, pois são rebeldes” (Ezequiel 2:6-7). Ele deve esperar encontrar oposição, especialmente daqueles que fazem a mais alta profissão, e fortificar-se contra isso. O anúncio da soberana escolha Divina de homens evocou o espírito de maldade e perseguição desde os tempos remotos. Fê-lo assim, tão antigamente quanto nos dias de Samuel. Quando o profeta anunciou a Jessé sobre seus sete filhos “o Senhor não tem escolhido a estes” (1 Samuel 16:10), a ira de seu primogênito se acendeu contra Davi (1 Samuel 17:28). Assim também, quando o próprio Cristo enfatizou a graça de Deus ao distinguir aos Gentios, a saber, a viúva de Sarepta e Naamã, o Sírio, os adoradores da sinagoga ficaram “cheios de ira”, e procuravam matá-lO (Lucas 4:25-29). Mas o próprio ódio que esta verdade solene desperta é uma das provas mais convincentes de sua origem Divina.
A eleição deve ser pregada e anunciada, em primeiro lugar, porque ela é expressa em totalidade através das Escrituras. Não há um único livro na Palavra de Deus, onde a eleição não é expressamente declarada, ou admiravelmente ilustrada, ou claramente implícita. Gênesis é cheio dela: a diferença que o Senhor fez entre Naor e Abraão, Ismael e Isaque, e entre Seu amado Jacó e Seu odiado Esaú são exemplos deste tema. Em Êxodo vemos a distinção feita por Deus entre os Egípcios e os Hebreus. Em Levítico a expiação e todos os sacrifícios eram para o povo de Deus, não sendo ordenados a ir e “oferta-los” os pagãos ao redor. Em Números, Jeová usou a Balaão para anunciar o fato de que Israel era “o povo” que “habitará só, e entre as nações não será contado” (23:9); e, portanto, ele foi obrigado a clamar: “Quão formosas são as tuas tendas, ó Jacó, as tuas moradas, ó Israel!” (Números 24:5). Em Deuteronômio está escrito “Porque a porção do Senhor é o seu povo; Jacó é a parte da sua herança” (32:9).
Em Josué vemos a misericórdia distintiva que o Senhor derramou sobre Raabe, a meretriz, enquanto toda a sua cidade estava condenada à destruição. Em Juízes, a soberania de Deus aparece nos instrumentos improváveis selecionados, pelos quais Ele operou vitória para Israel: Débora, Gideão, Sansão. Em Rute temos Orfa beijando a sua sogra e retornando para os seus deuses, enquanto Rute se apegou a ela e obteve herança em Israel — quem as fez diferentes? Em 1 Samuel, Davi é escolhido para o trono, preferido a seus irmãos mais velhos. Em 2 Samuel, aprendemos sobre a eterna aliança “que em tudo será bem ordenada e guardada” (23:5). Em 1 Reis Elias torna-se uma bênção para uma única viúva escolhida dentre muitas; enquanto que em 2 Reis somente Naamã, dentre todos os leprosos, foi purificado. Em 1 Crônicas está escrito: “vós, filhos de Jacó, seus escolhidos” (16:13); enquanto que em 2 Crônicas somos feitos maravilhados com a graça de Deus concedendo arrependimento a Manassés. E assim poderíamos continuar. Salmos, Profetas, Evangelhos e Epístolas são tão repletos dessa doutrina, de forma que aquele que passa correndo consegue ler.
Em segundo lugar, a doutrina da eleição deve ser pregada de forma proeminente porque o Evangelho não pode ser proclamado biblicamente sem ela. Infelizmente, tão profunda é a escuridão e tão difundida a ignorância que agora prevalece, que poucos de fato percebem que há alguma ligação vital entre a predestinação e o Evangelho de Deus. Pare, então, por um momento e reflita seriamente nestas perguntas: o sucesso ou fracasso do Evangelho é uma questão de sorte? ou, dito de outra maneira, são os frutos do empreendimento mais estupendo de todos — a obra expiatória de Cristo — deixados na dependência do capricho humano? Poderia ser afirmado positivamente que o Redentor ainda: “verá o fruto do trabalho da sua alma, e ficará satisfeito” (Isaías 53:11), se tudo dependesse da vontade do homem caído? Deus tem tão pouca consideração pela morte de Seu filho que Ele a deixou incerta a respeito de quantos serão salvos por Ele?
“O evangelho de Deus” (Romanos 1:1) só pode ser biblicamente apresentado como o Deus Triuno é reconhecido e honrado nele. O “Evangelho” atenuado de nossa época degenerada limita a atenção de seus ouvintes ao sacrifício de Cristo, ao passo que a salvação se originou no coração de Deus, o Pai, e é consumada pelas operações de Deus, o Espírito. Todas as bênçãos da salvação são comunicadas de acordo com os conselhos eternos de Deus, e foi por toda a eleição da graça (e por nenhum outro) que Cristo operou salvação. O primeiro capítulo do Novo Testamento anuncia que Jesus “salvará o seu povo dos seus pecados” [Mateus 1:21], não que Ele “pode”, mas que “salvará”; não oferecerá ou tentará, mas, de fato, os “salvará”. Mais uma vez; nem uma única alma jamais seria beneficiada com a morte de Cristo, se o Espírito não fosse concedido para aplicar Suas virtudes à semente escolhida. Qualquer homem, então, que omite a eleição do Pai, e as operações soberanas e eficazes do Espírito, não prega o Evangelho de Deus, não importa qual seja a sua reputação como um “ganhador de almas”.
Temos exposto a falta de sentido dessas acusações que são feitas contra a pregação doutrinária, em geral, e os argumentos que são feitos contra a proclamação da predestinação, em particular. Em seguida, apontamos algumas das razões pelas quais esta grande verdade deve ser anunciada. Primeiro, porque as Escrituras, de Gênesis a Apocalipse, estão repletas dela. Em segundo lugar, porque o Evangelho não pode ser biblicamente pregado sem ela. A grande comissão dada aos servos públicos de Cristo, devidamente chamados e capacitados por Ele, diz assim: “pregai o evangelho” (Marcos 16:15), não partes dele, mas todo o Evangelho. O Evangelho não deve ser pregado em partes, mas em sua totalidade, de modo que cada pessoa da Trindade seja igualmente honrada. Na medida em que o Evangelho é mutilado, assim como qualquer ramo do sistema evangélico é suprimido, o Evangelho não é pregado. Começar no Calvário, ou até mesmo em Belém, é começar no meio: precisamos retornar para os eternos conselhos da graça Divina.
Justamente um renomado reformador colocou: “A eleição é o fio de ouro que atravessa todo o sistema Cristão… é o vínculo que o liga e mantém unido, de forma que sem isso é como um sistema de areia sempre pronto a cair aos pedaços. É o cimento que mantém a construção unida; ou melhor, é a alma que anima todo o corpo. É tão misturado e entrelaçado com todo o esquema de doutrina do Evangelho que, quando o primeiro é excluído, o último sangra até a morte. Um embaixador deve entregar toda a mensagem que lhe é comissionada. Ele não deve omitir nenhuma parte dela, mas deve declarar a mente do soberano que ele representa, plenamente e sem reservas. Ele não deve dizer nem mais nem menos do que as instruções que seu juiz exigir, de outro modo, ele incorre no descontentamento de quem o enviou, talvez perca a cabeça. Que os ministros de Cristo ponderem bem nisso” (Jerome Zanchius, 1562).
Além disso, o Evangelho deve ser pregado “a toda a criatura”, isto é, a todos os que frequentam o ministério Cristão, seja Judeu ou Gentio, jovem ou velho, rico ou pobre. Todos os que esperam as ministrações dos servos de Deus têm o direito de ouvir o Evangelho plena e claramente, sem qualquer parte dele sendo retido. Agora uma parte importante do Evangelho é a doutrina da eleição: a escolha eterna, livre e irreversível de Deus de certas pessoas em Cristo para a vida eterna. Deus previu que, se o sucesso da pregação de Cristo crucificado ficasse condicionado à resposta feita a ela por homens caídos, haveria um desprezo universal da mesma. Isso fica claro, “e todos à uma começaram a escusar-se” (Lucas 14:18). Por isso Deus determinou que um remanescente dos filhos de Adão seriam os eternos monumentos da Sua misericórdia, e, consequentemente, Ele decretou conferir-lhes uma fé e arrependimento salvíficos. Isso é uma boa nova, de fato: tudo realizado correta e imutavelmente pela vontade soberana de Deus.
Cristo é o supremo evangelista, e encontramos que esta doutrina estava em Seus lábios durante todo o Seu ministério. “Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim te aprouve” [Mateus 11:25-26]; “por causa dos escolhidos serão abreviados aqueles dias” [Mateus 24:22]”; “vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo” (Mateus 11:25; 24:22; 25:34). “E ele disse-lhes: A vós vos é dado saber os mistérios do reino de Deus, mas aos que estão de fora todas estas coisas se dizem por parábolas” (Marcos 4:11). “Alegrai-vos antes por estarem os vossos nomes escritos nos céus” (Lucas 10:20). “Todo o que o Pai me dá virá a mim”, “mas vós não credes porque não sois das minhas ovelhas, como já vo-lo tenho dito”; “não me escolhestes vós a mim, mas eu vos escolhi a vós” (João 6:37; 10:26; 15:16).
O mesmo é verdade para o maior dos apóstolos. Tome a primeira e principal de suas epístolas, a que é expressamente dedicada a um desvelamento do “evangelho de Deus” (Romanos 1:1). No capítulo 8, ele descreve aqueles que são “chamados segundo o propósito de Deus” (v. 28), e em consequência do que eles eram os que “dantes conheceu” e os que “predestinou para serem conformes à imagem de seu filho” (v. 29). Todo o capítulo 9 é dedicado a isso: ali, ele mostra a diferença que Deus fez entre Ismael e Isaque, entre Esaú e Jacó, os vasos da ira e os vasos de misericórdia. Ali, ele nos diz que Deus “compadece-se de quem quer, e endurece a quem quer” (v. 18). Essas coisas não foram escritas para algumas pessoas em algum canto obscuro, mas dirigidas para os santos em Roma “o que consistia, na verdade, em trazer esta doutrina sobre o palco do mundo inteiro, selando uma sanção universal sobre ela e anunciando-a aos crentes em geral em toda a terra” (Zanchius).
A doutrina da eleição deve ser pregada, em terceiro lugar, porque a graça de Deus não pode ser mantida sem ela. As coisas estão agora a um passo tão lamentável que o restante deste capítulo realmente deve ser dedicado à elucidação e amplificação deste importante ponto; mas temos que contentar-nos com algumas breves observações. Existem milhares de evangelistas Arminianos na Cristandade hoje que negam a predestinação, direta ou indiretamente, e ainda acham que eles estão magnificando a graça Divina. A ideia é que Deus, por Sua grande bondade e amor, providenciou a salvação em Cristo para toda a família humana, e isso é o que Ele agora deseja e busca. O ponto de vista destes homens é que Deus faz uma oferta de Sua graça salvadora através da mensagem do Evangelho, fazendo-a ao livre-arbítrio de todos os que o ouvem, e que eles podem aceitar ou recusar. Mas isso absolutamente não é “graça”.
A graça Divina e mérito humano são tão distantes um do outro como os polos são diretamente opostos. Mas não é assim com a “graça” do Arminiano. Se a graça é apenas algo que é oferecido para mim, algo que eu tenho que melhorar se isso tiver que fazer algum bem, então a minha aceitação da mesma é um ato meritório, e eu tenho motivo para gloriar-me. Se alguns recusam a graça e eu a recebo, então isso deve ser (já que é totalmente uma questão de livre-arbítrio do ouvinte) porque eu tenho mais sensibilidade do que eles têm, ou porque o meu coração é mais flexível do que o deles, ou porque a minha vontade é menos obstinada; e fosse a pergunta colocada a mim “porque, quem te faz diferente?” (1 Coríntios. 4:7), então a única resposta verdadeira que eu poderia dar seria dizer: eu me fiz diferente, e, assim, coloco a coroa de honra e glória sobre a minha própria cabeça.
A isso, pode ser respondido por alguns: Nós cremos que o coração do homem natural é duro e sua vontade obstinada, mas Deus em Sua graça envia o Espírito Santo e Ele convence os homens do pecado e, no dia da Sua visitação derrete seus corações e tenta atraí-los a Cristo; ainda assim, eles devem responder às suas “doces ofertas” e cooperar com Sua “graciosa influência”. Aqui o fundamento de que seja totalmente uma questão da vontade humana é abandonado. No entanto, também aqui não temos nada melhor do que um burlesco da graça Divina. Esses mesmos homens afirmam que muitos daqueles que são os sujeitos dessas influências do Espírito, resistem às mesmas e perecem. Assim, aqueles que são salvos, devem a sua salvação (em última análise) ao seu aprimorar as ofertas do Espírito, eles “cooperam” com Ele. Em tal caso, as honras seriam divididas entre as operações do Espírito e os meus aprimoramentos das mesmas. Mas isso não é “graça” de modo algum.
Há ainda outros que procuram atenuar o gume afiado da espada do Espírito, dizendo: Cremos na doutrina da predestinação, mas não como vocês Calvinistas a ensinam. Uma única palavra serve para desatar este nó para nós, “presciência”: a eleição Divina baseia-se na presciência Divina. Deus previu aqueles que se arrependeriam de seus pecados e aceitariam a Cristo como seu Salvador, e, assim, Ele os escolheu para a salvação. Aqui, novamente, méritos humanos são trazidos. A graça não é livre, a tenda é amarrada pela “decisão” da criatura. Tal conceito carnal como esse inverte a ordem da Escritura, que ensina que a presciência Divina é baseada no propósito divino, ou seja, Deus prevê o que ocorrerá porque Ele decretou o que ocorrerá. Observe cuidadosamente a ordem em Atos 2:23 e Romanos 8:28b e 29. Em lugar nenhum o Espírito Santo fala nas Sagradas Escrituras sobre Deus prevendo ou conhecendo de antemão o nosso arrependimento e fé, sempre é a presciência das pessoas e nunca dos atos: “os que dantes conheceu” e não “o que Ele dantes conheceu”.
Mas a Escritura não diz “quem quiser, venha?”. Sim, ela diz, e a pergunta mais importante é, de onde vem a vontade de vir, no caso daqueles que respondem a esse convite? Homens em sua condição natural não estão dispostos: como Cristo declarou: “e não quereis vir a mim para terdes vida” (João 5:40). Qual, então, é a resposta? Esta: “o teu povo [diz o Pai ao Filho, veja o contexto] será mui voluntário no dia do teu poder” (Salmos 110:3). É o poder Divino, isso e nada mais, é o que torna dispostos os indispostos, o que supera toda a sua inimizade e obstinação, que impele ou “chama-os” aos pés do Senhor Jesus. A graça de Deus, meus leitores, é muito mais do que um conceito agradável para cantar, é um poder onipotente, uma dinâmica invencível, um princípio vitorioso sobre toda a resistência. “A minha graça [diz Deus] te basta” (2 Coríntios 10:9); Ele não pede nenhuma assistência de nossa parte. “Mas pela graça de Deus [e não minha cooperação] sou o que sou” 1 (Coríntios 15:10), disse o apóstolo.
A graça Divina fez muito mais do que tornar possível a salvação dos pecadores, ela assegura a salvação dos eleitos de Deus. Ela não somente provê a salvação para eles, ela opera a salvação para eles; e o faz de tal maneira que suas honras não são compartilhadas com a criatura. A doutrina da predestinação derruba este ídolo Dagon do “livre arbítrio” e os méritos humanos, pois nos diz que, se temos de fato resolvido e desejado apegar-nos a Cristo e à salvação por meio dEle, então, esta própria vontade e desejo são os efeitos do propósito eterno de Deus e o resultado do cumprimento eficaz de Sua graça, pois é Deus que opera em nós tanto o querer como o efetuar, segundo a Sua boa vontade; e, portanto, nós nos gloriamos somente no Senhor e atribuímos todo o louvor a Ele. Este escritor não procurou o Senhor, mas odiou, resistiu e esforçou-se para bani-lO de seus pensamentos; mas o Senhor o procurou, o derrubou ao chão (como fez com Saulo de Tarso), subjugou sua vil rebelião e fê-lo voluntário no dia do Seu poder. Isso é graça, de fato — graça soberana, maravilhosa, triunfante.
Em quarto lugar, a doutrina da eleição deve ser anunciada porque rebaixa o homem. Os Arminianos imaginam que eles o fazem, declarando a depravação total da família humana, mas em sua própria próxima declaração eles se contradizem ao insistir na sua capacidade de realizar atos espirituais. O fato é que “depravação total” é apenas uma expressão teológica sobre os lábios deles, a qual repetem como papagaios, pois eles não entendem nem acreditam na terrível implicação deste termo. A queda radicalmente afetou, corrompeu, cada parte e faculdade de nosso ser, e, portanto, se o homem é totalmente depravado segue-se necessariamente que nossas vontades são completamente escravizadas pelo pecado. Como a apostasia humana em relação a Deus resultou no escurecimento de seu entendimento, profanação de suas afeições, endurecimento de seu coração, assim ela trouxe a sua vontade à escravidão completa a Satanás. Ele não pode libertar-se mais do que pode um verme libertar-se estando debaixo do pé de um elefante.
Uma das marcas do povo de Deus é que eles não têm “confiança na carne” (Filipenses 3:3), e nada é tão bem projetado para trazê-los a esse estado como a verdade da eleição. Cale a predestinação Divina e você deve introduzir as obras da criatura, e isso torna a salvação contingente, e, portanto, não é nem por graça, nem pelas obras somente, mas uma mistura nauseante. O homem que pensa que pode ser salvo sem a eleição deve ter alguma confiança na carne, não importa o quão fortemente ele possa negar isso. Enquanto nós somos convencidos que está no poder de nossas próprias vontades o contribuir com algo para a nossa salvação, seja isso alguma vez tão pouco, nós permanecemos em confiança carnal, e, portanto, não somos verdadeiramente humildes diante de Deus. Isto não acontece até que sejamos trazidos para o lugar de auto-desespero, abandono de toda a esperança em nossas próprias habilidades, até que realmente olhemos para fora de nós mesmos buscando por libertação.
Quando a verdade da eleição é Divinamente aplicada aos nossos corações, somos levados a perceber que a salvação advém apenas da vontade de um Deus soberano, que “isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que se compadece” (Romanos 9:16). Quando nós somos assegurados de um sensível sentimento sobre aquelas palavras de Cristo “sem mim nada podeis fazer” (João 15:5), então o nosso orgulho recebe a sua ferida mortal. Enquanto nós entretemos a ideia louca de que podemos conceder uma mão de ajuda no empreendimento da nossa salvação, não há nenhuma esperança para nós; mas quando percebemos que somos barro nas mãos do Oleiro Divino, para sermos moldados em vasos de honra ou desonra, como Lhe aprouver, então devemos renunciar à nossa própria força, desesperar quanto a qualquer auto-ajuda, e orar, e submissamente esperar pelas operações poderosas de Deus; não oraremos e esperaremos em vão.
Em quinto lugar, a eleição deve ser pregada, porque é um meio Divinamente designado de fé. Um dos primeiros efeitos produzidos em ouvintes sérios de espírito é agitá-los até fervorosamente indagarem: Eu sou um dos eleitos? e a diligentemente examinarem-se diante de Deus. Em muitos casos, isso leva à dolorosa descoberta de que a sua profissão é vazia, descansando em nada melhor do que alguma “decisão” feita por eles anos antes, sob estresse emocional. Nada é mais projetado para revelar uma falsa conversão do um anúncio Bíblico das marcas de nascimento dos eleitos de Deus. Aqueles que são predestinados para a salvação são feitos os sujeitos de uma obra milagrosa de graça em seus corações, e isso é uma coisa muito diferente de um ato da criatura de “decidir por Cristo” ou tornar-se um membro de alguma igreja. Muito mais do que uma fé natural é necessário para unir a alma a um Cristo sobrenatural.
A pregação da eleição atua como um mangual ao separar o trigo do joio. “De sorte que a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus” (Romanos 10:17), e como pode “a fé dos eleitos de Deus” (Tito 1:1) ser gerada e fortalecida, se a verdade da eleição for suprimida? A predestinação Divina não anula o uso de meios, mas garante a continuidade e a eficácia deles. Deus Se comprometeu a honrar aqueles que O honram, e a pregação que traz mais glória ao Senhor é a que Ele mais abençoa. Isso nem sempre é aparente agora, mas será totalmente manifesto no dia vindouro, quando será que muito do que a Cristandade considerou como ouro, prata e pedras preciosas não era nada além de madeira, feno e palha. A salvação e o conhecimento da verdade estão inseparavelmente ligados (1 Timóteo 2:4), mas como os homens podem chegar a um conhecimento salvador da verdade, se a parte mais vital e fundamental for retida deles?
Em sexto lugar, a eleição deve ser pregada, porque incita à santidade. O que pode ser um incentivo mais poderoso à piedade do que um coração que está dominado por um sentimento da soberana e maravilhosa graça de Deus!? A percepção de que Ele estabeleceu Seu coração sobre mim desde toda a eternidade, que Ele me escolheu dentre muitos, quando eu não tinha mais direito sobre Sua atenção do que eles tinham, que Ele me escolheu para ser um objeto de Seu favor distintivo, dando-me a Cristo, escrevendo o meu nome no livro da vida, e em Seu tempo determinado trazendo-me da morte para a vida e dando-me a união vital com o Seu Filho amado; este fato me encherá de gratidão e fará com que eu busque honrar e agradar a Deus. O amor eletivo de Deus por nós gera em nós um amor sem fim por Ele. Nenhuns motivos tão doces ou tão poderosos quanto o amor de Deus nos constrangem.
Em sétimo lugar, a eleição deve ser pregada, porque promove o espírito de louvor. Disse o apóstolo: “Mas devemos sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados do Senhor, por vos ter Deus elegido desde o princípio para a salvação, em santificação do Espírito, e fé da verdade” (2 Tessalonicenses 2:13). Como pode ser de outra forma? Gratidão deve culminar em adoração. Um senso da graça eletiva e amor eterno de Deus nos faz bendizer a Ele como nada mais o faz. Cristo elevou especial agradecimento ao Pai por Sua misericórdia distintiva (Mateus 11:25). A gratidão do Cristão flui por causa das operações regeneradoras e santificadoras do Espírito; ela é estimulada de forma revigorada pela obra redentora e intercessora de Cristo; mas deve subir ainda mais alto e contemplar a primeira causa, a graça soberana do Pai, que planejou toda a nossa salvação. Como, então, a eleição é a grande questão de ação de graças a Deus, ela deve ser pregada livremente ao Seu povo.
O valor desta bendita doutrina aparece em sua adequação e suficiência para estabilizar e estabelecer os verdadeiros Cristãos na certeza da sua salvação. Quando as almas regeneradas são habilitadas a crer que a glorificação dos eleitos é tão infalivelmente fixa no propósito eterno de Deus de forma que é impossível que qualquer um deles se perca, e quando eles são habilitados a perceber biblicamente que eles próprios pertencem ao povo escolhido de Deus, como isso fortalece e confirma a sua fé. Tal confiança não é presunçosa — embora qualquer outra certamente o seja — pois cada pessoa genuinamente convertida tem o direito de considerar-se como pertencendo àquela companhia favorecida, uma vez que o Espírito Santo não vivifica ninguém, senão aqueles que foram predestinados pelo Pai e redimidos pelo Filho. Esta é uma esperança “que não traz confusão”, pois ela não pode evocar decepção quando entretida por aqueles em cujos corações o amor de Deus é derramado pelo Espírito (Romanos 5:5).
A santa segurança que emana da apreensão crente desta grande verdade é forçosamente estabelecida pelo apóstolo nos versículos finais de Romanos 8. Ali ele nos assegura: “E aos que predestinou a estes também chamou; e aos que chamou a estes também justificou; e aos que justificou a estes também glorificou” (v. 30). Tal princípio garante tal fim: a salvação que se originou desde uma eternidade passada deve ser consumada em uma eternidade futura. A partir de tais grandes premissas, Paulo evocou a bendita conclusão: “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (v. 31). E, novamente: “Quem intentará acusação contra os escolhidos de Deus? É Deus quem os justifica” (v. 33). E mais uma vez: “Quem nos separará do amor de Cristo?” (v. 35). Se esse precioso córrego emana dessa fonte, então quão grande é a loucura e quão hediondo o pecado daqueles que desejam vê-lo barrado. A segurança eterna das ovelhas de Cristo não pode ser apresentada em toda a sua força, até que ela se baseie no decreto Divino.
Quão inclinado é o crente tremente a duvidar de sua perseverança final, pois ovelhas (tanto naturais e espirituais) são criaturas tímidas e auto-desconfiadas. Não são assim os bodes selvagens e rebeldes, equivalente ao seu tipo, eles são cheios de confiança e jactância carnal. Mas o crente tem um senso de sua própria fraqueza, tal visão de sua pecaminosidade, tal percepção da sua inconstância e instabilidade, que ele literalmente opera a sua própria salvação com “temor e tremor”. Além disso, como ele vê tantos que corriam bem não mais o fazendo, tantos que fizeram tal boa e promissora profissão, fazendo naufrágio da fé, a própria visão da apostasia deles o leva a questionar seriamente sua própria condição e fim último. É para estabilizar seu coração que Deus revelou em Sua Palavra que aqueles que são capacitados a ver em si mesmos as marcas da eleição podem se regozijar na certeza da sua bem-aventurança eterna.
Apontemos também que efeito estabilizador a apreensão desta grande verdade tem sobre o verdadeiro servo de Deus. Quanto há para desanimá-lo, o pequeno número daqueles que frequentam o seu ministério, e a oposição feita àquelas partes da verdade que mais exaltam Deus e humilham o homem, a escassez de quaisquer frutos visíveis que frequentam os seus trabalhos, a acusação apresentada por alguns dos seus oficiais ou amigos mais próximos, de forma que se ele continua ao longo dessas linhas, ele não terá absolutamente ninguém deixado a quem pregar, os sussurros de Satanás, que o próprio Deus está desaprovando tais esforços, que ele é um fracasso patente e que é melhor parar; estas e outras considerações têm uma poderosa tendência a enchê-lo de desânimo ou de tentá-lo a cortar suas velas e flutuar ao longo da onda do sentimento popular. Nós sabemos o que escrevemos, porque temos pessoalmente trilhado este caminho espinhoso.
Ah, mas Deus tem graciosamente fornecido um antídoto para o veneno de Satanás, e um eficaz tônico para reavivar os espíritos caídos de Seus servos atribulados. O que é isso? O conhecimento de que seu Mestre não os enviou para desenhar uma curva ao acaso, mas sim para serem instrumentos em Sua mão, para realizar Seu decreto eterno. Embora Ele lhes ordenou pregar o Evangelho a todos os que frequentam o seu ministério, contudo Ele também deixou claro em Sua Palavra que não é o Seu propósito que todos, ou mesmo que muitos sejam salvos por isso. Ele já fez conhecido que o Seu rebanho é um rebanho (em Grego) “muito pequeno” (Lucas 12:32), que há apenas “um remanescente segundo a eleição da graça” (Romanos 11:5), que “muitos” encontrariam o caminho espaçoso que conduz à perdição, e que apenas “poucos” andariam pelo caminho estreito que conduz à vida.
É para chamar esse remanescente escolhido para fora do mundo e para a alimentação e estabelecimento deles que Deus principalmente emprega Seus servos. É a devida apreensão e crença pessoal disso que tranquiliza e estabiliza o coração do ministro como nada mais o fará. Enquanto ele repousa sobre a soberania de Deus, a eficácia dos Seus decretos, a certeza absoluta de que os conselhos de Deus serão plenamente realizados, então ele está certo de que tudo o que Deus o enviou a fazer deve ser feito, que nem homem nem diabo podem impedi-lo. Mesmo consternado com a ruína à sua volta, humilhado por seus próprios tristes fracassos, contudo ele percebe que o desenrolar do plano Divino é infalivelmente assegurado. Aqueles a quem o Pai ordenou, crerão (Atos 13:48), aqueles por quem o Filho morreu serão salvos (João 10:16), aqueles a quem o Espírito vivifica serão efetivamente preservados (Filipenses 1:6).
Quando o ministro recebe uma mensagem para entregar em nome de seu Mestre, ele pode descansar com confiança inabalável na promessa: “Assim será a minha palavra, que sair da minha boca; ela não voltará [não “poderá”] para mim vazia, antes fará o que me apraz, e prosperará naquilo para que a enviei” (Isaías 55:11). Ela pode não efetuar que o pregador deseja, nem prosperar na medida em que os santos desejam, mas nenhum poder na terra ou no inferno pode impedir o cumprimento da vontade de Deus. Se Deus traçou uma determinada pessoa a ser levada a um conhecimento salvador da verdade sob um sermão em particular, então não importa o quão enterrada no pecado aquela alma esteja, nem quão duramente ela poderá recalcitrar contra os aguilhões da consciência, ela deve (como Paulo, no passado) ser levada a clamar: “Senhor, que queres que eu faça?” [Atos 9:6]. Aqui, então, há um lugar de repouso seguro para o coração do ministro. Este era o lugar onde Cristo encontrou consolo, pois, quando a nação em geral O desprezou e rejeitou, Ele consolou-se com o fato de que: “Todo o que o Pai me dá virá a mim” (João 6:37).
O valor desta doutrina aparece novamente em que ela provê o incentivo real para almas orantes. Nada promove tanto o espírito de santa ousadia ao trono da graça, como a percep-ção de que Deus é o nosso Deus e que nós somos o povo de Sua escolha. Eles são Seu tesouro peculiar, a própria menina dos Seus olhos, e eles acima de todas as pessoas têm a Sua escuta. “E Deus não fará justiça aos seus escolhidos, que clamam a ele de dia e de noite?” (Lucas 18:7). Seguramente Ele o fará, pois eles são os únicos que suplicam a Ele em mansidão, apresentando seus pedidos em sujeição à Sua vontade soberana. Ó, meus leitores, quando estamos de joelhos, como este fato de que Deus colocou Seu coração sobre nós desde a eternidade deve inspirar fervor e fé. Uma vez que Deus escolheu nos amar, Ele pode se recusar a nos ouvir? Então, tomemos coragem a partir de nossa predestinação para fazer súplica mais fervorosa.
“‘Sabei, pois, que o Senhor separou para si aquele que é piedoso. Senhor ouvirá quando eu clamar a ele’ (Salmos 4:3). Mas saiba, tolos não aprenderão e, portanto, eles devem ser uma e outra vez informados sobre a mesma coisa, especialmente quando se é uma verdade tão amarga que deve ser ensinada a eles, a saber: o fato de que os piedosos são os escolhidos de Deus, e são, por graça distintiva, apartados e separados dentre outros homens. A eleição é uma doutrina que o homem não-regenerado não pode suportar, todavia, mesmo assim, é uma verdade gloriosa e bem atestada, e que deve confortar o crente tentado. A eleição é a garantia da salvação completa, e um argumento para o sucesso diante do trono da graça. Aquele que nos escolheu para Si mesmo, certamente ouvirá as nossas orações. O eleito do Senhor não será condenado, nem o seu clamor deixará de ser ouvido. Davi foi rei por decreto Divino, e nós somos o povo do Senhor, da mesma maneira; vamos dizer aos nossos inimigos em seus rostos que eles lutam contra Deus e o destino, quando eles se esforçam para abater nossas almas” (C. H. Spurgeon).
Não apenas o conhecimento da verdade da eleição concede encorajamento para almas orantes, mas ela fornece instruções e orientações importantes nisso. Nossas petições de-vem sempre ser enquadradas em harmonia com a verdade Divina. Se cremos na doutrina da predestinação, nós devemos orar em conforme. A linguagem que usamos deve estar de acordo com o fato de que acreditamos que há uma companhia de pessoas escolhidas em Cristo antes da fundação do mundo, e foi por eles, e por eles somente, que Ele sofreu e morreu. Se acreditamos na redenção particular (e não em uma expiação universal) devemos implorar ao Senhor Jesus para ter consideração aos tais que Ele comprou por meio das dores de Sua alma. Este será um meio de manter corretas apreensões em nossas próprias mentes, como também será o estabelecimento de um bom exemplo nesta questão diante de outros.
Nos dias de hoje há muitas expressões deploráveis utilizadas em oração, que são totalmente injustificáveis, sim, que são completamente opostas à vontade ou Palavra do Senhor. Quantas vezes o púlpito moderno pede a salvação de todos os presentes, e o chefe de família pede que nenhum na família perca a glória eterna. Qual é o propósito disso? Direcionaremos o Senhor, a quem Ele salvará? Não sejamos mal interpretados: não somos contra que o pregador ore por sua congregação, nem que o pai ore pela salvação de sua família; aquilo a que nós nos opomos é aquela oração que está em oposição direta à verdade do Evangelho. A oração deve ser subordinada aos decretos Divinos, caso contrário, somos culpados de rebelião. Ao orarmos pela salvação dos outros, devemos sempre estar com a ressalva “se eles são Teus eleitos” ou “se for da Tua soberana vontade”, ou alguma qualificação similar.
O Senhor Jesus nos deixou um exemplo perfeito nisto, como em todo o mais. Em Sua grandiosa oração sacerdotal, registrada em João 17, O encontramos dizendo: “Eu rogo por eles; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus” (v. 9). Nosso Senhor sabia de toda a boa vontade e prazer de Seu Pai para com os eleitos. Ele sabia que o ato da eleição foi um ato soberano e irreversível em Sua mente. Ele sabia que Ele mesmo não poderia adicionar alguém ao número dos escolhidos. Ele sabia que Ele foi enviado pelo Pai para viver e morrer pelos eleitos, e por eles somente. E, em perfeito acordo com isso, Ele declarou: “Eu rogo por eles; eu não rogo pelo mundo”. Se, então, Cristo deixou de fora o mundo, se Ele não orou pelos não-eleitos, nem nós deveríamos. Devemos aprender dEle e seguir Seus passos e, em vez de nos ressentirmos, estejamos bem satisfeitos com toda a boa vontade da soberana vontade de Deus.
Ser submisso à vontade Divina é a lição mais difícil de todas para aprender. Por natureza, somos obstinados e tudo o que nos contraria é ressentido. O perturbador dos nossos planos, o que frustra as nossas esperanças acarinhadas, o que esmaga os nossos ídolos, atiçam a inimizade da carne. Um milagre da graça é necessário, a fim de trazer-nos à aquiescência de Deus lidar conosco, de forma que possamos dizer de coração: “Ele é o Senhor; faça o que bem parecer aos seus olhos” (1 Samuel 3:18). E, ao operar esse milagre, Deus usa meios. Ele imprime em nossos corações, um sentido efetivo de Sua soberania, de modo que somos levados a perceber que Ele tem o total direito de fazer o que quiser com Suas criaturas. E nenhuma outra verdade tem tal poderosa tendência para nos ensinar esta lição vital como tem a doutrina da eleição. Um conhecimento salvífico do fato de que Deus nos escolheu para a salvação gera dentro de nós uma disposição para que Ele ordene todas as nossas ações, até que clamemos: “não a minha vontade, mas a Tua”.
Ora, em vista de todas essas considerações, perguntamos ao leitor, não deveria a doutrina da eleição ser clara e livremente anunciada? Se a Palavra de Deus é repleta dela, se o Evangelho não pode ser biblicamente pregado sem ela, se a graça de Deus não pode ser mantida quando ela é suprimida, se o anúncio dela humilha o homem ao pó, se ela é um meio divinamente designado de fé, se ela é um poderoso incentivo à promoção da santidade, se ela incita na alma o espírito de louvor, se ela confirma o Cristão na certeza de sua segurança, se ela é uma tal fonte de estabilidade para o servo de Deus, se ela fornece encorajamento para almas orantes e fornece valiosas instruções na oração, se ela opera em nós uma doce submissão à vontade Divina; então devemos nos recusar a dar aos filhos de Deus este pão valioso apenas porque os cães o abocanham? Ou reteremos das ovelhas este ingrediente vital de sua alimentação simplesmente porque os bodes não o conseguem digerir?
E agora, para concluir, algumas palavras sobre como essa doutrina deve ser anunciada.
Primeiro, ela deve ser apresentada com uma doutrina básica. Esta não é uma verdade incidental ou secundária, mas de uma importância fundamental e, portanto, não deve ser empurrada para um canto, nem falada com respiração suspensa. A predestinação está na própria base de todo o esquema da graça Divina. Isso fica claro a partir de Romanos 8:30, onde é ela é mencionada antes do chamado eficaz, justificação e glorificação. Ela é clara, novamente, a partir da ordem que se segue em Efésios 1, em que a eleição (v. 4) precede a adoção, a nossa aceitação no Amado, e nossa obtenção da redenção, pelo Seu sangue (vv. 5-7). O ministro deve, portanto, deixar claro aos seus ouvintes que Deus primeiro escolheu um povo para ser o Seu tesouro peculiar, em seguida, enviou o Seu Filho para redimi-los da maldição da lei violada, e agora concede o Espírito para vivifica-los e trazê-los para a glória eterna.
Em segundo lugar, ela deve ser pregada destemidamente. Os servos de Deus não devem ser intimidados pelas carrancas dos homens, nem impedidos de realizar o seu dever por qualquer forma de oposição. O ministro do Evangelho é chamado a sofrer “as aflições, como bom soldado de Jesus Cristo” (2 Timóteo 2:3), e os soldados que temem o inimigo ou fogem não são de nenhuma utilidade para o seu rei. O mesmo é valido para aqueles que são oficiais do Rei dos reis. Quão destemido foi o apóstolo Paulo! Quão valentes pela verdade foram Lutero e Calvino, e os milhares de pessoas que foram queimadas na fogueira por causa de sua adesão a esta doutrina. Então, que aqueles a quem Cristo chamou para pregar o Evangelho não permitam esconder esta verdade por causa do temor do homem, pois o Mestre claramente avisou: “Porquanto, qualquer que, entre esta geração adúltera e pecadora, se envergonhar de mim e das minhas palavras, também o Filho do homem se envergonhará dele, quando vier na glória de seu Pai, com os santos anjos” (Marcos 8:38).
Em terceiro lugar, ela deve ser pregada humildemente. Destemor não requer que sejamos bombásticos. A santa Palavra de Deus deve sempre ser tratada com reverência e sobriedade. Quando o ministro está diante de seu povo, eles deveriam sentir, pelo seu comportamento, que ele veio até eles da câmara de audiência do Altíssimo, de forma que o temor do Senhor repousa sobre sua alma. Pregar sobre a soberania de Deus, sobre Seus conselhos eternos, sobre Sua escolha de uns e não de outros, é uma questão muito solene para ser anunciada no poder da carne. Existe um feliz meio termo entre uma atitude servil, apologética, e o adotar o estilo de um político tirano. A seriedade não deve se degenerar em vulgaridade. É em “mansidão” que devemos instruir aqueles que se opõem, “a ver se porventura Deus lhes dará arrependimento para conhecerem a verdade” (2 Timóteo 2:25).
Em quarto lugar, ela deve ser pregada proporcionalmente. Embora o fundamento seja de primeira importância, é de pouco valor, a menos que uma superestrutura seja erguida sobre ele. O anúncio da eleição deve abrir caminho para as outras verdades cardeais do Evangelho. Se qualquer doutrina for pregada exclusivamente, é distorcida. Há um equilíbrio a ser preservado em nossa apresentação da verdade; enquanto nenhuma parte dela deve ser suprimida, nenhuma parte dela deve receber indevidamente a proeminência. É um grande erro tocar harpa usando somente uma corda. A responsabilidade do homem deve ser aplicada, bem como a soberania de Deus insistida. Se por um lado o ministro não deve se intimidar com os Arminianos, por outro, ele não deve ser amedrontado por hiper-Calvinistas, que se opõem ao chamado aos não-convertidos a se arrependerem e crerem no Evangelho (Marcos 1:15).
Em quinto lugar, ela deve ser pregada experimentalmente. Isto é como os apóstolos lidaram com ela, como fica claro em “procurai fazer cada vez mais firme a vossa vocação e eleição” (2 Pedro 1:10). Mas como isso pode ser feito a não ser que nós ensinemos a doutrina da eleição, instruindo quanto à sua natureza e uso? A verdade da eleição pode ser um pequeno consolo para qualquer homem, até que ele tenha uma garantia bem fundamentada de que ele seja um dos eleitos de Deus; e isso só é possível pela verificação de que ele possui (em alguma medida) as marcas Bíblicas das ovelhas de Cristo. Como já lidamos com este aspecto de nosso assunto durante algum tempo, não diremos mais nada. Que agrade ao Senhor usar estas palavras para a Sua própria glória e para a bênção de Seus queridos santos.