O que é a Impassibilidade de Deus? Definindo um Atributo Esquecido

A doutrina da impassibilidade divina é uma antiga crença cristã, confessada ao longo da longa história da igreja, e ainda assim ela muitas vezes é mal compreendida ou rejeitada em nossos dias. Essa doutrina reflete o teísmo cristão clássico, e sua importância é bem conhecida pelos teólogos e tem sido estabelecida por séculos. Está profundamente enraizada na tradição cristã e é confessada por todas as grandes igrejas protestantes inglesas — tanto nos Artigos da Igreja da Inglaterra de 1552 quanto em sua revisão de 1563, conhecida como os 39 Artigos; na Confissão de Fé de Westminster, de 1647; na Declaração de Savoy de 1658 das Igrejas Congregacionais inglesas e na Segunda Confissão de Fé Batista de Londres de 1677/89 (reimpressa na América com duas adições como a Confissão de Filadélfia, em 1742). Contudo, nos últimos 150 anos esse ensino tem sido criticado, modificado e rejeitado, de modo que hoje é uma doutrina impopular entre os teólogos evangélicos.

Impassibilidade com um i

Antes de começarmos nosso breve estudo, devemos observar duas coisas. Em primeiro lugar, uma vez que a palavra pode ser facilmente confundida com um homófono similar, devemos falar brevemente sobre a grafia do termo. A palavra teológica é impassibility [impassibilidade] (com um i no meio), não impassability [intransponibilidade] (com um a no meio). O último talvez se refira à impassibilidade de seu Fiat 500 ultrapassar um Corvette em uma rodovia, ou a uma estrada inundada que fica intransponível depois de uma forte tempestade, ou talvez ao impasse causado pela incapacidade de duas pessoas concluírem uma negociação. Mas isso não se refere à nossa doutrina!

Em segundo lugar e mais importante, devemos lembrar que qualquer consideração acerca de Deus e o ensino sobre Ele registrado nas Escrituras deve ser feito no contexto da devoção. As palavras de Levítico 10:3 fornecem o contexto para o nosso estudo: “Serei santificado naqueles que se chegarem a mim, e serei glorificado diante de todo o povo”. Nossas discussões sobre teologia devem ser realizadas nesse contexto.

O Caminho da Negação e o Caminho da Eminência

Impassibilidade pode ser definida da seguinte maneira: “Deus não experimenta mudanças emocionais, quer seja a partir de Seu interior quer seja por ser afetado através da Sua relação com a criação”.[1] Isso é um complemento necessário à doutrina da imutabilidade divina, e expressa o fato de que Deus é imutável em Sua essência ou ser e em Seus atos exteriores no mundo.

Os teólogos cristãos reconhecem que existe uma distinção fundamental entre o Criador e a criatura. Só Deus tem vida e imortalidade. Ele não precisa de ninguém e é a perfeição em Si mesmo. Nós não somos assim. Os seres humanos são seres dependentes, que devem confiar nEle para obterem a vida e todas as coisas. Por essa razão, os teólogos cristãos reconheceram que é mais fácil dizer o que Deus não é do que Ele é. Isso foi chamado de caminho da negação [way of negation]. A impassibilidade é uma dessas muitas negações. Assim como Deus é infinito: não finito; imortal: não sujeito à mortalidade; incompreensível: está além de nossa capacidade de compreensão e imutável: não é mutável, assim também Deus é impassível. Ele não está sujeito a paixões.

Por outro lado, ao fazer afirmações positivas sobre Deus, nossos mestres expressaram o caminho da eminência [way of eminence]. Esse princípio nos ensina que quando Deus é descrito para nós em termos de virtudes humanas, devemos reconhecer que essas virtudes existem original, eterna, essencial e perfeitamente (isto é, eminentemente) em Deus. Posto que Ele é infinito, eterno e imutável em Seu ser, Ele é perfeito em tudo o que Ele é. Seu amor, misericórdia, justiça etc., são virtudes infinitas, eternas e imutáveis. Nosso problema é que nos esquecemos dessa verdade básica e imputamos características humanas a Deus. Essa é a raiz das objeções modernas à doutrina cristã histórica. Isso faz com que Deus seja representado à imagem da humanidade. Deus é amor; amor divino, amor infinito, eterno e imutável. Seu amor não aumenta ou diminui, é o que Ele é.

Sem Paixões

Uma das declarações mais conhecidas sobre essa doutrina pode ser encontrada na Confissão de Fé de Westminster. Em seu capítulo 2, lemos:

Há um só Deus vivo e verdadeiro, o qual é infinito em seu ser e perfeições. Ele é um espírito puríssimo, invisível, sem corpo, membros ou paixões; é imutável, imenso, eterno, incompreensível, – onipotente, onisciente, santíssimo, completamente livre e absoluto…

O termo “sem… paixões” se refere à doutrina da impassibilidade divina. Ela tem sido consistentemente confessada pelos cristãos através dos tempos. Na época da Reforma, a Igreja da Inglaterra declarou em 1552 e 1563 em seus 42 artigos e 39 artigos, respectivamente, que,

Há um único Deus, vivo e verdadeiro, eterno, sem corpo, partes ou paixões, de infinito poder, sabedoria e bondade; Criador e Sustentador de todas as coisas visíveis e invisíveis.

Os artigos irlandeses de 1615 seguiram o exemplo em palavras quase idênticas, e as grandes confissões puritanas continuaram essa trajetória. Esses documentos confessionais estabelecem uma tradição da doutrina de Deus que incorpora especificamente a doutrina da impassibilidade divina.[2] A doutrina da impassibilidade divina é um componente necessário do teísmo cristão clássico. Herman Bavinck disse:

Aqueles que pregam qualquer mudança em Deus, seja em relação à Sua essência, conhecimento ou vontade, diminuem todos os Seus atributos: independência, simplicidade, eternidade, onisciência e onipotência. Isso rouba de Deus a Sua natureza divina e rouba a religião de seu firme alicerce e conforto seguro.[3]

Expressões de Efeito, não de Afetação

Negar a doutrina da impassibilidade divina é abrir a porta para a heresia. No século XVII, isso foi expresso por um grupo de pessoas conhecidas como socinianas. John Owen os respondeu da seguinte maneira:

Pergunta: Está de acordo com o conteúdo perpétuo das Escrituras haver afeições e paixões em Deus, tais como raiva, fúria, zelo, ira, amor, ódio, misericórdia, graça, ciúme, arrependimento, dor, alegria, temor? Ele [o sociniano a quem John Owen se opunha, John Biddle] se esforça para fazer as Escrituras responderem afirmativamente a essa pergunta… Eu pergunto: Em que lugar das Escrituras essas coisas são atribuídas apropriadamente a Deus, denotando tais afeições e paixões nEle — como aquelas que estão em nós — e que são assim denominadas ou designadas com referência a Ele? Ou essas afeições e paixões são faladas em relação a Ele apenas metaforicamente, somente em referência às Suas obras e dispensações externas, correspondendo e se adequando às ações humanas que envolvem tais afeições, e sob o poder das quais eles estão ao realizarem aqueles atos? Se esse último for afirmado, então atribuir tais afeições e paixões a Deus, é eminentemente consistente com todas as Suas perfeições infinitas e bem-aventurança; para que não possa haver diferença sobre essa questão, e as respostas dadas a ela; todos os homens reconhecem prontamente que, nesse sentido, a Escritura atribui todas as afeições mencionadas em referência a Deus.[4]

Aqui, Owen procura empregar o caminho da eminência. Embora as Escrituras em alguns lugares pareçam atribuir emoções a Deus, devemos olhar para além da linguagem humana em direção às perfeições que elas significam. Por exemplo, o amor está em Deus como uma perfeição eterna, não como uma paixão provocada por um encontro com a criatura. Os teólogos costumam dizer que quando Deus é descrito na linguagem da emoção humana, estas são expressões de efeito, não de afetação. Em outras palavras, estamos lendo sobre os efeitos que Deus nos faz experimentar a respeito dEle mesmo, não os efeitos que causamos à experiência de Deus em Si mesmo. Se lemos sobre elas da mesma forma que experimentamos as paixões e afeições humanas, diminuímos Deus, tornando-o apenas uma versão maior de nós mesmos.

Não Mexa com Isso

Recentemente, Clark Pinnock escreveu:

A impassibilidade é, sem dúvida, o calcanhar de Aquiles do pensamento convencional. Era tão óbvio para os nossos antepassados ​​como é fora de questão para nós, mas tão logo alguém mexa com ela, o edifício treme.[5]

Pinnock, que negou a impassibilidade e se tornou um defensor do teísmo aberto, reconhece que rejeitar a impassibilidade exige uma revisão completa da doutrina cristã clássica! A impassibilidade divina deve ser mantida, ou a igreja perderá sua identidade.

Escrevendo há quase 340 anos, o grande puritano John Owen poderia dizer o seguinte sobre a doutrina da impassibilidade divina:

Todos concordam que aquelas expressões de “arrependimento”, “sofrimento” e coisas semelhantes são figurativas, quando essas palavras são usadas com referência a Deus elas não intencionam as afeições que significam quando se referem às naturezas criadas, mas apenas um evento de coisas como essas que procede de tais afeições.[6]

Nossa oração é que essas palavras possam ser escritas novamente hoje.


[1] Samuel D. Renihan, God Without Passions: A Primer [Deus sem Paixões: Um Manual] (Palmdale: RBAP, 2015) 19.

[2] Algumas partes desse artigo foram tiradas do meu capítulo, “The Doctrine of Divine Impassibility: Pre-Reformation through Seventeenth-Century England” [A Doutrina da Impassibilidade Divina: “Do Período Pré-Reforma até a Inglaterra do século XVII], In Ronald S. Baines, Richard C. Barcellos, James P. Butler e Stefan T. Lindblad e James M. Renihan, Confessing the Impassible God  [Confessando o Deus Impassível] (Palmdale: RBAP, 2015).

[3] Herman Bavinck, Reformado Dogmatics [Dogmática Reformada], gen. ed. John Bolt, trans. John Vriend, 4 vols. (Grand Rapids: Baker Academic, 2003-2008), 2: 158.

[4] John Owen, Vindiciae Evangelicae Or, The Mystery of the Gospel Vindicated, and Socinianisme Examined [Defesa do Evangelho, ou, O Mistério do Evangelho Defendido, e Socinianismo Examinado] (Oxford: Impresso por Leon. Lichfield, 1655), 73. Essa página é numerada incorretamente com o número 65 no original. A ortografia é original.

[5] Clark H. Pinnock, Most Moved Mover: A Theology of God’s Openness [Mover Mais Movido: Uma Teologia do Teísmo Aberto] (Carlisle: Paternoster, 2001), 77.

[6] John Owen, As Obras de John Owen, 23 vols. (Edimburgo; Carlisle, PA: The Banner of Truth Trust, 1965-1991), 21:257, ênfase adicionada.

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