Este artigo consiste na exposição de Hebreus 8:7, encontrada no capítulo 2 da segunda parte do livro Covenant Theology: From Adam to Christ. Este livro está sendo traduzido e, se Deus quiser, será publicado em português pela editora O Estandarte de Cristo.
“Porque, se aquela primeira [aliança] fora irrepreensível, nunca se teria buscado lugar para a segunda.” (Hebreus 8:7)[1]
Nesse versículo, e assim também naqueles que seguem até o final deste capítulo, o apóstolo projeta uma confirmação do que tinha antes afirmado e se comprometido a provar, a saber, que há a necessidade de uma nova e melhor aliança, acompanhada de melhores promessas e mais excelentes ordenanças de adoração do que as da primeira. Diante disso, segue-se que a primeira deveria ser anulada e abolida; e essa foi a principal tese que ele teve que provar. E há duas partes de seu argumento para esse propósito. Primeiramente o apóstolo prova que na suposição de outra e melhor aliança ser introduzida, inevitavelmente se segue que a primeira deveria ser abolida, como algo que não era perfeito, completo ou suficiente para o seu fim; e isso ele faz nesse versículo. Em segundo lugar, ele prova que essa não era a melhor aliança e que isso seria mais explicado nos versículos seguintes.
O que ele havia confirmado antes em vários casos particulares, agora neste versículo ele conclui resumidamente em um único argumento geral, e este se baseia em um princípio geralmente reconhecido. O argumento é este: “todos os privilégios, todos os benefícios e vantagens do sacerdócio e sacrifícios araônicos, pertencem à aliança a que foram anexados, a parte principal daquela administração exterior consistiu neles”. Os hebreus não poderiam sequer questionar isso. Tudo o que eles reivindicavam, a única escritura e termo de posse de todos os seus privilégios, era a aliança que Deus fez com seus pais no Sinai. Para esse fim aquele sacerdócio, aqueles sacrifícios e toda a adoração pertencente ao tabernáculo ou templo, seriam necessariamente proporcionais àquela aliança. Enquanto esse pacto continuasse, eles deveriam continuar; e se essa aliança cessasse, eles também cessariam. Havia uma concordância entre o apóstolo e os hebreus no que diz respeito a essas coisas.
Em relação a isso, ele conclui: “Mas há menção de uma outra aliança a ser feita com toda a igreja, e a ser introduzida muito depois da realização daquela feita no Sinai”. Isso também não poderia ser nagado pelos hebreus. No entanto, para evitar qualquer controvérsia, o apóstolo prova isso por um testemunho expresso do profeta Jeremias. Nesse testemunho, é peculiarmente declarado que essa nova aliança, que foi prometida ser introduzida “nos últimos dias”, deveria ser melhor e mais excelente do que a primeira, como é manifesto pelas promessas sobre as quais ela é estabelecida; contudo, nesse versículo, o apóstolo não vai além, mas apenas considera de modo geral a promessa de Deus de fazer outra aliança com a igreja, e que seguiria argumentando com base nessa razão.
A partir dessa suposição, o apóstolo prova que a primeira aliança é imperfeita, destrutível e removível. E a força de sua inferência depende de uma noção comum ou presunção, que é clara e evidente por si, e consiste nisto: quando determinada vez uma aliança é feita e estabelecida, se ela vier a servir para e efetuar tudo que aquele que a fez designou, e exibir todo o bem que ele pretendia comunicar, não há razão para que outra aliança seja feita. A criação de uma nova aliança para nenhum outro fim ou propósito, senão aqueles para os quais a antiga aliança já era completamente suficiente, é um argumento que sugere frivolidade e mutabilidade naquele que o fez. Para este propósito, ele argumenta: “Se fosse dada uma lei que pudesse vivificar, a justiça, na verdade, teria sido pela lei” (Gálatas 3:21). Se a primeira aliança tivesse aperfeiçoado e consagrado a igreja, poderia ter comunicado toda a graça e misericórdia que Deus intentou conceder aos filhos dos homens, o sábio e santo autor dessa aliança não teria pensado na introdução e estabelecimento de outra. Isso não teria sido agradável para Sua infinita sabedoria e fidelidade. Para esse fim, a promessa disso prova irrefutavelmente que tanto a primeira aliança quanto todos os serviços dela eram imperfeitos e, portanto, deveriam ser removidos e abolidos.
De fato, essa promessa de uma nova aliança, diferente daquela que foi feita no Sinai, ou não igual a ela, como o profeta fala, é suficiente para derrubar os pretextos vãos dos judeus nos quais eles estão endurecidos até hoje. A perpetuidade absoluta da lei e de sua adoração, isto é, da aliança no Sinai, é o principal artigo fundamental de sua fé atual, ou antes de sua descrença. Mas isso é apresentado por eles em oposição direta às promessas de Deus. A promessa de uma nova aliança exige deles que creiam que Deus fará outra aliança com a igreja, não segundo a aliança que fez com seus pais no Sinai. Se eles disserem que não creem, então renunciam claramente aos profetas e às promessas de Deus dadas por eles. Se eles o admitem, desejo saber deles com que sacrifícios essa nova aliança será estabelecida; por que sacerdote e com que culto será administrada. Se eles disserem que isso será feito pelos sacrifícios, sacerdotes e adoração da lei, eles negam o que antes haviam admitido, a saber, que essa é uma outra e nova aliança; pois os sacrifícios e os sacerdotes da lei não podem confirmar ou administrar qualquer outra aliança, senão aquela a qual eles pertencem e estão confinados. Se for admitido que essa nova aliança deve ter um novo mediador, um novo sacerdote, um novo sacrifício, como é inegável que deve, ou não pode ser uma nova aliança, então a antiga aliança deve cessar e ser abolida, para que essa possa tomar o seu lugar. Nada além de obstinação e cegueira pode resistir à força desse argumento do apóstolo.
Após o propósito geral do apóstolo nesse versículo ser explicado, podemos passar a considerer as palavras mais especificamente. E há duas coisas nelas: 1. Uma afirmação positiva, incluída em uma suposição: “Se aquela primeira [aliança] fora irrepreensível”, não tinha sido defeituosa, isto é, foi assim. 2. A prova desta afirmação: “Se não fosse assim, nunca se teria buscado lugar para a segunda”, o que de fato o foi, e ele prova nos versículos seguintes.
Uma Afirmação Positiva
Na primeira parte das palavras existe: (1.) Uma conjunção causal, traduzindo uma razão: “porque”; (2.) O assunto fala de: “Aquela primeira aliança”; (3.) O que é afirmado a respeito dela, como a afirmação é incluída em uma suposição negativa: ela não foi irrepreensível, não é irrepreensível:
(1.) A conjunção, γάρ, “porque”, mostra que o apóstolo pretende a confirmação do discuro que tinha feito anteriormente. Mas ele parece não se referir apenas ao que havia dito antes sobre as melhores promessas do Novo Testamento, mas a todo o argumento que tinha tratado. Através da argumentação geral sobre a qual insiste aqui, ele prova tudo o que tinha dito antes a respeito da imperfeição do sacerdócio levítico e de toda a adoração da primeira aliança.
(2.) O assunto mencionado é ἡ πρώτη ἐκείνη, “aquela primeira;” isto é, προτέρα διαθήκη, aquela “primeira aliança”, a aliança feita com os pais no Sinai, incluindo todas as ordenanças de culto a ela pertencentes, cuja natureza e uso já declaramos.
(3.) Está escrito: εἰ ἄμεμπτος η῏ν. A Vulgata Latina traduz como: “Si culpâ vacasset”. E nós traduzimos assim: “Se ela tivesse sido sem falhas”. Eu tenho certeza que a expressão é um tanto quanto dura demais em nossa tradução, algo que não se adequa à palavra original, ou pelo menos algo que a palavra original não requer. Pois parece insinuar que havia algo de absolutamente defeituoso ou repreensível na aliança de Deus. Mas isso não deve ser admitido. Pois, além disso, o autor dela, que era o próprio Deus, a isentou de qualquer acusação ou imputação, ao declarer em toda parte da Escritura que ela é “santa, justa e boa”. Existe, de fato, a indicação de um defeito nela; mas isso não diz respeito ao seu próprio fim particular, mas a outro fim geral, para o qual não ela não foi designada. Aquilo que é defeituoso em relação ao seu próprio fim particular para o qual é ordenado, ou que é projetado para realizar, é realmente defeituoso; mas aquilo que é ou pode ser assim em relação a algum outro fim geral, que nunca foi projetado para realizar, não é defeituoso em si mesmo. O apóstolo discursa a respeito disso (Gálatas 3:19-22). Devemos, portanto, declarar o significado da palavra com referência ao assunto que ele trata neste lugar, a saber, a perfeição e consumação ou a santificação e salvação da igreja. Com relação a isso é que ele afirma a insuficiência e a imperfeição da primeira aliança. E a questão entre ele e os hebreus não era se a primeira aliança não era em si mesma santa, justa, boa e irrepreensível, completamente perfeita em relação aos seus próprios fins especiais; mas se ela era perfeita e eficaz para os fins gerais mencionados. E para isso ela não foi, diz o apóstolo; e ele prova isso de forma inagável a partir da promessa de introdução de outra aliança geral para a realização daqueles fins gerais. Embora, portanto, não seja ἄμεμπτος, ou tenha alguma falha ou vício acompanhando qualquer coisa e aderindo a ela, de acordo com o qual ela é inadequada ou insuficiente para seu próprio fim especial; ou é aquilo ao qual falta algo com relação a outro fim geral que é muito desejável, mas que nunca foi projetado para realizar; como a arte da aritmética, que se for perfeitamente ensinada, é suficiente para instruir um homem em toda a ciência dos números; mas se não for, é defeituosa quanto ao seu fim particular; mas de maneira alguma é suficiente para o fim geral de fazer um homem sábio em todo o campo da sabedoria, algo que está longe de ser preferida antes do seu fim particular, mesmo que ela nunca seja tão perfeita em sua própria esfera; é apenas no último sentido que o apóstolo afirma que a primeira aliança não era “ἄμεμπτος” ou “irrepreensível”. Se aquela aliança tivesse sido tal que nada mais era perfeitamente requerido ou necessário para completar e santificar a igreja, que era o fim geral que Deus intecionava, ela tinha sido absolutamente perfeita. Mas ela não foi, na medida em que nunca foi projetado para ser um meio para esse fim. Para o mesmo propósito, ele argumenta em Hebreus 7:11 e 19. E com relação a esse fim, é dito que “a lei era enferma” (Romanos 8:3; Gálatas 3:21; Atos 13:38-39).
Em resumo, aquilo que o apóstolo pretende provar é que a primeira aliança era de tal constituição, que não poderia realizar a perfeita administração da graça de Deus à igreja, nem jamais foi designada para esse fim; como os judeus daquele tempo falsamente imaginavam que fosse, e sua posteridade tolamente continua a imaginar.
A Prova desta Afirmação
As palavras que se seguem neste versículo incluem a prova geral de sua afirmação a respeito da insuficiência da primeira aliança para alcançar os fins de Deus em relação à igreja: οὐκ ἃν δευτέρας ἐζητεῖτο τόπος.[2] Seu argumento é claramente o seguinte: “A promessa de uma nova aliança prova inevitavelmente a insuficiência da primeira, pelo menos em relação aos fins para os quais a nova é prometida. Se não é assim, para que fim serve a promessa, e a aliança prometida?”. Mas há alguma dificuldade no modo como isso é expresso: “Não havia sido buscado lugar para a segunda”, é assim que as palavras estão no original. Mas “o lugar da segunda” não é outra coisa senão “a segunda tomando lugar”, isto é, o anúncio, a introdução e o estabelecimento dela. E isso é dito ser “buscado”; mas impropriamente, e de acordo com o modo de falar dos homens. Quando os homens fazem uma aliança que se revela insuficiente para algum fim que almejam, eles se aconselham e buscam outras formas e meios, ou buscam um acordo e pacto em outros termos que possam ser eficazes para o seu propósito. Para esse fim, isso não significa nenhuma alteração e nem qualquer defeito na sabedoria e no conselho de Deus quanto ao que deve ser feito agora, mas apenas significa a mudança externa que Ele agora efetuaria ao introduzir a nova aliança. Pois assim como tais mudanças entre os homens acontecem devido a mudança de mentalidade, e o efeito de novos conselhos para a busca de novos meios para alcançar o seu fim, assim também é essa mudança exterior, na remoção da antiga aliança e introdução da nova, representada em Deus; sendo apenas a segunda parte de seu conselho ou propósito “que ele propôs em si mesmo antes da fundação do mundo”.[3] E podemos, portanto, observar:
Primeira Observação Prática
Seja o que for que Deus tenha feito anteriormente para a igreja, ainda assim Ele não cessou, em Sua sabedoria e graça, até tê-la tornado participante de uma melhor e mais abençoada condição que é possível neste mundo. Ele encontrou lugar para essa melhor aliança.
Segunda Observação Prática
Que aqueles a quem os termos da nova aliança são propostos no Evangelho, cuidem de si mesmo para que sinceramente os abracem e persevere neles; pois não há promessa nem esperança de qualquer administração de graça adicional ou mais completa.
[1] εἰ γὰρ ἡ πρώτη ἐκείνη η῏ν ἄμεμπτος, οὐκ ἄν δευτέρας ἐζητεῖτο τόπος.
[2] Tradução: Nunca se teria buscado lugar para a segunda.
[3] Cf. Efésios 1:4, 9.
Sobre o autor
John Owen
John Owen (1616-1683). Nasceu no ano de 1616 e cresceu numa tranquila casa pastoral no condado de Oxford. Entrou na Universidade de Oxford com a idade de 12 anos, recebeu o título de Bacharel em Artes em 1632 e o de Mestre em Artes em 1635. Owen foi um dos mais destacados teólogos que a Inglaterra já teve. O primeiro livro de Owen foi publicado em 1642, e seu último livro estava sendo impresso quando ele morreu, em 1683. Suas obras publicadas constituem um total de 24 volumes. Owen foi capelão pessoal de Oliver Cromwell durante alguns anos, sendo levado por ele para pregar no parlamento várias vezes, a partir de 1646. Ele pastoreou três igrejas durante sua vida. Casou-se duas vezes; sua primeira esposa morreu em 1676. Ele teve onze filhos, nenhum dos quais sobreviveu a ele.