A estrutura desse capítulo pode ser visualizada como dois círculos concêntricos, em outras palavras, um círculo menor dentro de um círculo maior. O círculo maior é o decreto geral de Deus a respeito de todas as coisas. Esse é o assunto dos parágrafos 1 e 2. O círculo menor dentro desse decreto maior é o decreto específico de Deus relativo à predestinação à vida eterna. E isso é encontrado nos parágrafos 3–7.
O Decreto Geral a Respeito de Todas as Coisas
O parágrafo 1 fala do fato de que esse decreto é absolutamente universal. Várias afirmações cruciais são apresentadas nesse parágrafo com relação ao fato de que o decreto é universal.
A confissão afirma a realidade de sua universalidade. O decreto inclui e assegura a realização — aqui está a frase-chave — “tudo o que possa ou venha a ocorrer”. Nada escapa do decreto de Deus. Ele inclui absolutamente tudo. Claramente este é o ensino simples não apenas da Confissão, mas da Escritura (Salmos 115:3; Daniel 4:35; Romanos 8:28; Efésios 1:11).
A Bíblia não apenas afirma a universalidade do decreto de Deus, mas o afirma especificamente. Em meu comentário sobre a confissão, disse que o decreto geral de Deus inclui:
- Eventos bons e maus
- Atos pecaminosos
- Atos livres dos homens
- Ocorrências ao “acaso”
- Detalhes pessoais de nossas vidas e mortes
- Grandes acontecimentos das nações
- A destruição final dos ímpios está incluída no decreto eterno de Deus.
Essa é uma verdade grandiosa e majestosa, não é mesmo? Se isso é verdade, então isso deveria mudar completamente a maneira como vemos Deus e nossas vidas. É verdade. Todas as nossas vidas estão nas mãos de Deus, até o mais ínfimo detalhe. Deus faz com que tudo que venha a acontecer com os crentes, tudo o que afeta suas vidas, cooperem para o bem através de seu plano ou decreto eterno. Mas, é claro, essa verdade grandiosa também levanta enormes questões em nossas mentes.
Será que isto faz de Deus o autor do pecado? A confissão afirma de forma clara e inequívoca que não. Embora o pecado esteja incluído no decreto de Deus, Deus não é o autor do pecado. No decreto de Deus, são as criaturas — anjos e homens — que são os autores ou praticantes do pecado. A Bíblia deixa claro que os motivos de Deus para decretar o pecado são totalmente diferentes daqueles das criaturas que cometem ou são autoras do pecado.
Deus decreta o pecado para que ele aconteça para sua própria glória. Os pecadores o cometem para negar sua glória. Ele decreta o pecado a fim de usá-lo para redimir seu povo. No caso de José, nos é dito que o pecado de seus irmãos foi transformado em bem (Gênesis 50:20). Deus também decretou a morte de Jesus pelas mãos de homens pecadores (Atos 2 e 4), mas ele fez com que isso servisse para a redenção dos homens do pecado. Algumas vezes, ele também decreta o pecado como uma punição justa pelo pecado anterior. Davi fez um senso dos guerreiros de Israel por causa do decreto de Deus para punir Israel e Davi pelo pecado (Cf. 2 Samuel 24:1; 1 Crônicas 21:1). Os filhos de Eli se recusaram a se arrepender porque Deus decretou a morte deles devido aos pecados que haviam cometido (cf. 1 Samuel 2:25).
Entretanto, permanece um profundo mistério a respeito do decreto de Deus acerca do pecado, porém a Bíblia ensina claramente que ele não é o autor do pecado. Tiago 1:13 é o texto chave: “Ninguém, sendo tentado, diga: De Deus sou tentado; porque Deus não pode ser tentado pelo mal, e a ninguém tenta”. A confissão trata também de uma segunda questão relacionada à universalidade do decreto de Deus. Esse decreto divino não destrói a liberdade, a responsabilidade e o significado das vontades dos homens e dos anjos? A confissão nega que sim e, de fato, afirma que, ao contrário, é o decreto de Deus que estabelece essas coisas.
Obviamente, a confissão não está trabalhando com a mesma definição de livre-arbítrio que a maioria das pessoas afirmam. O livre-arbítrio não é a capacidade de agir contrariamente ao decreto de Deus. O livre-arbítrio não é a capacidade de agir de forma contrária à própria natureza. O livre-arbítrio é simplesmente a capacidade de querer o que se quer e agir de acordo com essa vontade para realizá-la sem restrições externas. Quando alguém quer o que deseja, então ele é livre, ele é responsável e sua vontade é significativa. As criaturas realmente fazem coisas e as fazem de modo livre e responsável (Mateus 17:12).
Como devemos agir diante dessa doutrina do decreto universal de Deus? A confissão conclui o parágrafo 1 da seguinte maneira: “nisso demonstra-se a sua sabedoria em dispor de todas as coisas, e poder e fidelidade em efetuar o seu decreto”. Deus foi sábio em ordenar todas as coisas por seu decreto, e se esperarmos nele e no desenvolvimento de seu plano, veremos a verdade dessa afirmação. O poder de Deus é demonstrado através de plano poderoso. Devemos adorar a Deus em sua majestade. A fidelidade de Deus a seu povo e a si mesmo também é revelada no cumprimento de seu decreto. Jó 23:13 o diz: “Mas, se ele resolveu alguma coisa, quem então o desviará? O que a sua alma quiser, isso fará”. A alma de Deus deseja nosso bem e a glória delem e nada o deterá na realização de seu beneplácito eterno.
O decreto de Deus não é apenas universal; o parágrafo 2 diz que ele é incondicional. Há três argumentos simples para o fato de que o decreto de Deus é incondicional. O primeiro é a natureza da situação. Ninguém estava lá, e nada existia quando Deus decretou. Portanto, ao decretar todas as coisas, Deus não levou nada em consideração, exceto sua própria vontade. Dizer qualquer outra coisa é cair na visão catastrófica e anti-Deus de um eterno dualismo. A segunda é a afirmação das Escrituras. A Escritura afirma que ninguém aconselhou a Deus acerca de seus decretos (Isaías 40:13-14; Romanos 11:34; 1 Coríntios 2:16). A terceira é a inferência de sua universalidade. Já provamos que o decreto de Deus é absolutamente universal ou abrangente. O decreto determina todas as coisas, mas se ele determina todas as coisas, então ele não é determinado por nenhuma dessas coisas que ele determina.
Deus sabe de antemão o futuro de forma abrangente e certa. A presciência não torna o futuro certo, mas ela pressupõe que o futuro é compreensivamente certo. Portanto, pedimos ao arminiano que pense um pouco mais profundamente e faça esta pergunta: Embora o pré-conhecimento por si só não torne o futuro compreensivamente certo, alguma coisa o faz. Qual é essa coisa? A única resposta possível é o eterno decreto de Deus. A presciência é possível porque o decreto de Deus é universal e incondicional. A conexão é declarada em Isaías 46:10-11: “Que anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade”. Sim, nós adoramos um Deus que conhece o futuro de forma abrangente, completa e certa. Isso porque — só pode ser por isso — ele o planejou de forma abrangente, completa e certa. O povo de Deus pode confiar totalmente nele. Por outro lado, seus inimigos devem estar aterrorizados com esse Deus!
O Decreto Específico da Predestinação para Vida
As primeiras características bíblicas da eleição são, de acordo com o parágrafo 3, sua seletividade. O que eu quero dizer com isso é o seguinte: A doutrina bíblica da eleição como ato de seleção pressupõe e implica um ato de rejeição. Romanos 9:11 expõe essa ideia: “Porque, não tendo eles ainda nascido, nem tendo feito bem ou mal (para que o propósito de Deus, segundo a eleição, ficasse firme, não por causa das obras, mas por aquele que chama)”. Podemos elencar os seguintes argumentos a respeito da seletividade da eleição e contra a ideia de que todos e cada um dos homens são eleitos em Cristo.
- As palavras usadas para eleição implicam na ideia de seleção (Salmos 147:19-20; Amós 3:2; Deuteronômio 7:7-8).
- As passagens bíblicas que ensinam a reprovação implicam a ideia de seleção (João 12:37-40; Judas 4).
- As passagens bíblicas que contrastam os eleitos e os não eleitos implicam a ideia de seleção (Romanos 9:6-24; 1 Pedro 2:8-10).
O parágrafo 4 nos mostra a especificidade da eleição ao falar da imutabilidade e particularidade da predestinação de Deus. Isso levanta a seguinte questão: “Deus elegeu apenas nações ou grupos, em outras palavras, Romanos 9 se refere somente à eleição de nações? Será que Deus simplesmente escolheu a igreja como um todo?”. Responder afirmativamente a essas perguntas seria tanto ilógico quanto antibíblico.
Isso seria ilógico. Se Deus apenas elegesse grupos, mas não indivíduos, todos aqueles que fizessem parte daquele grupo poderiam cair e se perderem. Assim, o grupo inteiro eleito por Deus poderia se perder. Em outras palavras, se a salvação de alguns é certa, como isso pode ser assegurado sem que haja a eleição de certos indivíduos?
Isso também seria antibíblico (Rom. 11:5-6). Sabemos que o chamado eficaz é efetivo e individual. Deus chama as pessoas à salvação enquanto elas estão em suas circunstâncias particulares e individuais (1 Coríntios 7:20-22). O chamado eficaz é o efeito ou o resultado da eleição (Romanos 8:30; 1 Coríntios 1:26-31). Se o chamado é individual, pessoal e específico, então o mesmo deve se aplicar à eleição, da qual ele é a manifestação histórica.
A terceira característica da eleição bíblica no parágrafo 5 é a causalidade da eleição. Isso é chamado de eleição incondicional. Frequentemente essa pergunta é feita: Deus não ele simplesmente aqueles a quem ele previu que se arrependeriam, creriam, atenderiam seu chamado, seriam santos e perseverariam? Uma resposta negativa a todas estas perguntas é exigida pelas seguintes considerações.
- A presciência pressupõe o decreto de Deus.
- Presciência significa preordenação. Os léxicos gregos padrão afirmam que a palavra “presciência” significa preordenação nas passagens chave.
- A ideia de que Deus nos escolhe por causa de alguma coisa boa em nós é categoricamente negada pela Bíblia (Romanos 9:16, 11:5-6).
- A ideia oposta (que não somos escolhidos por nada de bom que haja em nós) é especificamente afirmada. Somos escolhidos gratuitamente segundo o beneplácito de Deus (Efésios 1:6-9).
- Fé, arrependimento, perseverança, santidade, aceitação de seu chamado — todas as coisas boas que Deus deve prever em nós — são frutos da eleição. Como frutos da eleição, eles não podem ser suas condições prévias.
A eleição bíblica é então distinguidora, pessoal e incondicional. Mas várias perguntas são levantadas a respeito dessa doutrina de eleição.
Qualquer um pode ser salvo junto com os eleitos?
A resposta a esta pergunta, de acordo com o parágrafo 4, é não. A razão, entretanto, não é que Deus os impeça ativamente de serem salvos, mas sim porque, à parte da graça que Deus predestinou conceder a certos homens em seu propósito eletivo, nenhum homem jamais buscará seriamente a salvação. Em outras palavras, à parte da misericórdia eletiva, ninguém deseja ser salvo.
O que faz a diferença entre aqueles que Deus preordena para a vida e aqueles que ele deixa para a morte?
De acordo com os parágrafos 3 e 5, essa diferença é feita pela escolha e graça de Deus. Por causa do pecado original, todos os homens são igualmente expostos à ira divina. Nada neles condiciona Deus a escolhê-los ou os recomenda à graça divina. Assim, é a escolha de Deus que faz a diferença entre aqueles que serão salvos e aqueles que serão deixados a si mesmos no pecado original para operarem sua própria destruição. A distinção entre os eleitos e os não eleitos é feita pela soberania divina, não pela justiça divina.
Como podemos saber se somos eleitos?
De acordo com o parágrafo 6, podemos saber que somos eleitos ao observarmos os frutos da eleição em nossas vidas. Se vemos fé em Cristo, santificação, perseverança na vida cristã em nós mesmos, então eles estão presentes em nós apenas por causa da graça eletiva. Somente as pessoas eleitas possuem tais coisas. Assim, as possuímos, podemos estar certos de que somos eleitos.
O “secreto conselho e beneplácito de sua vontade” de Deus devem ser obedecidos?
A vontade de Deus na Escritura pode se referir a duas coisas distintas. A frase “secreto conselho e beneplácito de sua vontade” é uma referência clara ao que pode ser chamado de vontade decretiva de Deus (também conhecida menos claramente como a vontade secreta ou soberana de Deus). Por outro lado, as exigências éticas de Deus sobre nós, sua lei, podem ser chamadas de sua vontade preceptiva. Esses dois aspectos da vontade divina são claramente distintos. A vontade decretiva é o que Deus determinou que fará. A vontade preceptiva é o que Deus ordenou que o homem deve fazer. A base bíblica para essa distinção talvez esteja mais claramente expressa em Deuteronômio 29:29: “As coisas encobertas pertencem ao Senhor nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem a nós e a nossos filhos para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei”. Essa distinção também está implícita em Gênesis 50:20. Aqui fica claro que os irmãos de José cumpriram a vontade decretada por Deus ao vender José para o Egito. No entanto, ao fazer isso, eles pecaram e violaram a vontade preceptiva de Deus. A vontade decretada de Deus não é a regra de nossa conduta.
Esta distinção é absolutamente crucial, se quisermos evitar o hipercalvinismo. Muitas vezes, por exemplo, tem sido negado que a fé em Cristo é dever de todos os homens porque Deus não escolheu dar fé a todos eles. Isso, no entanto, é fazer do propósito eletivo de Deus, de sua vontade decretiva, a regra de nossa conduta. Isso é um erro capital. A fé é o dever de todos os homens, independentemente de serem eleitos ou não.
É verdade que os eleitos serão salvos não importa o que eles façam? Os eventos predeterminados dependem das ações humanas e de outros eventos históricos para sua ocorrência?
A resposta a estas perguntas está contida em parte no parágrafo 1 e em parte no parágrafo 6. Em resposta à segunda pergunta, a resposta deve ser dada que, sim, eventos pré-determinados dependem de ações humanas e de outros eventos. De acordo com o parágrafo 1, “a contingência (o fato de serem as condições de eventos posteriores) das causas secundárias” não é “eliminada”. Como o parágrafo 6 deixa claro, se Deus predestinou o fim, ele também “preordenou todos os meios para isso”.
Assim, não é que os eleitos serão salvos não importa o que eles façam, mas sim que eles serão salvos pelo fato de que Deus predestinou a eles e a nenhum outro. Somente isso faz sentido à luz da afirmação de Paulo: “Portanto, tudo sofro por amor dos escolhidos, para que também eles alcancem a salvação que está em Cristo Jesus…” (2 Tim. 2:10). Paulo sabia que se Deus predestinou o fim, ele também “preordenou todos os meios para isso”. Devemos sempre nos lembrarmos que a eleição e o decreto de Deus são simplesmente o plano dele. Os planos, por mais certos que sejam quanto ao seu cumprimento, devem ser executados. O projeto de uma construção não é a própria casa, mesmo que seja o projeto de Deus. O decreto para salvar os eleitos é uma coisa, a execução do decreto para a salvação é outra. Efésios 1:4 ensina que a eleição é algo que acontece antes das fundações do mundo. A salvação, entretanto, é algo que acontece durante a história do mundo.
Dr. Sam Waldron
8 de maio de 2021