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Como Os ‘usos da lei… harmoniosamente condizem com… a graça do Evangelho’ (CFB1689 19.7) | Por Richard Barcellos

[Carta Circular da ARBCA • 2008] 

 

Nenhum dos supracitados usos da lei é contrário à graça do Evangelho, mas harmoniosamente condizem com ela… (CFB 19.7a)

 

Nosso tema é importante por pelo menos três razões. Primeiro, por que é isso que confessamos como igrejas confessionais e associadas. É, portanto, o que cremos que a Bíblia ensina. Segundo, por que é uma das afirmações confessionais que na maioria das vezes é mal compreendida e, em nossos tempos, é negada por evangélicos proeminentes.[1] E em terceiro lugar, é importante para o bem estar de nossas igrejas, que são formadas pelos amados filhos de Deus. Essa razão será examinada mais plenamente na conclusão.

 

Ao abordar a questão de como os “usos da lei… harmoniosamente condizem com… a graça do Evangelho” (CFB 19.7a), nós iremos considerar a CFB capítulo 19 e parágrafo 7 em seu contexto confessional, definir alguns termos técnicos utilizados nas discussões sobre a lei de Deus, identificar “os usos da lei” implicados nesse paragrafo e discutir como os usos da lei condizem com a graça do Evangelho. A conclusão como toda será nossa consideração final sobre esse tópico, à luz de nossa discussão.

 

O contexto confessional de CFB 19.7

 

Nossa Confissão em 19.7 presume e constrói os parágrafos anteriores. Um esboço do capítulo 19 pode nos ajudar a ver o progresso e desenvolvimento da doutrina da lei de Deus e como CFB 19.7 funciona à luz do que a precede.[2]

 

1. A revelação inicial da lei de Deus – CFB 19.1: “Deus deu a Adão uma lei de obediência universal…”.

 

2. Sua subsequente função e revelação da lei de Deus – CFB 19.2-4.

 

2.1. Sua subsequente função: Adão a Moisés – CFB 19.2a: “A mesma lei que primeiramente foi escrita no coração do homem, continuou a ser uma regra perfeita de justiça após a Queda”.

 

2.2. Sua subsequente revelação: Lei mosaica – CFB 19.2b-4: “foi entregue por Deus no monte Sinai…”.

 

2.2.1. A lei mosaica e a lei escrita no coração (i.e. Lei Moral).

 

2.2.2. A lei mosaica e a lei suplementar/positiva – CFB 19.3-4: “Além desta lei, comumente chamada de moral”.

 

3. A universal obrigação da lei de Deus – CFB 19.5.

 

3.1. Sua declaração CFB 19.5a: “A lei moral obriga para sempre a todos (Romanos 13:8-10; Tiago 2:8, 10-12) tanto pessoas justificadas como as demais, à obediência da mesma.

 

3.2. Sua base – 19-5b:

 

3.2.1. Por causa do seu conteúdo: “e isso não apenas no que diz respeito à matéria nela contida”.

 

3.2.2. Por causa dAquele que a deu: “mas também em respeito da (Tiago 2:10, 11) autoridade de Deus o Criador, que lhes deu.

 

3.2.3. Seu reforço – CFB 19.5c “Nem o Cristo no Evangelho de forma alguma a ab-roga (Mateus 5:17-19; Romanos 3:31), mas antes confirma esta obrigação”.

 

4. Os variados usos da Lei de Deus – CFB19.6-7

 

4.1. Usos comuns aos crentes e não crentes: “Embora os verdadeiros crentes não estejam sob a lei como um pacto de obras, para serem por ela justificados ou condenados; contudo esta é de grande utilidade para eles, assim como para os outros”.

 

4.1.1. Direciona e obriga como regra da vida: “como uma regra de vida, informando-os sobre a vontade de Deus e de seu dever, ela dirige e os obriga a andar em conformidade”.

 

4.1.2. Descobre o pecado interior: “descobrindo também as contaminações pecaminosas de sua natureza, corações e vidas; assim como, examinando-se desta maneira, eles podem chegar a mais convicção, humilhação por e ódio contra o pecado”.

 

4.1.3. Aponta para o remédio para pecado: “juntamente com uma visão mais clara da necessidade que têm de Cristo e da perfeição da Sua obediência”.

 

4.2. Usos comuns somente aos crentes: “Ela é, semelhantemente útil para os regenerados…”.

 

4.2.1. Restringe nossas corrupções proibindo o pecado. “para conter as suas corrupções, pois proíbe o pecado”.

 

4.2.2. Nos mostra que os pecados dos crentes merecem e quais aflições podem ser esperadas nesta vida pelas suas ameaças. “e as suas ameaças servem para mostrar até mesmo o que os seus pecados merecem, e que aflições nesta vida podem esperar por eles, embora libertados da maldição e do rigor intransigente da lei”.

 

4.2.3. Mostra aos crentes a aprovação de Deus e as bênçãos que podemos esperar por nossa obediência. “as promessas da lei demonstram a aprovação de Deus à obediência e quais bênçãos os homens podem esperar receber se cumprirem a lei; embora não lhes sejam devidas pela lei como um pacto de obras. Assim como um homem faz o bem e evita o mal, porque a lei anima a um, e desencoraja o outro, não é evidência de que ele esteja debaixo da Lei, e não debaixo da Graça”.

 

5. A Natureza Complementar do uso do Evangelho pelos crentes CFB 19.7

 

5.1. Sua negação: “Nem são os supracitados usos da lei contrários à graça do Evangelho”.

 

5.2. Sua afirmação:

 

5.2.1. A essência dessa afirmação: “mas harmoniosamente condizem com ele”.

 

5.2.2. A causa eficiente da sua afirmação:

 

5.2.2.1. Sua pessoa: “O Espírito de Cristo”.

 

5.2.2.2. Sua obra: “submete e habilita a vontade do homem a fazer voluntária e alegremente o que a vontade de Deus, revelada na lei, requer que seja feito”.

 

Após havermos aberto caminho através do texto da CFB, cap. 19, temos estabelecido o contexto de uma discussão que utiliza termos e conceitos, explicitamente ou implicitamente, que devem ser compreendidos para se entender o que está ou que não está sendo afirmado. Assim sendo o caso, vamos entender alguns termos e conceitos utilizados em CFB 19.

 

Definindo Nossos Termos

 

Nossa Confissão é o produto de mais de um século e meio de pensamento teológico pós-Reforma. Reflete os pensamentos do movimento chamado às vezes de Ortodoxia Protestante. Antes que identifiquemos os usos da lei contidos na CFB 19.6 (i.e os usos implicados no 19.7), vamos definir alguns termos usados pela tradição da teologia Reformada em suas discussões sobre a lei de Deus. Isso irá nos ajudar na atual discussão, colocando em um contexto conhecido o debate que nos precede e sobre o qual a Confissão foi edificada. É importante nos lembrarmos de que fazer teologia envolve utilizar termos e frases que evoluíram com o tempo em uma tentativa de encapsular ensinamentos bíblicos cruciais. Nós usamos os temos técnicos e as frases para acomodar verdades bem amplas, colocando essas verdades teológicas de forma resumida e abreviada. Nos acostumarmos com a nomenclatura teológica tipicamente utilizada em discussões sobre a lei de Deus nos ajudará quando chegarmos às afirmações confessionais a respeitos dela.

 

Lei Natural

 

Aqui está a contribuição de Richard Muller para a definição de lei natural:

 

Lex naturalis: lei natural; também lex naturae; a lei moral universal ou imprimida por Deus nas mentes das pessoas ou imediatamente discernível pela razão em seu encontro com a ordem da natureza. A lei natural era, portanto, disponível até mesmo aos pagãos que não tinham a vantagem da revelação do Sinai e a lex mosaica [i.e lei mosaica, que inclui a lei natural, mesmo que em um formato diferente] o resultado sendo que eles eram deixados imperdoáveis pelos seus pecados… Os escolásticos argumentam a identidade da lex naturalis com a lei mosaica… de acordo com a substância e as distinguem… de acordo com a forma. A lex naturalis é interna, escrita no coração e, portanto, obscura [devido ao pecado], já a lei mosaica é revelada externamente e escrita em tábuas, sendo então feita mais clara.[3]

 

A lei natural é universal por que Deus é o criador de todos os homens. A lei natural é “fundada no direito natural de Deus… (sendo fundada na própria santidade e sabedoria de Deus)”.[4] Essas leis são “(Justas e boas antecedendo ao mandamento de Deus…)”.[5] Elas são comandadas por que Ele é justo e bom à luz de quem Deus é e do que o homem é como portador da Sua imagem. Lei natural é a “regra prática dos deveres morais as quais o homem é destinado pela natureza”.[6] Devido à constituição do homem como criatura, essa lei é escrita no coração dele (CFB 4.2-3), embora agora obscurecida pelo pecado (CFB 6). A lei natural não é adquirida pela tradição ou instrução formal. Essa lei foi, entretanto, promulgada (i.e formalmente publicada) no Sinai, o que difere da lei tradicional em forma, contudo é idêntica em substância. Uma distinção é feita entre substância e forma. A substância é una; forma (e função) pode variar. Por exemplo, quando o Catecismo Maior de Westminster Pergunta 98 diz que “A Lei Moral acha-se resumidamente compreendida nos Dez Mandamentos”; ele se refere ao fato da substância (i.e a substância intrínseca) da lei moral é assumida nas proposições do Decálogo como contido em Êxodo 20 e Deuteronômio 5. A forma (e função) cabe às circunstâncias histórico-redentivas em que ela foi dada. A substância, ou princípios intrínsecos são sempre relevantes e aplicáveis ao homem por que ele foi criado à imagem de Deus. A aplicação pode oscilar baseado em mudanças histórica-redentivas, como a inauguração de uma nova aliança, mas a substância e utilidade nunca mudam. Por exemplo, a aplicação do segundo mandamento debaixo da recém-inaugurada Nova Aliança é diferente da aplicação debaixo da Aliança Mosaica, mas sua substância é a mesma. Nós devemos adorar a Deus como Deus nos revelou e, desde a Queda em pecado, por meio de um Mediador e de acordo com a Sua vontade revelada.

 

Lei Moral

 

Muller define lei moral no pensamento Protestante ortodoxo assim:

 

Especifica e predominantemente, o Decálogo, ou Dez Mandamentos, também conhecido como lex Mosaica…, distinta da lex cerimonialis… e da lex civilis, ou lei civil. A lex moralis, que é primeiramente intencionada para regular a moral, é conhecida como thesynderesis [i.e., o hábito inato de entender alguns princípios básicos da Lei Moral] e é a base dos atos de conscientia [i.e., consciência — a aplicação do hábito inato supracitado]. Em substância, a lex moralis é idêntica a lex naturalis… mas, diferentemente da lei natual, é dada por revelação em uma forma que é mais clara e completa do que outra forma conhecida pela razão.[7]

 

Como escrito acima, a lei moral é sumariamente compreendida no Decálogo, não exausta por ela. Mesmo que a promulgação formal do Decálogo tenha um contexto e uso histórico-redentivo, não é nada mais do que a lei natural incorporada no pacto Mosaico em uma nova forma. Esse é um dos seus usos na Bíblia, mesmo que isso nunca exaure seus usos (e.g., Jeremias 31:33).

 

Lei Positiva

 

Lei positiva são as leis adicionadas às leis morais e naturais. Elas são dependentes da vontade de Deus. Essas leis são boas “por que Deus as comanda”,[8] elas se tornam justas, pois foram comandadas por Deus. A primeira revelação da lei positiva foi entregue a Adão no Jardim (Gênesis 1:28, 2:17; cf. CFB 4.3; 6.1; 7.1-3; 19.1). Subsequentes leis positivas estão espalhadas no Novo e Antigo Testamentos. Leis positivas podem cair no desuso por diversas razões. Elas não são necessariamente universais ou perpétuas. Alguns exemplos óbvios de leis positivas no Antigo Testamento são a circuncisão e as leis de sacrifício, e as duas ilustrações no Novo Testamento são o batismo e a Ceia do Senhor. Nem a circuncisão, nem os sacrifícios, nem o batismo ou a Ceia do Senhor são universais e perpétuos. As leis cerimoniais do Antigo Testamento, assim como as leis jurídicas do Israel da antiga aliança, são também exemplos de leis positivas. Leis cerimoniais não são baseadas na criação, mas condicionadas no propósito de Deus para remediar a dureza da vida do homem devido ao pecado. É a lei positiva, lei adicionada à lei natural e moral e, nesse caso para os propósitos redentivos. A lei judicial se refere às leis civis reveladas por Moisés para o antigo Israel como nação de Deus na terra da promessa. Mesmo que os princípios intrínsecos a essas leis (i.e sua equidade geral) ainda possuam um uso moral (CFB 19.7), as leis enquanto universais e positivas para o povo pactual de Deus expiraram junto com a teocracia.

 

 

A Tripla Divisão da Lei

 

A tripla divisão da lei compreende a lei moral como baseada na criação e, portanto, inexorável a todos os homens (mesmo que em formas diferentes) e as cerimônias e leis jurídicas do antigo pacto como suplementar ao Decálogo sob o pacto Mosaico (cf. CFB 19.1-4 e o esboço de 19.1-7 supracitado). As leis cerimoniais e judiciais do pacto Mosaico são leis positivas, leis adicionadas à lei Moral para propósitos histórico-redentivos. A divisão tripla da lei é baseada no fato de que a Bíblia faz uma distinção entre os diferentes tipos de lei funcionando no pacto Mosaico (e anteriormente) e vê o Decálogo como predatando a promulgação formal do Sinai, remetendo à criação do homem.[9] De certa forma, o Decálogo sob o pacto mosaico é lei positiva, lei para o antigo Israel como nação aliançada com Deus para ser obedecido como tal na terra da promessa.[10]

 

O Triplo Uso da Lei

 

O uso triplo e a divisão tripla da lei não são a mesma coisa. A respeito da doutrina do uso triplo da lei, Muller diz:

 

Usus legis: uso da lei, como distinguido pelos escolásticos Protestantes, tanto Luteranos como Reformados; há três usos da lex moralis. (1)… uso político e civil, de acordo com a lei que serve o corpo político como força restritiva do pecado. O primeiro usus é completamente separado de qualquer relação com a obra da salvação e funciona muito como revelatio generalis… em trazer algum conhecimento da vontade de Deus aos homens. (2) … uso pedagógico ou “elenctico”; i.e o uso da lei para confrontação e refutação do pecado para o propósito de apontar o caminho para Cristo… (3) …o terceiro usus legis. O uso final da lei diz respeito aos crentes em Jesus que foram salvo pela fé, à parte das obras. Na vida regenerada, a lei não mais funciona para condenar, já que não mais age mais como base inalcançável para a salvação, mas age como norma de conduta, aceitada livremente por aqueles em quem a graça de Deus age pelo bem. O uso normal também é didático, de forma que a lei agora ensina, sem condenação, o caminho de retidão.[11]

 

O uso triplo da lei também se refere as várias funções da lei moral. O primeiro uso da lei moral se aplica a todos os homens. O segundo se aplica a todos os homens que entram em contato com a Palavra escrita de Deus. O terceiro de aplica somente aos crentes. O Capítulo 19, prágrafo 7 concentra no uso moral da lei para os crentes. Ele funciona entre outras coisas como padrão para a vida,[12] isto é, funciona como uma guia para santificação dos crentes.

 

Os “Usos da Lei” Implicados pela CFB 19.7

 

Quais são os sus da lei moral implicados pela CFB 19.7, os “usos da lei supracitado”? Aqui está o CFB 19.6 com uma lista dos usos da lei contidos nela.

 

6. Embora os verdadeiros crentes não estejam sob a lei como um pacto de obras, para serem por ela justificados ou condenados (Romanos 6:14; Gálatas 2:16; Romanos 8:1, 10:4); contudo esta é de grande utilidade para eles, assim como para os outros; à medida que, como uma regra de vida, os informa sobre a vontade de Deus e de seu dever, dirige e os obriga a andar em conformidade com ela; descobrindo também as contaminações pecaminosas de sua natureza, corações e vidas; assim como, examinando-se desta maneira, eles podem chegar a mais convicção, humilhação por e ódio contra o pecado (Romanos 3:20, 7:7, etc.); juntamente com uma visão mais clara da necessidade que têm de Cristo e da perfeição da Sua obediência. Ela é semelhantemente útil para os regenerados, para conter as suas corrupções, pois proíbe o pecado, e as suas ameaças servem para mostrar até mesmo o que os seus pecados merecem, e que aflições nesta vida podem esperar por eles, embora libertados da maldição e do rigor intransigente da lei. Igualmente, as promessas da lei demonstram a aprovação de Deus à obediência e quais bênçãos os homens podem esperar receber se cumprirem a lei; embora não lhes sejam devidas pela lei como um pacto de obras. Assim como um homem faz o bem e evita o mal, porque a lei anima a um, e desencoraja o outro, não é evidência de que ele esteja debaixo da Lei, e não debaixo da Graça. (Romanos 6:12-14; 1Pedro 3:8-13)

 

Há seis usos da lei contidos aqui: três comuns há crentes e descrentes e três comuns somente aos crentes.[13] Note cuidadosamente o que está sendo afirmado “…contudo esta [i.e “a lei moral” cf. CFB 19.5] é de grande utilidade(uso) para eles [i.e “os verdadeiros crentes”] assim como para os outros [i.e não crentes], em que…”. Note a mudanças para crentes exclusivamente, “…Ela é semelhantemente útil para os regenerados…”. O fato de que crentes e não-crentes encontram utilidades na lei moral comum a eles implica que eles têm algo em comum e isso é a base para esses usos. Crentes e não-crentes são ambas criaturas, “feitas segundo a imagem de Deus… tendo a lei de Deus escrita em seus corações” (CFB 4.2; veja 4.3; 6.1; 19.1, 2, 5). Aqui está um resumo dos seus usos estabelecidos na CFB 19.6 e implicados por 19.7.[14]

 

Usos Comuns a Crentes e Não Crentes.

 

1. À medida que, como uma regra de vida, os informa sobre a vontade de Deus e de seu dever, dirige e os obriga a andar em conformidade com ela (Romanos 3:20, 7:7, etc.)”

2. Descobre o pecado interior: “descobrindo também as contaminações pecaminosas de sua natureza, corações e vidas; assim como, examinando-se desta maneira, eles podem chegar a mais convicção, humilhação por e ódio contra o pecado”.

3. Aponta para um remédio exterior: “juntamente com uma visão mais clara da necessidade que têm de Cristo e da perfeição da Sua obediência”.

 

Usos Comum aos Crentes Somente.

 

4. Restringe a corrupção nos crentes por proibir o pecado: “Ela é semelhantemente útil para os regenerados, para conter as suas corrupções, pois proíbe o pecado”.

5. Mostra que o pecado dos crentes merece e quais aflições devem ser esperados nesta vida pelas suas ameaças: “as suas ameaças servem para mostrar até mesmo o que os seus pecados merecem, e que aflições nesta vida podem esperar por eles, embora libertados da maldição e do rigor intransigente da lei”.

6. Mostra aos crentes a aprovação de Deus e as bênçãos que podemos esperar mediante a obediência das suas promessas: “as promessas da lei demonstram a aprovação de Deus à obediência e quais bênçãos os homens podem esperar receber se cumprirem a lei; embora não lhes sejam devidas pela lei como um pacto de obras (Romanos 6:12-14; 1Pedro 3:8-13).

 

A Coerência Harmoniosa com “a Graça do Evangelho”

 

A questão específica em que estamos nos concentrando é como esses usos condizem “harmoniosamente condizem com” “a graça do Evangelho”. O que se entende por “condiz harmoniosamente”? Entendo por isso concordar plenamente ou não contradizer de forma alguma. A afirmação é que os usos da lei moral mencionados em 19.6 não contradizem de fora alguma “a graça do Evangelho”. A que “a graça do Evangelho” se refere nesse contexto? Note que ele não diz “o Evangelho”. “A graça do” se refere ao que é dado aos crentes como resultado do Evangelho quando crido.[15] Lembre-se que a Confissão está lidando com os crentes do presente em 19.7. A “graça do Evangelho” não se refere a redenção conquistada (ou o anúncio disso), mas a redenção aplicada (i.e os benefícios de Cristo). Essa “graça do Evangelho” não se refere a mensagem a ser crida, ela se refere a graça que vem aos crentes após crerem. Em outras palavras “a graça do Evangelho” é o que vem aos crentes pecadores e lhes é dado. Isso se refere à obediência possibilitada através do Espírito unicamente a eles.[16] Isso deve se tornar claro ao longo desta discussão. Vamos olhar mais especificamente para o parágrafo. O parágrafo tem uma negação e uma afirmação como foi explicada no esboço. Novamente aqui vai CFB 19.7:

 

7. “Nem são os supracitados usos da lei contrários à graça do Evangelho, mas harmoniosamente condizem com ele (Gálatas 3:21). O Espírito de Cristo submete e habilita a vontade do homem a fazer voluntária e alegremente o que a vontade de Deus, revelada na lei, requer que seja feito (Ezequiel 36:27).

 

Esse parágrafo nega que os usos da lei moral por crentes mencionados em 19.6 sejam “contrários à graça do Evangelho”. Ele afirma que os diversos usos “condizem harmoniosamente com ele”. A negação é explicada na afirmação. Sabemos que os usos da lei moral mencionadas em 19.6 não são contrárias a graça do Evangelho” por que a obra do Espírito Santo nas almas do povo de Cristo os identifica com a lei de Deus. Em outras palavras, “a graça do Evangelho” neste contexto está concentrando no “Espírito de Cristo submetendo e habilitando” os crentes já que eles são relacionados com a lei de Deus. É o Espírito de Cristo que transforma o povo de Cristo para que eles possam obedecer a lei de Cristo. Eu pergunto novamente, a que “a graça do Evangelho” se refere nesse contexto? Se refere aos benefícios trazidos a nós pelo Espírito de Cristo. A graça do Evangelho inclui, mesmo que não seja exaurido por isso, o que o Espírito de Deus faz aos crentes e dentro dos crentes por relacioná-los com a lei de Deus. Isso significa que os crentes não se relacionam com a lei de Deus da mesma forma que os não-crentes em todos os sentidos. Relembre-se de CFB 19.6, onde confessamos, “os verdadeiros crentes não estão sob a lei como um pacto de obras, para serem por ela justificados ou condenados”. Isso é a intenção das palavras que estão sob consideração as quais claramente se referem a Ezequiel 36:27 que diz: “E porei dentro de vós o meu Espírito, e farei que andeis nos meus estatutos, e guardeis os meus juízos, e os observeis”. Em virtude da citação de Ezequiel 36:27 na CFB 7.2, nós aprendemos que nossos antepassados viam as palavras de Ezequiel como parte do que foi prometido pela Pacto da Graça.[17]

 

Esse paragrafo é um testemunho maravilhoso da doutrina da obra do Espírito Santo na aplicação da redenção, relacionando os crentes com a lei moral de Deus. O espírito de Deus capacita as pessoas de Cristo a fazerem a vontade de Cristo. Como afirma A.A. Hodge, “no que diz respeito aos homens regenerados, a lei continua indispensável como instrumento do Espírito Santo na obra da sua santificação”.[18] Isso condiz com outras afirmações da Confissão. Por exemplo, CFB 16.3 que fala sobre as boas obras dos crentes: “Sua capacidade de fazer boas obras não é de modo algum dos próprios crentes, mas provém totalmente do Espírito de Cristo…”. Em 16.5, nós lemos que as boas obras dos crentes, “se nossas obras são boas elas procedem do Espírito…”. A razão pela qual os usos da lei moral afirmadas em 19.6 não são contrários à graça do Evangelho é devido a obra que o Espírito de Cristo realiza nos crentes, “submetendo (Ezequiel 36:27) e habilitando a vontade do homem a fazer voluntária e alegremente o que a vontade de Deus, revelada na lei, requer que seja feito”.

 

Conclusões Práticas e Teológicas

 

Compreender os termos e os conceitos assumidos pela nossa Confissão nessa discussão nos ajuda a entender a formulação doutrinal contida na CFB 19.7.

 

Devemos reconhecer que o uso da linguagem técnica é importante. Todos os sujeitos de investigação utilizam tal linguagem. Nossa Confissão utiliza termos e conceitos que devem ser entendidos a fim de que seja possível compreender o seu significado pretendido. Fazer o trabalho de abrir o Dicionário de Muller e ler os variados verbetes poderá ser útil por anos. Não somente armazenaremos em nossas mentes a linguagem técnica utilizada e (muitas vezes assumida) pela nossa Confissão, mas isso também nos ajudará a compreender sua intenção mais claramente. Por exemplo, leitores contemporâneos podem tomar a palavra “lei” em 19.7 e presumir que se refere ao pacto Mosaico. Um pouco de trabalho contextual nos impede de cair em idiossincrasias ou interpretações anacronísticas da nossa Confissão.

 

Compreender a CFB 19.7 propriamente deve nos ajudar a pregar a lei docilmente ao nosso povo.

 

Escutem o que Turrentini diz:

 

Uma coisa é estar debaixo da lei para adquirir vida por ela (como Adão esteve) ou como um professor e uma prisão para guardar os homens até a volta de Cristo; outra coisa é estar debaixo da lei como regra de vida, para regular nossa moral piedosa e santificadamente. É uma coisa estar debaixo da lei de forma contrária ao Evangelho no que diz respeito a rigidez e a exatidão perfeita da obediência e uma maldição iminente pairando sobre a cabeça dos crentes; e é outra coisa estar debaixo da lei sendo subordinada ao Evangelho, dirigindo-nos docemente.[19]

 

Assim como nossa Confissão faz distinções claras entre os tipos de lei bíblica e os variados usos da lei moral seguindo o exemplo da Bíblia, devemos fazer o mesmo em nossos ministérios de púlpito. De um lado não devemos confundir Lei e Evangelho; de outro lado devemos pregar de tal forma a assumir os variados usos da lei moral de Deus de mãos dadas com o Espírito enquanto pregamos. Como eu li uma vez em (eu acho) Thomas Watson, “Devemos pregar a lei de forma mortal”, mas não ao povo de Deus. A função maléfica, amaldiçoadora e condenatória da lei não se aplica mais aos crentes. Portanto não há mais condenação para aqueles que estão em Cristo (Romanos 8:1). Como pastores das ovelhas de Cristo, devemos guiá-las para pastos tranquilos, dando-lhes a “doce direção” da lei. Isso nos leva a outra consideração relacionada.

 

Enquanto pregamos devemos assumir esses usos da lei moral.

 

Esses usos da lei moral para crentes e não-crentes não se tornam aplicáveis somente se aquilo que estamos pregando contém um dos Dez Mandamentos. Esses, junto com outros fatos teológicos divinamente revelados devem ser assumidos como verdadeiros a todos os tempos. Nós podemos saber que alguma coisa é verdadeira, mas não saber como ou quando o Espírito de Cristo está manejando a Palavra pregada enquanto a ministramos e quais os usos da lei estão sendo experienciados nas almas dos nossos ouvintes. Não há necessidade de ter uma lista de usos em nossos sermões que buscamos aplicar aos vários tipos de ouvintes. Não existe nenhum texto bíblico onde a lei moral não possa usada pelo Espírito de Deus nas almas dos ouvintes. Todos os textos bíblicos individuais estão contextualizados com o texto bíblico integral, que nós conhecemos canonicamente como os testamentos da Bíblia. Tudo que é verdadeiro à luz da Palavra escrita de Deus é verdadeiro enquanto estamos pregando a partir de qualquer texto individual. Adicione a isso o fato de que nossos ouvintes normalmente sabem mais sobre a Bíblia do que o que lhes contamos em nossos sermões. Tendo nós assumindo os usos da lei moral conscientemente ou não, o Espírito de Cristo leva a Palavra de Cristo às almas dos homens.

 

Nossa compreensão da harmonização desses usos da lei com a graça do Evangelho é solo fértil para humildade, tanto em nós como em nosso povo.

 

Quando vemos progresso na santificação, tanto em nós mesmos como em nosso povo, devemos nos lembrar que é devido ao “Espírito de Cristo submetendo e habilitando”. O nosso crescimento e o crescimento no povo — a doce conformidade com a lei moral de Deus — é devido não ao pregador da Palavra, mas ao Espírito soprar sobre esta Palavra, trazendo a Sua verdade à luz. A luz santificadora não vem de nós de modo que possamos produzir, forjar ou força-la em nossos ouvintes por meio de ilustrações poderosas ou arroubos de retórica emocionalmente carregada. Devemos pregar a Palavra da forma mais fiel possível e deixar o trabalho eficiente da santificação das almas ao Espírito de Cristo, que habilita “a vontade do homem a fazer voluntária e alegremente o que a vontade de Deus, revelada na lei, requer que seja feito”.

 

 


[1] Será argumentado abaixo que a nossa Confissão está aplicando a doutrina do que é mais comumente chamado de uso triplo da lei em 19.6-7. Para um exemplo de um evangélico contemporâneo que nega o terceiro uso da lei (ou seja, a lei moral como regra de vida para o crente), questiona sua legitimidade, e ainda vê “a noção… não totalmente errada…”, veja Thomas R. Schreiner, 40 Questions About Christians and Biblical Law [40 Perguntas Sobre Cristãos e a Lei Bíblica] (Grand Rapids: Kregel Publications, 2010), 97-100. Schreiner diz: “Estritamente falando, a ideia de que os crentes estão sob o terceiro uso da lei está errada, pois vimos que toda a lei é abolida para os crentes. Ainda assim, a noção não está totalmente errada…”. E depois: “Calvino e Lutero tiveram posições diferentes sobre o terceiro uso da lei. Lutero está mais próximo da verdade sobre esse assunto do que Calvino, pois ele vê mais claramente que a lei do Antigo Testamento não é normativa para os crentes, e que os crentes não estão mais sob o pacto Mosaico” (99).

[2] Eu lutei para incluir ou não este esboço um pouco extenso. Decidi incluí-lo para os leitores poderem ver o fluxo de pensamento, a interconectividade das várias afirmações doutrinárias e o uso de termos e conceitos técnicos, explícito ou implícito pela CFB 19.1-7.

[3] Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms Drawn Principally from Protestant Scholastic Theology [Dicionário de Termos Teológicos em Latim e Grego extraídos principalmente da Teologia Escolástica Protestante] (Grand Rapids: Baker Book House, 1985), p. 175.

[4] Francois Turretini, Institutes of Elenctic Theology [Institutos de Teologia Elêntica], 3 vols., Ed. James T. Dennison, Jr., trad. George Musgrave Giger (Phillipsburg, Nova Jersey: P & R Publishing, 1992-97), 2.11.1 (II: 2).

N. do R.: Essa magnífica obra foi publicada em português sob o título “Compêndio de Teologia Apologética” pela editora Cultura Cristã.

[5] Turretini, Elenctic Theology, 2.11.1 (II: 2).

[6] Turretini, Elenctic Theology, 2.11.1 (II: 2).

[7] Muller, Dictionary, 173-74.

[8] Turretini, Elenctic Theology, 2.11.1 (II: 2).

[9] Para a melhor discussão contemporânea sobre a tríplice divisão da lei, veja Philip S. Ross, From the Finger of God: The Biblical and Theological Basis for the Threefold Division of the Law [Vinda do Dedo de Deus: A Base Bíblica e Teológica para a Divisão Tríplice da Lei] (Ross-shire, Escócia: Mentor Imprint by Christian Focus Publications Ltd., 2010).

[10] Veja a discussão “The Concept of Abrogation in Owen and others” [“O Conceito de Revogação em Owen e outros”] em Neemias Coxe e John Owen, Covenant Theology: From Adam to Christ [Teologia Pactual: De Adão a Cristo], eds. Ronald D. Miller, James M. Renihan e Francisco Orozco (Palmdale, CA: Reformada Baptist Academic Press, 2005), 325-31.

[11] Muller, Dictionary, 320-21.

[12] Muller, Dictionary, 321, denomina isso como o uso didático da lei sob usus didacticus. “…esse último uso didático ou normativo é referido simplesmente como o tertius usus legis, o terceiro uso da lei. Esse uso final da lei pertence aos crentes em Cristo que foram salvos através da fé sem as obras. Na vida regenerada, a lei… atua como uma norma de conduta… Esse uso normativo [usus normativus] também é didático, visto que a lei agora ensina, sem condenação, o caminho da justiça”. Calvino também se referiu ao terceiro uso como usus in renatis, que significa o uso da lei para o regenerado.

[13] Veja Chad Van Dixhorn, Confessing the Faith: A reader’s guide to the Westminster Confession of Faith [Confessando a Fé: Um guia do leitor para a Confissão de Fé de Westminster] (Edimburgo e Carlisle, PA: The Banner of Truth Trust, 2014), 251, n. 1, onde ele reconhece que a ordenação dos usos da lei na Confissão difere da de Calvino. A forma é diferente de Calvino, mas não os conceitos.

N. do R: Essa obra foi publicada em português sob o título “Guia de estudos da Confissão de Fé de Westminster”, pela editora Cultura Cristã.

[14] O texto em negrito nas citações confessionais indica onde e por que eu identifiquei cada uso como eu fiz.

[15] Isso não é negar que o ato inicial da fé salvífica, a justificação etc. não sejam graças ou dons que nos são dados.

[16] Veja Van Dixhorn, Confessing the Faith, 257. Ele usa a frase “obediência capacitada pelo Espírito” como um título enquanto comenta a CFW 19.7.

[17] A CFB 10.1 também cita Ezequiel 36:26 e 27.

[18] A.A. Hodge, The Confession of Faith [A Confissão de Fé] (1869; reimpressão, Edimburgo e Carlisle, PA: A Bandeira da Verdade, Trust, 1983), 258.

[19] Turretini, Elenctic Theology, 2.11.23 (II: 143).