Entre ou cadastre-se

Conversão, por John Gill

[Um Compêndio de Teologia Doutrinária • Livro 6 • Capítulo 13 • Sobre a Conversão]

 

Conversão, embora possa parecer, em alguns aspectos, estar unida com a regeneração e o chamado eficaz, ainda assim pode ser diferenciada de ambos. A regeneração é o ato único de Deus; a conversão consiste tanto no ato de Deus sobre os homens, transformando-os, quanto de atos praticados pelos homens sob a influência da conversão da graça; eles se convertem, sendo transformados. A regeneração é o movimento de Deus para e sobre o coração do pecador; a conversão é o movimento de um pecador em direção a Deus, como alguém (Stephen Charnock) expressa.

 

Na regeneração, os homens são totalmente passivos, uma vez que também estão no primeiro momento da conversão; mas por ela, se tornam ativos, por isso às vezes ela é expressa passivamente: “tendes voltado”, ou sido convertidos (1 Pedro 2:25), e às vezes ativamente: “grande número creu e se converteu ao Senhor” (Atos 11:21), e “quando” a maioria do povo Judeu “se converterem ao Senhor”, o que diz respeito à conversão deles nos últimos dias (2 Coríntios 3:16).

 
O chamado eficaz é a chamada de homens da escuridão para a luz; e conversão é a reposta a esse chamado, e é o verdadeiro “virar-se” dos homens de um para o outro; de modo que, com propriedade, a conversão pode ser considerada como distinta da regeneração e do chamado eficaz. No que diz respeito ao que pode ser observado:

 

 

1. Em primeiro lugar, o que a conversão é, e onde ela se encontra. A conversão NÃO É,

 

1a. Algo exterior, ou que se encontra apenas em uma reforma exterior de vida e costumes, tais como a dos Ninivitas; pois isso pode existir onde a conversão interna não existe, como nos Escribas e Fariseus; e é a que as pessoas podem se afastar, e voltar ao seu primeiro modo de vida novamente; e onde há mudança de vida segura e verdadeira, ela é o fruto e o efeito da verdadeira conversão, mas não ela em si mesma.

 

1b. Também não é algo meramente doutrinário, ou uma conversão de falsas noções antes assimiladas a um conjunto de doutrinas e verdades que estão de acordo com as Escrituras; assim os homens do passado foram convertidos do Judaísmo e do paganismo ao Cristianismo, mas nem todos os que foram verdadeiramente convertidos, em um sentido doutrinário, eram verdadeiros e reais convertidos; alguns tinham a forma de piedade sem o poder dela, tinham um nome para viver e serem chamados de Cristãos, mas estavam mortos, e por isso não-convertidos; por isso, a recuperação de professos da religião de erros em que caíram para o reconhecimento da verdade, é chamado de sua conversão (Tiago 5:19-20).

 

1c. Nem a restauração do povo de Deus das rebeliões a que estão sujeitos, quando eles são em uma forma muito comovente e inoportuna chamados a voltarem para o Senhor (Jeremias 3:12, 14, 22; Oséias 14:1-4), de modo que Pedro, quando caiu em tentação, e negou o seu Senhor, e foi recuperado a partir de sua queda por um olhar de Cristo, isso é chamado de sua conversão (Lucas 22:32). Mas,

 

1d. A conversão em questão é verdadeira, real e internamente uma obra de Deus sobre as almas dos homens.

 

Há uma falsificação da conversão, ou ocorre em alguns homens que não são realmente convertidos. Isso é um pouco semelhante ao que sempre se encontra naqueles que são verdadeiramente convertidos; como, o senso do pecado, e um reconhecimento do mesmo; uma apreensão do desagrado Divino em relação a ele; grande angústia sobre o assunto, alguma tristeza por ter pecado e humilhação por causa disso, e um abster-se de voltar a transgredir; e algo que tem uma semelhança com cada uma destes pode ser encontrado em pessoas não-convertidas. Embora a sua preocupação com o pecado seja principalmente quanto ao mal que advém dele, ou pode vir por ele, e não pelo mal que há nele.

 

Assim em pessoas convertidas há mais cedo ou mais tarde a luz do Evangelho e das suas doutrinas, particularmente a doutrina da salvação por Cristo, que produzem alívio e conforto para elas sob o senso do pecado, e incentivam à fé e à esperança em Deus. E há algo semelhante a isso que é observado em alguns que não são verdadeiramente convertidos, que dizem ser “iluminados”, isto é, de uma forma teórica e doutrinária; e “provam” a boa Palavra de Deus, embora isso aconteça somente de uma forma superficial; e “a recebem com alegria”, com um lampejo de afeição natural, que dura por um tempo; e creem nela com uma fé temporária, historicamente, e tornam-se sujeitos às ordenanças; porém, em tudo isto não há nenhuma obra no coração, ao passo que a real conversão genuína encontra-se,

 

1d1. Na conversão do coração a Deus, dos pensamentos do coração; que são não somente maus, mas continuamente maus e sobre coisas más, não sobre Deus e as coisas de Deus: “todas as suas cogitações são que não há Deus” [Salmos 10:4], nem em qualquer um dos pensamentos dos homens ímpios. Mas quando convertidos, seus pensamentos se voltam para o seu estado e condição por natureza, para suas almas, e o bem-estar eterno delas; Eles se voltam para Deus e para os métodos de Sua graça na salvação dos homens. Essa é a conversão dos “desejos” do coração, que antes seguiam após as concupiscências e desejos vãos, carnais, mundanos e pecaminosos; mas agora ele anseia por Deus e por comunhão com Ele, por Cristo e a salvação por Ele, segundo o Espírito e as coisas do Espírito.

 

Esta é a conversão dos “afetos” do coração, que antes eram “desordenados”, e corriam em uma direção errada; antes eles eram carnais, e ansiavam pelas as coisas do mundo: a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, mas agora eles seus corações são esquadrinhados, e voltados para Deus, seu coração é circuncidado para amá-lO. E eles amam a Deus com todo o coração e alma, porque Ele os amou primeiro; embora antes suas mentes carnais estavam em inimizade para com Ele e com Cristo, a quem agora eles amam afetuosamente, com fervor, superlativa e sinceramente. E eles amam os santos, que são agora os notáveis na terra, em cuja conversação está todo o seu deleite, embora antes eles os odiavam. Eles também amam a Palavra, adoração e ordenanças de Deus, e nelas eles têm prazer em participar, embora antes fosse um cansaço para eles.

 

A conversão é um voltar da “mente” das coisas carnais para as espirituais, e das coisas terrenas para as celestiais; sim, é uma mudança da “vontade”, que antes da conversão está em um estado muito lastimável, é obstinada e inflexível, tendenciosa e se inclinava para o que é mau, é contrária a tudo o que é bom; mas na conversão, Deus “opera nos” homens “tanto o querer como o efetuar, segundo a Sua boa vontade”. Ele lhes concede uma outra vontade, ou uma mudança da vontade deles, de modo que de um povo indisposto, eles são feitos um povo voluntário no dia do Seu poder sobre eles; de forma que eles não estavam dispostos a vir a Cristo para a salvação e para tomá-lO somente, para ser o seu Salvador: “E não quereis vir a mim para terdes vida”, diz Cristo (João 5:40), ou seja, vocês não têm vontade de vir a mim de modo algum para terem vida e salvação. Eles escolhiam antes ir a qualquer lugar em vez de ir a Ele para terem vida; mas agora eles são dispostos a serem salvos por Ele, e resolvem não ter nenhum outro Salvador, senão Ele; sim, embora Ele os mate, eles confiarão nEle, e dizem: “Ele será a nossa salvação”.

 

E embora antes eles estiveram procurando estabelecer a sua justiça própria, e não iriam nem queriam submeterem-se à justiça de Cristo; agora seus corações duros, que estavam longe da justiça, são amolecidos e tornam-se dispostos a serem encontrados em Cristo, e em Sua justiça somente. E na medida em que antes eles não queriam que Cristo reinasse sobre eles, e optaram por não se sujeitarem às Suas leis e ordenanças, agora eles são dispostos a reconhecê-lO como Seu Rei e Governador, e voltam os seus pés para os Seus testemunhos, e estimam os Seus preceitos acerca de todas as coisas como certos.

1d2. Conversão consiste em um homem ser transportado das trevas para a luz. O apóstolo diz que ele foi enviado por Cristo aos gentios, como ministro do Evangelho “para… das trevas os converteres à luz” (Atos 26:18), ou seja, para ser o instrumento ou meio de sua conversão, por pregar o Evangelho para eles. Nisso, a conversão pode parecer coincidir com o chamado eficaz; mas pode-se observar, que a vocação eficaz é um chamado para, enquanto a conversão é um “voltar-se” dos homens das trevas para a luz; Deus não apenas chama para a luz, mas converte-os à luz em todos os sentidos; a Deus, que é a própria luz, e em quem não há treva alguma; a Cristo, que é a luz do mundo; ao Evangelho, que é a grande luz que brilha sobre os homens que estão nas trevas; e à luz da graça, que é uma luz resplandecente, que brilha mais e mais até ser dia perfeito.

 

1d3. A conversão consiste na mudança dos homens “do poder de Satanás a Deus”, como na passagem acima (Atos 26:18). Satanás tem grande poder sobre os homens que estão em um estado não-convertido, o seu lugar está em seus corações e estes são o palácio em que ele governa. Satanás trabalha efetivamente com grande poder e força nos filhos da desobediência, agitando as suas concupiscências e corrupções, sugerindo coisas más às suas mentes e tentando-os a elas; ele faz tudo o que pode para mantê-los em sua cegueira natural e ignorância, e para aumentá-la, e para impedi-los de ouvir o Evangelho e do fato deste ser benéfico para eles, para que a luz dele brilhe em suas mentes. Satanás os prende e os leva cativos segundo a sua vontade; e eles são de bom grado liderados por ele, pelas concupiscências de seu pai que eles satisfarão.

 

Todavia, agora, na conversão, eles são convertidos do poder de Satanás; e este é despojado deles, e sua armadura na qual ele confiava lhe é tirada; a presa é retirada das mãos do poderoso, e o cativo da lei é liberto e homens são transportados do poder das trevas para o reino do Filho amado de Deus. E embora eles não estejam livres de suas tentações, contudo graça suficiente é concedida a eles para que as suportem, sendo o prazer de Deus salvá-los delas, o Qual brevemente esmagará Satanás debaixo de seus pés; e à medida que eles são, na conversão, retirados dele, eles são convertidos a Deus. Os que antes estavam sem Deus e separados da vida de Deus, e estranhos a Ele; mas agora, eles são convertidos para conhecê-lO, amá-lO, para depositarem sua fé nEle, e para terem comunhão com Ele.

1d4. Conversão consiste em converter os homens dos ídolos para servirem ao Deus vivo; não apenas dos ídolos de prata e ouro, de madeira e pedra, como antigamente, mas a partir dos ídolos do próprio coração de um homem, suas paixões e corrupções; em relação a que a linguagem de um pecador convertido é: “Que mais tenho eu com os ídolos?” [Oséias 14:8], esta é uma bênção derramada na conversão: “Ressuscitando Deus a seu Filho Jesus, primeiro o enviou a vós, para que nisso vos abençoasse”, no “apartar, a cada um de vós, das vossas maldades” (Atos 3:26). Na redenção, Cristo afasta as iniquidades de Seu povo ao suportá-las e fazer satisfação por elas. E na conversão Ele, pelo Seu Espírito e graça, converte-os de suas iniquidades; Ele os converte do amor por elas a um ódio pelas mesmas, de modo que ele odeia tanto os pensamentos vãos quanto as ações pecaminosas. Cristo os converte do serviço e trabalho penoso da iniquidade ao serviço da justiça; do poder, domínio e sujeição à iniquidade, e de um estilo de vida iníquo para uma vida de santidade; e dos caminhos do pecado para os caminhos da verdade e da retidão.

 

1d5. Conversão consiste em fazer voltar os homens de sua justiça própria para a justiça de Cristo. Não em fazer obras de justiça — embora tais pessoas convertidas são mais aptas para, e mais capacitadas a, e estão sob maiores obrigações de realizá-las —, como se dependessem delas para a justificação diante de Deus e aceitação por Ele; de forma que eles são convencidos pelo Espírito de Deus da insuficiência de sua justiça própria para justificá-los, pois são imperfeitos; e da necessidade, perfeição e plenitude da justiça de Cristo. E sendo convertidos a Ele, recebem, abraçam, lançam mão e pleiteiam o Sua justiça justificadora diante de Deus.

 

Fazer voltar os homens de sua justiça própria para a justiça de Cristo requer mais do que os ensinamentos dos homens, pois, embora os ministros sejam descritos como “os que a muitos ensinam a justiça” [Daniel 12:3], isto se refere à justiça de Cristo, mas apenas instrumentalmente, e como os meios para isso, através da pregação do Evangelho, em que há uma revelação dela; pois Deus é a causa eficiente da conversão deles a Ele; pois, embora o Evangelho seja a ministração dela, contudo é o Senhor que deve atrair os duros de coração que estão longe da justiça, e torná-los dispostos a submeterem-se a ela, e estarem desejosos de serem encontrados nEle. Pois os homens, naturalmente, não se importam de reter a sua própria justiça; esta é propriamente sua, e o que eles têm tido há muito tempo e com grande esforço a ergueram, e não podem suportar vê-la demolida. Então eles de bom grado e firmemente seguram a sua justiça própria, e se inclinam sobre ela, embora ela não subsistirá, ela é o seu ídolo, em que eles colocam a sua confiança, e tirar isso deles é como tirar o seu deus e eles dizem como Mica, quando seu ídolo foi roubado dele: “Os meus deuses, que eu fiz, me tomastes… que mais me resta agora?” [Juízes 18:24]. Por isso a conversão de uma pessoa que se julga justa aos seus próprios olhos é mais rara e difícil do que a conversão de um pecador devasso; daí o nosso Senhor dizer aos Escribas e Fariseus: “os publica-nos e as meretrizes entram adiante de vós no reino de Deus” [Mateus 21:31], e que Ele próprio não veio “chamar os justos, mas os pecadores, ao arrependimento” [Lucas 5:32].

 

1d6. Conversão consiste em um “voltar-se” do homem para o Senhor ativamente, sob a influência da graça Divina; e por esta frase é muitas vezes expressa na Escritura, como em Isaías 10:21; Atos 11:21; 2 Coríntios 3:16, os homens são plenamente convencidos de que não há salvação em nenhum outro, senão em Cristo, de forma que é em vão esperar em outro lugar. Depois de terem feito muitos questionamentos e pesquisas sem propósito, se voltam para o Senhor Jesus Cristo, e olham para Ele por salvação; sendo alertados do perigo, eles se convertem à medida que são dirigidos, encorajados e habilitados para irem a Cristo, a fortaleza, onde estão a salvo dos perigos e de todos os inimigos. Tais homens são sensibilizados quanto à insuficiência de sua justiça própria, e da idoneidade da justiça de Cristo para eles, eles se voltam para Cristo como o Senhor Sua Justiça, em Quem toda a semente de Israel é justificada e se gloriará. E estando plenamente satisfeitos com a equidade das leis, regras e ordenanças de Cristo, eles se voltam para Ele como seu Senhor e Legislador, e se submetem às Suas ordens, renunciando a todos os outros senhores e seu domínio sobre eles.

 

E embora em seu estado natural, eles sejam como ovelhas desgarradas, na conversão eles são devolvidos a Cristo, como o grande Pastor e Bispo das almas. A parábola que representa o buscar, encontrar e trazer para casa a ovelha perdida, é uma representação da forma de conversão de um pecador. O povo de Cristo são as Suas ovelhas antes da conversão, mas são ovelhas perdidas, vagueando no deserto; e, como a ovelha nunca retorna ao rebanho, ao pastor e à pastagem por si mesma, a não ser que seja buscada e seja levada a retornar; assim é com eles, até que eles sejam procurados e encontrados, e trazidos para casa por Cristo, o proprietário deles, com alegria.

 

As parábolas seguintes representam a mesma coisa; como a da moeda de prata perdida, pois, ao buscá-la a mulher acende uma vela e varre a casa, e procura por todos os cantos até que ela a encontra, o que lhe traz alegria. Isso apresenta a alta estima e valor que os eleitos têm para Cristo, que é comparável à prata, sim à ouro fino e pedras preciosas; e a passividade dos homens a princípio na conversão, que não mais contribuem para sua própria conversão do que a moeda de prata contribuiu para ser encontrada; e os meios e métodos utilizados na conversão, à luz do ministério do Evangelho, e a agitação e festejo naquela ocasião.

Assim também ocorre na parábola do filho pródigo, e seu retorno ao seu pai, é expressivo do mesmo; sua maneira de viver antes de seu retorno é uma vívida imagem do estado dos homens não-convertidos, vivendo em suas concupiscências, e seguindo os desejos da carne e dos pensamentos. Em seu retorno há todos os sintomas de uma conversão verdadeira e real. Como um senso de que ele estava morrendo à míngua, passando fome e que estava naturalmente perecendo; seu retorno ao seu perfeito juízo, seu senso de pecado, a sua confissão arrependimento deste e a sua fé e esperança de encontrar uma recepção favorável da parte de seu pai, o que o incentivou a voltar, e foi isto que ele encontrou (veja Isaías 55:7).

2. Em segundo lugar, as causas da conversão que são eficientes, móveis e instrumentais.

 

2a. Em primeiro lugar, a causa eficiente da conversão, que não é o homem, mas Deus.

 

2a1. A conversão não é causada pelo homem, não é pelo poder e nem pela vontade do homem.

 

2a1a. A conversão não acontece pelo poder do homem. O que se diz sobre a conversão ou saída dos judeus de seu cativeiro, é válido para a conversão de um pecador, a saber: “Não por força nem por violência, mas sim pelo meu Espírito, diz o Senhor dos Exércitos” [Zacarias 4:6]. Os homens estão mortos em um sentido moral, enquanto não-convertidos, eles estão mortos em seus delitos e pecados, que são a causa de sua morte. E sua própria vida em si não é outra senão a morte moral. Nem podem vivificarem a si mesmos, e, a menos que eles sejam vivificados, eles não podem ser convertidos; eles possuem um senso moral mortificado, de modo que eles estão “fracos” [Romanos 5:6]; eles não estão apenas “enfermos pela carne” [Romanos 8:3], a corrupção da natureza, mas eles estão “sem força”; sem nenhuma força em absoluto para realizar o que é bom, e muito menos uma obra de tão grande importância como a sua própria conversão.

 

Homens não-convertidos não têm o domínio de si mesmo, nem qualquer poder sobre seus corações, pensamentos, desejos ou afetos; eles não podem vê-los e controlá-los ao seu bel prazer; eles não podem pensar coisa alguma, como de si mesmos, muito menos ter um bom pensamento; eles não podem direcionar os fluxos de seus desejos e afetos aos objetos apropriados; eles não podem mover suas mentes, nem controlar as suas vontades nem mesmo para aquilo que é o seu próprio benefício.

 

A conversão é uma tal transformação em um homem de modo que não estar em seu poder efetuar, é tão impossível para um homem converter-se como é para um etíope mudar a sua pele, ou para um leopardo as suas manchas; de tais coisas nunca se ouviu falar, como um mouro se tornar branco, e um leopardo se tornar-se limpo de suas manchas; assim é a grande impossibilidade de que um homem converta a si mesmo (Jeremias 13:23). Uma árvore primeiramente precisa ser feita boa, de modo a dar frutos bons: “Faça a árvore boa”, diz o Senhor; mas a árvore não pode fazer a si mesma boa; outra mão deve ser empregada neste caso para enxertá-la, cultivá-la e melhorá-la. Um espinheiro não pode transformar-se em uma videira, e assim produzir uvas; nem abrolhos uma figueira, para produzir figos; essas coisas são tão possíveis de acontecer quanto um homem converter-se e produzir bons frutos de justiça (Mateus 12:33; 7:16-18).

A conversão é o movimento da alma em direção a Deus; mas este movimento não pode existir em um homem morto, a menos que ele seja vivificado e isso não acontecerá se ele não for atraído pela graça eficaz; pelo que Deus, na conversão, atrai os homens com bondade para Si mesmo; e, com cordas de amor, ao Seu Filho; pois “ninguém”, diz Cristo, “pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não trouxer” (João 6:44). E até mesmo as pessoas convertidas são tão sensíveis a isso, que oram, como a igreja o fez: “Leva-me tu; correremos após ti” (Cânticos 1:4), a coisa fala por si mesma, e mostra que ela não pode ser feita pelo poder do homem; pois isso não é outra senão uma “criação”, o que exige poder de criação para efetivá-la, e tal poder a criatura não tem; pois a restauração ou conversão de um santo apóstata é uma criação e exige o poder do Criador para fazê-la. Sobre isto Davi, quando desviado, foi sensível e, portanto, orou: “Cria em mim, ó Deus, um coração puro” [Salmos 51:10], então, muito mais é a primeira conversão de um pecador, e exige semelhante poder. A conversão é como uma ressurreição dentre os mortos, e não é efetuada, senão pela sobreexcelente grandeza do poder de Deus, como o mesmo poder que foi usado para ressuscitar a Cristo dentre os mortos (Efésios 1:19).

 

2a1b. Também não é a conversão devida à vontade dos homens; a vontade do homem, antes da conversão, está em um péssimo estado, pois escolhe seus próprios caminhos, e se deleita em suas abominações. O não-convertido busca avidamente os desejos da carne e dos pensamentos; ele é determinado a ir atrás de seus amantes e dos desejos que alimentam o seu apetite, e concede a si mesmo coisas agradáveis à mente carnal. A vontade se torna um escravo de desejos e prazeres carnais.

 

Embora a liberdade natural da vontade não seja perdida por causa do pecado, ela pode livremente desejar as coisas naturais, como o comer ou beber; sentar, ficar em pé ou caminhar ao seu bel prazer; mas a sua liberdade moral é perdida, é algemada com as duas cadeias dos desejos pecaminosos, pelo que o homem não-convertido é vencido e levado ao cativeiro; e não obstante ele se gabe de sua liberdade, ele é um escravo nascido em casa; e, portanto, com razão, Lutero chamou isso de “servum arbitrium” [escravo arbítrio]. O homem não deseja o que é bom até que Deus opere isso nele, e de indisposto o faça voluntário no dia do Seu poder.

 

O homem não-convertido não tem vontade de vir a Cristo e ser salvo por Ele; nem de submeter-se à Sua justiça; nem de estar sujeito às Suas leis e ordenanças, até que a essa vontade seja operada nele pela graça eficaz. Negamos que a conversão seja a partir da vontade dos homens; pois como toda a salvação “não depende do que quer”; assim acontece com esta parte da salvação em particular; a regeneração, com a qual a conversão, no seu primeiro momento concorda, não é “nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus” (Romanos 9:16; João 1:13).

 

Mas, pode-se dizer que se a conversão não está no poder e vontade dos homens, para que finalidade são as exortações como as seguintes; “Tornai-vos, e convertei-vos de todas as vossas transgressões; arrependei-vos, pois, e convertei-vos” (Ezequiel 18:30, 32 e Atos 3:19), ao que pode ser respondido, que estas passagens não relacionam-se à conversão espiritual e interna, mas a uma reforma exterior da vida e costumes. No primeiro caso, os judeus estavam então em um estado de cativeiro, que era uma espécie de morte, como as aflições dolorida, por vezes, são denominadas (2 Coríntios 1:10), e para a qual eles foram trazidos por seus pecados; agora o Senhor declara, que Ele não tinha prazer neste estado desconfortável e condição deles; era mais desejável para Ele, e assim Ele os exorta a isso, a reforma de suas práticas malignas; em seguida, eles seriam libertos de seu cativeiro, e viveriam confortavelmente em sua própria terra, como viviam anteriormente. Mas o que tem isto a ver com a conversão espiritual e interna de um pecador para a Deus? No que diz respeito àquele último caso, os judeus foram ameaçados com a destruição de sua cidade e nação, por sua rejeição de Jesus, o Messias, e outros pecados dos quais eles eram culpados; e agora o apóstolo aconselha aqueles a quem ele dirige seu discurso, a abandonarem suas noções erradas sobre Cristo, e se arrependerem da má forma de tratá-lO e aos Seus seguidores, e de seus outros pecados, de forma exterior, para que eles escapassem das calamidades que estavam vindo sobre a sua nação e povo.

 

Mas, supondo que estas, e tais semelhantes exortações, fossem relativas à conversão interna do coração a Deus; tais exortações só podem ser projetadas para mostrar aos homens a necessidade de tal conversão à salvação. Como nosso Senhor disse: “se não vos converterdes… de modo algum entrareis no reino dos céus” [Mateus 18:3], e quando os homens são convencidos disto, eles logo serão conscientes de sua impotência para converterem-se, e orarão, como Efraim, “converte-me, e converter-me-ei” [Jeremias 31:18], imediata e eficazmente; pois,

2a2. Somente Deus é o autor e a causa eficiente de conversão. Aquele que fez o coração do homem e formou o seu espírito dentro dele, somente Ele pode transformar seus corações, e formar e moldar seus espíritos, como Lhe aprouver.

 

O coração de um rei, e assim o de todos os outros homens, está nas mãos do Senhor, e Ele pode direcioná-los como os rios de água são dirigidos. Ele, e somente Ele, pode dar, e esquadrinhar, e converter os pensamentos, desejos e afetos do coração em outra direção e a mente e a vontade para outros objetos. Deus pode remover a obstinação da vontade, e dobrá-la ao Seu deleite, e torná-la flexível e adaptável à Sua própria vontade. Ele pode tirar a dureza do coração, embora seja como pedra de diamante, Ele pode suavizá-lo e deixa-lo suscetível das melhores impressões. Deus pode quebrar o coração de pedra em pedaços; sim, tirar o coração de pedra e dar um coração de carne; assim como Ele pode extrair dele o que quiser, para que Ele possa colocar nele o que quiser, como ele de fato o faz na conversão colocando em nossos corações as Suas leis, o Seu temor e Seu o Espírito.

 

Ele pode e atrai os não-convertidos, pela forte influência de Sua graça sobre eles, a Si mesmo e ao Seu Filho; e isso Ele faz sem violentar as Suas vontades; Ele docemente atrai, pela Sua graça, para que venham a Cristo e aos Seus preceitos. Ele poderosamente convence Jafé a habitar nas tendas de Sem. Ele faz o Seu povo voluntário no dia de Seu poder, para fazer o que antes eles não tinham nenhuma vontade nem inclinação; e ainda assim eles agem mui livremente. O homicida não sente mais vontade de fugir para uma cidade de refúgio, para abrigar-se contra o vingador de sangue, do que um pecador, sensível ao seu perigo, foge para Cristo em busca de refúgio, e lança mão da esperança proposta diante dele.

 

O poder da graça Divina, expresso na conversão, é irresistível; isto é, tão irresistível a ponto desta obra não poder ser interrompida e ineficaz, por qualquer oposição que seja feita a ela, interior ou exteriormente. A conversão é segundo a vontade de Deus, a Sua vontade proposital, que nunca pode ser frustrada: “Porquanto, quem tem resistido à sua vontade?” [Romanos 9:19]. Seu conselho será firme, e Ele cumprirá todo o Seu prazer. A conversão é operada pela onipotência de Deus. A obra da fé, que é a principal parte da obra da conversão, é iniciada, continuada e executada com poder e um pecador não pode resisti-la de modo a tornar o poder de Deus ineficaz para a conversão, mais do que Lázaro conseguiu resistir ao poder de Cristo ao chamá-lo para fora de seu túmulo.

 

Se estivesse no poder da vontade dos homens dificultar o trabalho de conversão, de modo que ela não ocorresse, quando é o desígnio de Deus que ela ocorra; então Deus poderia se frustrar em Seu propósito, o que não deve ser dito; pois não há conselho, nem força contra Ele. Sejam quais forem os dispositivos que estejam no coração de um homem, os conselhos de Deus nunca podem ser frustrados; quando Deus propôs converter um pecador, quem o poderá invalidar? e quando a Sua mão forte da graça está estendida para colocar esse efeito em execução, quem pode encolhê-la? quando Ele opera de alguma forma, e assim na conversão, não há ninguém que possa impedir. Além disso, se a conversão ficasse de pé ou caísse de acordo com a vontade dos homens; ou se esse fosse o ponto-chave na conversão do homem, isso deveria, antes, ser atribuído à vontade de homens do que à vontade de Deus; e não seria verdade o que se diz: “isto não depende do que quer” [Romanos 9:16], sim, pois então a vontade dos homens teria maior impacto na conversão e em resposta a essa pergunta: “Porque, quem te faz diferente?” [1 Coríntios 4:7], poderia ser dito, como foi citado por alguém orgulhoso e altivo que possuía livre-arbítrio, Grevinchovius: eu me fiz diferente.

 

A tudo isso pode-se objetar as palavras de Cristo: “quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintos debaixo das asas, e tu não quiseste!” (Mateus 23:37), mas deve ser observado que este ajuntar não deve ser entendido como conversão; mas sobre a participação no ministério da palavra sob João Batista, o próprio Cristo e Seus apóstolos. De forma que Cristo afetuosa e inoportunamente havia exortando-os; o que, se fosse considerado, os teria preservado da vingança iminente sobre Jerusalém, e também deve ser observado que não são as mesmas pessoas as que Cristo gostaria de ajuntar e aquelas sobre quem Ele diz: “e tu não quiseste”; pelo que intencionou-se os legisladores e governadores do povo, que não lhes permitiam participar do ministério do Evangelho, mas os ameaçavam expulsá-los da sinagoga se eles o fizessem (Mateus 23:13).

 

2b. Em segundo lugar, a causa motriz ou que impulsiona a conversão é o amor, a graça, a misericórdia, o favor e a boa vontade de Deus; os mesmos são a causa motriz da regeneração e do chamado eficaz, e não os méritos dos homens; pois o que há ali nos homens antes da conversão que mova a Deus a para dar esse passo em seu favor? (veja 1 Coríntios 6:9-11; Efésios 2:2-4).

 

2c. Em terceiro lugar, a causa instrumental ou meio da conversão, geralmente é o ministério da Palavra. Às vezes, de fato, é feito sem a Palavra, por alguma ou outra notável providência despertadora, e às vezes, lendo as Escrituras; mas, na maioria das vezes, é através da pregação da Palavra; por isso, os ministros são descritos como “os que a muitos ensinam a justiça” [Daniel 12:3]. E o apóstolo Paulo diz que ele foi enviado por Cristo para o mundo gentio: “para… das trevas os converteres à luz, e do poder de Satanás a Deus” [Atos 26:18]; e isso é feito tanto pela pregação da Lei quanto do Evangelho: “A lei do Senhor é perfeita, e refrigera a alma” [Salmos 19:7], embora talvez não a Lei, considerada rigorosamente, mas toda a doutrina da Palavra está ali significada. Entretanto, a pregação da Lei é utilizada pelo Espírito de Deus para convencer do pecado; pois “porque pela lei vem o conhecimento do pecado” [Romanos 3:20]; e por meio dela, quando ela entra no coração e na consciência, sob Sua influência, o pecado evidencia-se excessivamente maligno, e a alma é cheia de grande angústia por causa disso: “Porque a lei opera a ira” [Romanos 4:15]. Embora alguns consideram a pregação da Lei sendo antes preparatória para a conversão, em vez de a própria conversão, isso pode ser melhor atribuído ao Evangelho. E, de fato, o recebimento do Espírito, e Suas graças, e em particular a fé, são atribuídos à pregação do Evangelho, e não à Lei, como o meio dos mesmos: “recebestes o Espírito pelas obras da lei?” [Gálatas 3:2], isto é, pela pregação da doutrina de obediência a ele; “ou pela pregação da fé?”, ou seja, pela doutrina do Evangelho, a pregação da fé em Cristo; a qual é, portanto, chamada de “a palavra da fé”, e por ela a fé vem; pois “a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus” (Gálatas 3:2; Romanos 10:8, 17).

 

Contudo, a pregação da Palavra do Evangelho não é suficiente por si só para produzir a obra da conversão no coração. Homens podem ouvir a pregação da Palavra do Evangelho, e não serem convertidos por ela; nem receberem qualquer benefício, proveito ou vantagem através dela, caso ela venha somente em palavras, e não com a demonstração do Espírito e de poder. Mas quando a pregação da Palavra do Evangelho é acompanhada com o poder de Deus; ou é feita o poder de Deus para a salvação, mesmo então, é apenas um instrumento, e não uma forma eficiente; pois “quem é Paulo, e quem é Apolo, senão ministros [ou instrumentos] pelos quais crestes?” (1 Coríntios 3:5).

 

3. Em terceiro lugar, os sujeitos da conversão. Estes não são todos os homens, porque todos, de fato, não são convertidos. E também não parece ser o desígnio e o propósito de Deus converter todos os homens; nem Ele dá graça suficiente para que todos os homens se convertam; pois Ele não concede a todos os homens os meios da graça, o ministério externo da Palavra, isso não foi concedida aos gentios por centenas de anos antes da vinda de Cristo; e desde então, milhões de pessoas nunca foram favorecidas com ela, o mesmo acontece com multidões nos dias de hoje.

 

E quanto àqueles que têm a Escritura para ler, para muitos, ela é um livro selado, e para todos é assim, a menos que seja aberta pelo Espírito de Deus. Para quem o Evangelho é pregado, o mesmo está escondido, a menos que lhes seja dado conhecer os mistérios do reino, que não é o caso de todos. As pessoas convertidas são os “eleitos” de Deus, tanto entre os judeus quanto entre os gentios. Nos primeiros tempos do Evangelho, muitos entre os gentios se converteram, e igrejas foram formadas por eles. E desde então tem havido conversões entre eles, e até hoje, e no último dia uma abundância deles serão convertidos. E quando a plenitude dos gentios for trazida, então, os judeus, dos quais agora e a seguir apenas um ou outro é convertido, eles serão todos como uma nação nascida de novo, convertidos e salvos.

 

Aqueles convertidos são os “redimidos”, e a razão pela qual eles são convertidos é porque eles são redimidos: “Eu lhes assobiarei”, pelo ministério da Palavra, “e os ajuntarei”, o que é outro termo para conversão: “porque eu os tenho remido” (Zacarias 10:8), aqueles a quem Deus converte são as mesmas pessoas para as quais Ele forneceu o perdão dos pecados na Aliança da Sua graça, e uma herança eterna no Seu propósito Divino; pois o apóstolo diz que ele foi enviado por Cristo “para lhes abrires os olhos, e das trevas os converteres à luz, e do poder de Satanás a Deus; a fim de que recebam a remissão de pecados, e herança entre os que são santificados pela fé em mim” (Atos 26:18). Em uma palavra, eles são descritos como “pecadores”; “os pecadores a ti se converterão” (Salmos 51:13). Pecadores por natureza e por prática, e alguns deles os piores e principais dos pecadores; e, portanto, a maravilhosa graça de Deus é mais demonstrada em sua conversão (1 Coríntios 6:11; 1 Timóteo 1:3, 14, 15).