(Este é um trecho de, A Doutrina da Trindade: Provada pela Bíblia, o mais novo lançamento da editora O Estandarte de Cristo)
A partir da nuvem de testemunhos contidos nas passagens citadas anteriormente, cada um dos quais é suficiente para evitar a infidelidade sociniana, escolherei uma passagem em particular para demonstrar tanto a clareza da evidência bíblica quanto a fraqueza das objeções que costumam ser usadas contra ela, a passagem é João 1:1-3: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez”.
Aqui por Verbo, ou ὁ Λόγος, ou como quer que seja chamado, seja como a Palavra eterna e a Sabedoria do Pai ou como o grande Revelador da vontade de Deus para nós, Jesus Cristo o Filho de Deus é que é intencionado. Isso é reconhecido por todos; e o contexto não admitirá nenhuma hesitação sobre isso. Porque desse Verbo é dito, que “estava no mundo” (v. 10); “Foi rejeitado pelos seus” (v. 11); “Se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai” (v. 14); é chamado expressamente de “Jesus Cristo” (v. 17) e de “o Filho unigênito, que está no seio do Pai” (v. 18). Então, o assunto tratado aqui é um consenso; e não é menos evidente que é o desígnio do apóstolo declarar a respeito de quem Ele escreve tanto o quem quanto o que Ele era. Aqui, então, como em nenhum outro lugar, nós podemos aprender sobre o que devemos crer em relação à pessoa de Cristo; o que também podemos certamente fazer, se nossas mentes não estiverem pervertidas para nosso próprio prejuízo, pois “o deus deste século cegou os entendimentos dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, que é a imagem de Deus” (2 Coríntios 4:4).
Desse Verbo, ou Filho de Deus, afirma-se que “estava no princípio”. E essa expressão, se não demonstrar de forma absoluta e formal a eternidade, no mínimo expressa Sua pré-existência anterior à toda a criação, o que equivale ao mesmo; porque nada pode preexistir antes de todas as criaturas, senão na natureza de Deus, que é eterna; a menos que venhamos a supor a existência de uma criatura anterior a qualquer criação. Mas o que se entende por essa expressão é o que as Escrituras noutro lugar declaram: “Desde a eternidade fui ungida, desde o princípio, antes do começo da terra” (Provérbios 8:23). “E agora glorifica-me tu, ó Pai, junto de ti mesmo, com aquela glória que tinha contigo antes que o mundo existisse” (João 17:5). Ambas passagens, como eles mesmos a explicam, também testificam inegavelmente da eterna pré-existência do Cristo, o Filho de Deus.
A Doutrina da Trindade: Provado pela Bíblia
E nesse caso prevalecemos contra nossos adversários, se provarmos qualquer pré-existência de Cristo até Sua encarnação; admitir isso, embora eles absolutamente o neguem, destruiria toda a sua heresia nesse assunto. E, portanto, eles sabem que o testemunho de nosso Salvador sobre Si mesmo, se entendido conforme o sentido apropriado e inteligível, é perfeitamente destrutivo de suas pretensões: “antes que Abraão existisse, eu sou” (João 8:58). Não haveria um sentido próprio nessas palavras, mas um equívoco grosseiro, se a existência de Cristo antes de Abraão nascer não for afirmada nelas (visto que Cristo as falou em resposta a esta objeção dos judeus: que ele ainda não tinha nem cinquenta anos, e assim não poderia ter visto Abraão, nem Abraão a Ele, e os judeus que estavam presentes entenderam suficientemente que Cristo afirmava sobre uma preexistência divina até o Seu nascimento, tanto aqueles judeus do passado como os do presente; em seguida, eles pegaram em pedras para apedrejá-lo, supondo que Cristo houvesse blasfemado por afirmar Sua deidade, como outros agora a negam) no entanto, eles, os socinianos, vendo quão factual é essa preexistência, embora não a afirmem absolutamente como eterna, contudo, afirmam que o significado das palavras de João 8:58 é que “Cristo era a luz do mundo antes que Abraão fosse feito o pai de muitas nações” — essa é uma interpretação tão absurda que jamais qualquer homem que não esteja enfatuado pelo deus deste mundo poderia admitir.
Entretanto “no princípio”, como absolutamente usado, é o mesmo que “desde a eternidade”, como é dito em Provérbios 8:23, e denota uma existência eterna; é isso que é aqui afirmado acerca do Verbo, o Filho de Deus. Mas que a palavra “princípio” seja restringida ao assunto tratado (que é a criação de todas as coisas) e a pré-existência de Cristo na Sua natureza divina para a criação de todas as coisas é claramente revelado e, inevitavelmente, afirmado. E, de fato, não só a palavra, mas o discurso desses versículos, se relaciona claramente e expõe o primeiro versículo da Bíblia: “No princípio criou Deus o céu e a terra” (Gênesis 1:1). Ali é afirmado que, no princípio, Deus criou todas as coisas; aqui, que o Verbo estava no princípio e fez todas coisas. Isso, portanto, é o mínimo que obtivemos com essa primeira palavra da nossa passagem bíblica, a saber, que o Verbo ou o Filho de Deus possuía uma pré-existência pessoal em relação a toda a criação. Em que natureza, de criador ou de criatura, Cristo já existia? Que os homens inteligentes respondam para si mesmos, pois sabem que o Criador e as criaturas são seres que possuem natureza, embora diferentes. Uma delas Ele deve ser, e pode muito bem ser suposto que Ele não era uma criatura antes da criação de qualquer delas.
Mas, em segundo lugar, onde ou com quem, estava esse Verbo no princípio? “Estava”, diz o Espírito Santo, “com Deus”. Antes de existir qualquer criatura, Ele não poderia estar em lugar algum, além de estar com Deus, isto é, o Pai, como é expresso em um dos testemunhos bíblicos já citados: “O Senhor me possuiu no princípio de seus caminhos, desde então, e antes de suas obras… Então eu estava com ele, e era seu arquiteto; era cada dia as suas delícias, alegrando-me perante ele em todo o tempo” (Provérbios 8:22, 30), ou seja, no princípio, esse Verbo, ou Sabedoria de Deus, estava com Deus.
E isso é o mesmo que nosso Senhor Jesus afirma sobre Si mesmo em João 3:13: “Ora, ninguém”, diz Ele, “subiu ao céu, senão o que desceu do céu, o Filho do homem, que está no céu”. E, em outras passagens, Ele afirma que está no céu, isto é, com Deus, ao mesmo tempo em que Ele estava na terra; através disso Cristo declara a imensidão de Sua natureza e a distinção de Sua pessoa; e a Sua descida do céu antes de Se encarnar na terra declara a Sua pré-existência; por essas duas coisas é manifesto o significado dessa expressão: “No princípio Ele estava com Deus”. Mas em relação a isso os que discordam dessas verdades inventaram uma notável evasão. Pois, embora eles não saibam bem o que fazer com a última cláusula dessas palavras, que diz que o Senhor Jesus estava nos céus mesmo enquanto falava e estava na terra, “o Filho do homem, que está no céu”, o que é coerente com a descrição da imensidão de Deus feita pelo profeta Jeremias “Não preencho o céu e a terra? Disse o Senhor” (23:24), mas eles dizem que o Senhor Jesus estava no céu pela meditação celestial, como outro homem pode estar. No entanto, eles dão uma resposta muito clara sobre o que deve estar incluído em Sua descida do céu — ou seja, Ele foi da pré-existência para a encarnação — pois eles nos dizem que, antes de Seu ministério público, Ele foi em Sua natureza humana (o que é tudo o que Lhe permitem) arrebatado para o céu, onde foi ensinado sobre Evangelho, como o grande impostor Maomé fingiu ter sido ensinado ali sobre o Alcorão. Se você perguntar quem lhes disse isso, eles não podem dizer; mas podem dizer quando isso aconteceu, a saber, quando Ele foi conduzido pelo Espírito ao deserto durante quarenta dias, após o Seu batismo. Entretanto, essa interpretação da passagem está comprometida; pois um dos evangelistas afirma claramente que Cristo esteve “aqueles quarenta dias no deserto com os animais selvagens” (Marcos 1:13), e, com certeza, Ele não estava no céu com essa mesma natureza, isto é, em presença física, com Deus e Seus santos anjos.
E me permitam acrescentar a essa interpretação de João 1:1, mencionada a seguir, e as duas passagens mencionadas anteriormente, João 8:58 e 3:13, o fato de que Fausto Socino aprendeu dos escritos de seu tio Lælius,[1] como ele confessa; e faz mais do que insinuar que ele acreditava que recebeu esses ensinos, por assim dizer, por revelação. E pode ser então que eles sejam realmente tão dissimilados, ilógicos e irracionais, que nenhum homem poderia lhes ensinar algo por meio de qualquer investigação razoável; mas o autor dessas revelações, se pudermos julgar o pai pelo filho, não pode ser outro senão o espírito do erro e da escuridão. Suponho, portanto, que, apesar dessas objeções, os cristãos crerão que “no princípio o Verbo estava com Deus”, ou seja, que o Filho estava com o Pai, como é comumente declarado em outras passagens das Escrituras.
Mas quem era esse Verbo? Diz o apóstolo, Ele era Deus. Ele estava com Deus (isto é, o Pai), como Ele próprio era Deus também; Deus, no sentido de Deus que a natureza e a Escritura representam; não um deus por ofício, um deus exaltado a essa dignidade (que não pode ser entendida como se estendendo para antes da criação do mundo), mas como Tomé o confessou: “Senhor meu, e Deus meu!” (João 20:28); ou como Paulo o expressa: “O qual é sobre todos, Deus bendito eternamente” (Romanos 9:5), ou o Deus altíssimo; que esses homens amam negar. Que apenas a infidelidade dos homens, inflamada pela astúcia e malícia de Satanás, não busque argumentações absurdas, e essa questão é determinada; se a Palavra e o testemunho de Deus ainda forem capazes de determinar uma disputa entre os filhos dos homens. Aqui está a resumo do nosso credo nesse assunto: “No princípio, o Verbo era Deus”, e assim continua até a eternidade, sendo o alfa e o ômega, o primeiro e o último, o Senhor Deus todo-poderoso.
E para mostrar que Ele era Deus no princípio, assim como ele também era distinto de Deus Pai, por Quem depois foi enviado ao mundo, João acrescenta: “Ele estava no princípio com Deus” (1:2). Além disso, para evidenciar o que Ele afirmou e revelou para que nós acreditássemos, o Espírito Santo acrescenta uma declaração firme tanto de Sua deidade eterna quanto de Seu cuidado imediato com o mundo (o que Ele exerceu de diversas maneiras, tanto em forma de providência como de graça): “Todas as coisas foram feitas por ele” (v. 3). Ele estava no princípio, antes de tudo, assim como foi Ele quem criou todas as coisas. E para que não venham a supor que o “todas as coisas” que Ele é dito ter criado ou feito deveria ser limitado a algum tipo de coisas, o apóstolo acrescenta que “sem ele nada do que foi feito se fez”, o que confere uma universalidade absoluta quanto ao que é afirmado na primeira parte do versículo 3.
Ele, João, faz ainda outras descrições sobre isso: “Estava no mundo, e o mundo foi feito por ele” (v. 10). Geralmente o mundo criado é descrito na Escrituras como “os céus e a terra, e todas as coisas que neles há”, como é afirmado em Atos 4:24: “Senhor, tu és o Deus que fizeste o céu, e a terra, e o mar e tudo o que neles há”, ou seja, o mundo, cuja criação é expressamente atribuída ao Filho: “Tu, Senhor, no princípio fundaste a terra, e os céus são obra de tuas mãos” (Hebreus 1:10). E o apóstolo Paulo, para assegurar nosso entendimento com respeito a esse assunto, enfatiza que até mesmo as partes mais nobres da criação foram feitas por Ele: “Porque nele foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam potestades. Tudo foi criado por ele e para ele” (Colossenses 1:16). Os socinianos dizem, de fato, que o Senhor Jesus fez os anjos serem potestades e principados, isto é, Ele lhes deu sua ordem, mas não a sua existência. Mas isso é expressamente contrário às palavras do texto; é por coisas como essas que não sabemos bem o que dizer a essas pessoas, que, com prazer, rejeitam a autoridade de Deus em Sua Palavra: “Porque nele foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra”.
Que palavras poderiam ser usadas para comunicar uma revelação divina do poder eterno e da divindade do Filho de Deus de forma mais clara e simples para os filhos dos homens? Ou como a verdade de qualquer coisa que é muito evidente poderia ser representada em suas mentes? Se não entendermos a mente de Deus e a intenção do Espírito Santo nesse assunto, não podemos ter esperança de chegarmos ao conhecimento de qualquer outra coisa que Deus nos revele, e nem mesmo de qualquer outra coisa que seja expressa ou que esteja para ser expressa por meio de palavras. É dito diretamente que o Verbo (que é Cristo, como é reconhecido por todos) “estava com Deus”, era distinto dEle; e “era Deus”, era um com Ele; que Ele estava “no princípio”, antes da criação, que Ele “fez todas as coisas”, o mundo, tudo que há no céu e na terra; e se Ele não é Deus, quem é? A soma de tudo isso é: Todos meios pelos quais podemos conhecer Deus são: Seu nome, Seus atributos e Suas obras; mas todos esses são aqui atribuídos pelo Espírito Santo ao Filho, ao Verbo, e Ele, portanto, é Deus, ou não sabemos quem e o que Deus é.
[1] Os dois Socinos (Sozzini), Fausto e Lælius, descendiam de uma família honrada, e ambos nasceram em Siena, Itália. Lælius, o tio, nasceu em 1525, e seu sobrinho Fausto em 1539. O primeiro tornou-se viciado no cuidadoso estudo das Escrituras, abandonando a profissão legal, para o qual ele havia passado por algum treinamento, em prol daquilo que mais almejava, aprender as línguas grega, hebraica e árabe. É dito que ele foi um dos quarenta indivíduos que realizaram reuniões para conferências sobre temas religiosos, principalmente em Vicenza, e que procuraram estabelecer um credo mais puro, rejeitando certas doutrinas nas quais todos os teólogos da Reforma firmemente insistiam. Para esses “colégios” vicentinos, como os encontros foram denominados, os socinianos estão acostumados a traçar a origem de seus princípios particulares. O Dr. M’Crie, em sua “História da Reforma na Itália” (p. 154), atribui fortes razões para descartar este relato da origem do socinianismo como indigno de crédito. Lælius nunca se comprometeu durante sua vida a uma declaração direta de seus sentimentos, e estava em termos de relações e correspondência alinhado com os principais reformadores; insinuando, entretanto, seus escrúpulos e dúvidas a tal ponto, que sua solidez na fé foi questionada, e ele recebeu uma admoestação de Calvino. Ele deixou a Itália em 1547, viajou extensivamente e finalmente se estabeleceu em Zurique, onde morreu em 1562, deixando para trás alguns manuscritos, aos quais o Dr. Owen alude aqui, e dos quais seu sobrinho se valeu para sumarizar os erros comuns entre tio e sobrinho e formular um sistema teológico.
O sobrinho, Fausto, teve uma vida bastante conturbada. Maculado desde tenra idade com a heresia de seu tio, ele estava sob a necessidade de sair de Siena; e depois de ter mantido por doze anos alguns ofícios honoráveis na corte do Duque da Toscana, se dirigiu à Basileia e durante três anos dedicou-se ao estudo teológico. As dúvidas do tio elevaram-se à importância das convicções na mente do sobrinho. Em consequência das divisões entre os reformadores da Transilvânia, que haviam se tornado antitrinitaristas, ele foi mandado por Blandrata, um de seus líderes, para conversar com Francis David acerca de algumas opiniões que ele tinha a respeito da adoração devida a Cristo. O resultado foi que David foi lançado na prisão, onde morreu — Socino não usou nenhuma influência para impedir o príncipe da Transilvânia de tal cruel intolerância; um fato muitas vezes esquecido por alguns que se deleitam em repreender Calvino pela morte de Serveto. Ele visitou a Polônia em 1579; mas antes de sua visita, os antitrinitarianistas daquele país haviam, por resoluções de seus sínodos em 1563 e 1565, sido retirados da comunhão de outras igrejas, e publicado uma Bíblia e um Catecismo — comumente conhecido em Rakau, a cidade em que foi publicado pela primeira vez, como o “Catecismo Racoviano”. Fausto Socino não foi inicialmente bem recebido por seus irmãos poloneses; mas superou a aversão feles, que em certa época era tão forte que ele quase foi despedaçado por uma multidão. Socino adquiriu influência considerável entre eles; conseguiu resolver suas diferenças, e tornou-se tão popular, que seus correligionários adotaram o nome de socinianos, em preferência ao seu antigo nome de unitaristas. Ele morreu em 1604. Seus tratados foram reunidos em dois volumes de folio da “Bibliotheca Fratrum Polonorum”. Começando com visões errôneas de julgamento particular, ele inferiu, da competência da razão para determinar a credibilidade da doutrina; mas suas visões diferiam do racionalismo moderno, na medida em que ele aderia mais ao cristianismo histórico como base de seus princípios, e não era de forma alguma tão livre em impugnar a autenticidade das Escrituras, quando isso era contra seu sistema. Suas heresias assumiram uma forma mais positiva e definitiva do que é geralmente imaginado e afetaram as doutrinas da Trindade, da divindade de Cristo (na qual suas visões eram um pouco parecidas com o arianismo), da necessidade de uma expiação, da natureza do arrependimento, da eficácia da graça, dos sacramentos e da eternidade das punições futuras. — W.H.G.