O Mistério Da Piedade, por João Calvino

“E, sem dúvida alguma, grande é o mistério da piedade: Deus se manifestou em carne, foi justificado no Espírito, visto dos anjos, pregado aos gentios, crido no mundo, recebido acima na glória.” (1 Timóteo 3:16)

 

São Paulo exortou Timóteo a comportar-se em seu ofício; mostrando-lhe que honra Deus lhe tinha concedido, em que Ele o estabeleceu para governar a Sua casa. Mostrou-lhe também que o próprio ofício era honroso; porque a igreja sustenta a verdade de Deus neste mundo, e que não há nada mais precioso, ou que mais deve ser buscado do que conhecer a Deus, e adorá-lO e servi-lO, e ser irrepreensível em Sua verdade, para que possamos, assim, alcançar a salvação. Tudo isso é mantido seguro para nós: e assim, tão grande tesouro é entregue ao nosso cuidado, por meio da igreja; de acordo com as palavras de São Paulo. Esta verdade é mui digna de ser mais altamente estimada do que é.

 

Que coisa misteriosa é essa, e quão maravilhosa é a questão: que Deus manifestou-Se em carne, e tornou-Se homem! Será que isso até agora não ultrapassa o nosso entendimento, de forma que quando somos informados disso, ficamos assombrados? No entanto, não obstante, temos uma prova plena e suficiente, que Jesus Cristo sendo feito homem, e sujeito à morte, é também o Deus verdadeiro, que fez o mundo e vive para sempre. Disso, o Seu poder celestial nos dá testemunho. Mais uma vez, temos outras provas: a saber, Ele foi pregado aos gentios; que antes estavam banidos do reino de Deus, e esta fé teve o seu curso em todo o mundo, a qual naquele tempo estava limitada entre os judeus; e da mesma forma Cristo Jesus foi elevado às alturas, e entrou na glória, e está assentado à destra de Deus Pai.

 

Se os homens desprezam estas coisas, sua ingratidão será condenada, porque os próprios anjos por isso chegaram ao pleno conhecimento daquilo que antes eles não conheciam. Porque aprouve a Deus esconder deles os meios de nossa redenção, a fim de que a Sua bondade seja maravilhosíssima a todas as criaturas: assim, percebemos o sentido do que escreve São Paulo. Ele chama a igreja de Deus de o baluarte da Sua verdade; ele também demonstra que esta verdade é como um tesouro, devendo ser altamente estimada por nós. E por que isso? Observemos o conteúdo do Evangelho; Deus humilhou-Se, de tal maneira, que Ele tomou sobre Si nossa carne; para que nós nos tornássemos Seus irmãos. Quem é o Senhor da glória, para que Ele tanto humilhasse a Si mesmo como a juntar-se a nós, e tomar sobre Si a forma de servo, até mesmo a sofrer a maldição que era devida a nós? São Paulo compreendeu todas as coisas que Jesus Cristo recebeu em Sua pessoa; a saber, que Ele esteve sujeito a todas as nossas fraquezas, mas, sem pecado.

 

É verdade que não há nenhum defeito nEle, antes toda pureza e perfeição. Ainda assim é: Ele tornou-Se fraco como nós somos, para que Ele pudesse ter compaixão e ajudar a nossa fraqueza; como está estabelecido na epístola aos Hebreus (4:15). Aquele que não tinha pecado sofreu a punição a nós devida; e foi, por assim dizer, maldito de Deus o Pai, quando Ele Se ofereceu em sacrifício: de modo que através de Seus meios nós fôssemos bem-aventurados; e que Sua graça, antes oculta a nós, fosse derramada sobre nós. Quando consideramos essas coisas, não temos ocasião para estar maravilhados? Nós consideramos que Ser Deus é? Nós podemos, em nenhuma sabedoria alcançar a Sua majestade, que contém todas as coisas em Si; a qual mesmo os anjos adoram.

 

O que há em nós? Se lançarmos os nossos olhos sobre Deus, e, em seguida, adentramos em uma comparação, ai de mim! Chegaremos perto dessa altura que sobrepuja os céus? Não, antes podemos ter qualquer familiaridade com isso? Pois não há nada senão podridão em nós; nada, a não ser o pecado e a morte. Então deixem vir o Deus vivo, a fonte da vida, de glória eterna, e de poder infinito; e não apenas aproximar-se de nós, de nossas misérias, nossa desventura, nossa fragilidade, e este abismo sem fundo de toda iniquidade, que há nos homens; deixem que não somente a majestade de Deus se aproxime disso, mas que Ele Se una a isso, e faça-Se um com isso, na Pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo! O que é Jesus Cristo? Deus e Homem! Mas como Deus e Homem? Que diferença há entre Deus e o Homem? Sabemos que não há nada em nossa natureza, senão miséria e desventura; nada senão um abismo sem fundo de odor fétido e infecção; e ainda assim, na Pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo, nós vemos a glória de Deus que é adorada pelos anjos, e também a fraqueza do homem; e que Ele é Deus e Homem. Não é isto algo secreto e oculto, digno de ser estabelecido em palavras, e da mesma forma suficiente para arrebatar os nossos corações! Os próprios anjos nunca poderiam ter pensado sobre isso, como aqui é observado por São Paulo. Considerando isso, aprouve ao Espírito Santo expressar a bondade de Deus, e mostrar-nos que devemos estimar isso como tão preciosa joia, cuidemos de nossa parte para que não sejamos ingratos, e tenhamos as nossas mentes caladas, de tal maneira que não provaremos disso, se não pudermos completa e perfeitamente compreendê-lo.

 

É o suficiente para nós para termos algum pouco conhecimento sobre este assunto; cada um deve contentar-se com a luz que lhe é dada, considerando a fraqueza de nosso julgamento; e anelando pelo dia em que o que agora vemos em parte, será total e perfeitamente revelado a nós. Ainda assim, não obstante, nós devemos empregar nossas mentes e os estudos neste caminho. Por que São Paulo chama isso de um mistério de fé, que Jesus Cristo, que é Deus eterno, manifestou-Se em carne? É como se ele dissesse, quando somos unidos a Deus, e feitos um só corpo com o Senhor Jesus Cristo, devemos contemplar o fim para o qual fomos criados; a saber, que possamos conhecer que Deus está unido e feito um conosco na Pessoa de Seu Filho.

 

Assim, devemos concluir que nenhum homem pode ser um Cristão, a menos que ele conheça este segredo que é descrito por São Paulo. Devemos agora examinar, e questionar homens e mulheres se eles conhecem o que significam essas palavras, que Deus foi manifestado em carne, malmente um a cada dez poderia produzir tão boa resposta quanto a que seria esperada de uma criança. E, no entanto, não precisamos nos maravilhar com isso; pois vemos que negligência e desprezo há na maior parte da humanidade. Nós mostramos e ensinamos diariamente em nossos sermões, que Deus tomou sobre Si a nossa natureza; mas como os homens de fato nos ouvem? Quem há aqui que se aflija sobremaneira para ler a Escritura? Há pouquíssimos que observam essas coisas; cada homem está ocupado com seu próprio negócio.

 

Se há um dia da semana reservado para a instrução religiosa, quando eles passaram seis dias em seu próprio negócio, eles estão aptos para passar o dia que é separado para o culto, em jogo e passatempo; alguns vagueiam ao redor dos campos, outros vão para as tabernas para beber em grandes tragos; e há, sem dúvida, neste momento, muitos como os últimos mencionados aqui enquanto eles estão reunidos em nome de Deus. Portanto, quando vemos tantos evitando e fugindo dessa doutrina, podemos nos maravilhar que haja tal brutalidade, de modo que não conheçamos os rudimentos do Cristianismo? Estamos aptos a considerar como uma língua estranha, quando os homens nos dizem que Deus Se manifestou em carne.

 

Todavia esta sentença não pode ser retirada do registro de Deus. Nós não temos nenhuma fé, se não sabemos que o nosso Senhor Jesus Cristo está unido a nós, para que nos tornemos Seus membros. Parece que Deus nos compele a pensar sobre este mistério, vendo que somos tão sonolentos e apáticos. Vemos como o Diabo incitou aqueles antigos rixosos para que negassem a humanidade de Jesus Cristo e Sua Divindade, e, por vezes, misturaram a ambos; para que não percebêssemos as duas naturezas distintas nEle, ou então para nos levar a crer que Ele não é o Homem que cumpriu as promessas da Lei; e, consequentemente, descendeu da linhagem de Abraão e Davi.

 

É realmente o caso, que tais erros e heresias como havia na igreja de Cristo, no início, estão estabelecidas nestes dias? Observemos bem as palavras que são utilizadas aqui por São Paulo: Deus se manifestou em carne. Quando ele chama Jesus Cristo de Deus, ele admite esta natureza que Ele tinha antes que o mundo existisse. É verdade, há somente um Deus, mas nesta única essência devemos compreender o Pai, e uma sabedoria que não pode ser separada dEle, e uma virtude eterna, que sempre esteve, e sempre será dEle.

 

Assim, Jesus Cristo era verdadeiramente Deus! Como Ele era a sabedoria de Deus antes que o mundo fosse feito, e antes da eternidade. Diz-se que Ele se manifestou em carne. Pela palavra carne, São Paulo nos dá a entender que Ele era verdadeiro Homem, e tomou sobre Si a nossa natureza. Pela palavra manifesto, Ele mostra que nEle havia duas naturezas. Mas não devemos pensar que há um Jesus Cristo que seja Deus, e um outro Jesus Cristo, que seja Homem! Mas devemos somente compreendê-lO como Deus e Homem. Distingamos, então, as duas naturezas que há nEle, para que saibamos que o Filho de Deus é nosso Irmão. Deus suporta as antigas heresias, que em tempos passados conturbaram a igreja, para produzir mais uma vez um movimento, em nossos dias, para estimular-nos à diligência. O Diabo prossegue prestes a destruir este artigo de nossa crença, sabendo que esse é o principal suporte e esteio de nossa salvação.

 

Se não tivermos esse conhecimento que São Paulo fala, o que será de nós? Estamos todos no abismo da morte. Não há nada além de morte e condenação em nós, até que saibamos que Deus desceu para buscar-nos e salvar-nos. Até que sejamos assim ensinados, somos fracos e miseráveis. Portanto, o Diabo andou fazendo tudo que pôde para abolir este conhecimento, para estraga-lo e misturá-lo com mentiras, para que ele pudesse arruinar isso completamente. Quando nós vemos tal majestade em Deus, como ousamos presumir nos aproximar dEle, vendo que somos cheios de miséria! Devemos recorrer a esta conexão da majestade de Deus, e do estado de natureza do homem, juntamente.

 

Façamos o que pudermos, nós nunca teremos qualquer esperança, ou seremos capazes de lançar mão da generosidade e bondade de Deus, de forma a retornar a Ele, e invocá-lO, até que conheçamos a majestade de Deus que está em Jesus Cristo; e também a fraqueza da natureza humana, que Ele recebeu de nós. Estamos totalmente desprovidos do reino dos céus, o portão está fechado contra nós, de modo que não podemos entrar nele. O Diabo tem aplicado toda a sua astúcia para perverter esta doutrina; vendo que a nossa salvação está fundamentada nela. Devemos, portanto, estar tanto mais confirmados e fortalecidos na mesma; para que nunca sejamos abalados, mas permaneçamos firmes na fé, que está contida no evangelho.

 

Antes de tudo, temos esta observação, que nunca conheceremos que Jesus Cristo é nosso Salvador, até que saibamos que Ele era Deus desde a eternidade. Aquilo que foi escrito ao Seu respeito por meio de Jeremias, o profeta, necessita ser cumprido: “Mas o que se gloriar, glorie-se nisto: em me entender e me conhecer, que eu sou o Senhor” (Jeremias 9:24). São Paulo demonstra que isto deve ser aplicado à Pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo, e por isso ele protesta que não se propôs a saber qualquer doutrina ou conhecimento, apenas para conhecer a Jesus Cristo.

 

Novamente, como é possível que tenhamos a nossa vida nEle, a menos que Ele seja o nosso Deus, e nós sejamos mantidos e preservados pela Sua virtude? Como podemos colocar a nossa confiança nEle? Porque está escrito: “Assim diz o Senhor: Maldito o homem que confia no homem, e faz da carne o seu braço, e aparta o seu coração do Senhor!” (Jeremias 17:5). Mais uma vez, como podemos ser preservados da morte, exceto pelo poder infinito de Deus? Mesmo que a Escritura não desse nenhum testemunho da Divindade de Jesus Cristo, é impossível que nós O reconheçamos como nosso Salvador, a não ser que admitamos que Ele possui toda a majestade de Deus; a não ser que nós reconheçamos que Ele é o verdadeiro Deus; porque Ele é a sabedoria do Pai através do qual o mundo foi feito, preservado e mantido em sua existência. Portanto, estejamos completamente resolvidos neste momento, sempre que falamos de Jesus Cristo, para que elevemos nossos pensamentos ao alto, e adoraremos essa majestade que Ele tinha desde a eternidade, e esta essência infinita que Ele desfrutou antes que Ele Se vestisse em humanidade.

 

Cristo foi manifestado em carne, isto é, tornou-se homem; semelhante a nós em tudo, mas sem pecado (Hebreus 4:15). Onde ele diz, mas sem pecado, ele quer dizer que o nosso Senhor Jesus era sem culpa ou defeito. No entanto, não obstante, Ele não se recusou a carregar os nossos pecados: Ele tomou esse fardo sobre Si, para que nós, por Sua graça, fôssemos aliviados. Não podemos conhecer a Jesus Cristo como sendo um Mediador entre Deus e o homem, a não ser que O contemplemos como Homem. Quando São Paulo anelou encorajar-nos a clamar por Deus em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, ele expressamente Lhe chama de homem. São Paulo diz: “Há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem” (1 Timóteo 2:5). Sob esta consideração, podemos, em Seu nome, e por Suas mediações vir familiarmente a Deus, sabendo que somos Seus irmãos, e Ele é o Filho de Deus. Vendo que não há nada, senão pecado na humanidade, precisamos também encontrar justiça e vida em nossa carne. Portanto, se Cristo não Se tornou verdadeiramente o nosso Irmão, se Ele não foi feito homem semelhante a nós, em que condições estamos? Consideremos agora a Sua vida e paixão.

 

Diz-se (falando de Cristo), “Mas agora na consumação dos séculos uma vez se manifestou, para aniquilar o pecado pelo sacrifício de si mesmo” (Hebreus 9:26). E por que isso? São Paulo nos mostra a razão em Romanos 5:18: “Pois assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também por um só ato de justiça veio a graça sobre todos os homens para justificação de vida”. Se não conhecemos isso, que o pecado que foi cometido em nossa natureza, foi reparado em própria idêntica natureza, em que situação nós estamos? Sobre que fundamento nós mesmos podemos permanecer? Portanto, a morte de nosso Senhor Jesus Cristo não poderia beneficiar-nos minimamente, a menos que Ele fosse feito Homem, semelhante a nós.

 

Novamente, se Jesus Cristo fosse apenas Deus, poderíamos ter alguma certeza ou promessa em Sua ressurreição, de que devemos um dia ressuscitar novamente? É verdade que o Filho de Deus ressuscitou; quando ouvimos dizer, que o Filho de Deus tomou sobre Si um corpo semelhante ao nosso, veio da geração de Davi, que Ele ressuscitou (vendo que a nossa natureza é por si só corruptível), e é elevado nas alturas à glória, na Pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo “somos levados a assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus” (Efésios 2:6). Por isso, aqueles que procuraram reduzir a nada a natureza do Homem, na Pessoa do Filho de Deus, devem ser os mais abominados. Pois, o Diabo levantou-se nos tempos antigos alguns indivíduos que declararam que Jesus Cristo manifestou-Se em forma de homem, mas não tinha a verdadeira natureza de homem; esforçando-se, assim, para abolir a misericórdia de Deus para conosco, e destruir completamente a nossa fé.

 

Outros imaginaram que Ele trouxe um corpo com Ele do céu; como se Ele não participasse de nossa natureza. Declarou-se que Jesus Cristo tinha um corpo desde a eternidade; composto por quatro elementos; de forma que a Deidade estava, naquele tempo, em uma forma visível, e que sempre que os anjos apareceram, era o Seu corpo. Que insensatez é fazer tal alquimia, para formar um corpo para o Filho de Deus! O que devemos fazer com aquela passagem que diz: “Porque, na verdade, ele não tomou os anjos, mas tomou a descendência de Abraão. Por isso convinha que em tudo fosse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote naquilo que é de Deus, para expiar os pecados do povo” (Hebreus 2: 16-17).

 

Diz-se. Ele tomou sobre Si a nossa carne, e tornou-se nosso Irmão. Sim, e que Ele foi feito semelhante a nós, para que pudesse compadecer-Se de nós, e ajudar as nossas fraquezas. Ele foi feito a descendência de Davi, para que pudesse ser conhecido como o Redentor que foi prometido, a quem os pais esperaram em todas as épocas. Lembremo-nos do que está escrito: o Filho de Deus Se manifestou em carne; ou seja, Ele tornou-Se de fato Homem, e nos fez um com Ele; de modo que agora podemos chamar Deus de nosso Pai. E por que isso? Porque somos do corpo de Seu Filho Único. Mas, como somos de Seu corpo? Porque Ele Se agradou em juntar-Se a nós, para que fôssemos participantes de Sua substância.

 

Nisto vemos que não é uma vã especulação, quando os homens dizem-nos que Jesus Cristo revestiu-Se de nossa carne; para mais perto devemos chegar, se queremos ter um verdadeiro conhecimento da fé. É impossível que confiemos nEle corretamente, a menos que compreendamos Sua humanidade; devemos também conhecer a Sua majestade, antes que possamos confiar nEle para a salvação. Devemos saber, ainda, que Jesus Cristo é Deus e Homem, e semelhantemente que Ele é apenas uma Pessoa.

 

Aqui, novamente, o Diabo tenta atiçar as brasas da contenda, ao perverter ou dissimular a doutrina que São Paulo nos ensina. Pois tem havido hereges que têm se esforçado para sustentar que a majestade e Divindade de Jesus Cristo, a Sua essência celeste, foram imediatamente transformadas em carne e humanidade. Assim alguns dizem, com muitas outras blasfêmias malditas, que Jesus Cristo tornou-Se Homem. O que se seguirá neste ponto? Deus deve renunciar a Sua natureza, e Sua essência espiritual deve ser transformada em carne. Eles vão mais longe e dizem que Jesus Cristo já não é mais Homem, mas Sua carne tornou-se Deus.

 

Estes são maravilhosos alquimistas, para produzir tantas novas naturezas de Jesus Cristo. Assim, o Diabo levantou esses sonhadores em tempos passados, para perturbar a fé da Igreja; os quais são agora renovados em nosso tempo. Por isso, observemos bem o que São Paulo nos ensina nesta passagem; pois ele nos oferece uma boa armadura, para que possamos nos defender contra tais erros. Se quisermos contemplar a Jesus Cristo em Seu verdadeiro caráter, vejamos nEle essa glória celestial, que Ele tinha desde a eternidade, e em seguida, venhamos à Sua humanidade, que foi descrita até aqui; para que possamos distinguir as Suas duas naturezas. Isso é necessário para nutrir a nossa fé.

 

Se buscamos obter vida em Jesus Cristo, devemos entender que Ele tem toda a Divindade nEle; porque está escrito: “Porque em ti está o manancial da vida; na tua luz veremos a luz” (Salmos 36:9). Se quisermos estar guardados contra o Diabo, e resistir às tentações de nossos inimigos, devemos saber que Jesus Cristo é Deus. Para ser breve, se quisermos colocar toda a nossa confiança nEle, devemos saber que Ele possui todo o poder, o qual Ele não poderia ter, a menos que Ele fosse Deus. Quem é Aquele que tem todo o poder? É Aquele que Se tornou o frágil e fraco; Filho da virgem Maria; Aquele que esteve sujeito à morte; Aquele que levou os nossos pecados: Ele é este que é a fonte da vida.

 

Nós temos dois olhos na nossa cabeça, cada um desempenhando a sua função, mas quando olhamos firmemente sobre algo, a nossa visão, que é separada em si mesma, une-se, e torna-se uma; e é totalmente ocupada em contemplar o que está diante de nós, desta forma, existem duas diferentes naturezas em Jesus Cristo. Há algo no mundo mais diferente do que o corpo e alma do homem? Sua alma é um espírito invisível que não pode ser visto ou tocado; que não tem nenhuma dessas paixões carnais. O corpo é uma massa informe corruptível, sujeito à podridão; uma coisa visível que pode ser tocada: o corpo tem as suas propriedades, as quais são totalmente diferentes daquelas da alma. E, assim, questionamos: o que é o homem? Uma criatura, formada de corpo e alma. Se Deus usou de tal feitura em nós, quando Ele nos fez de duas naturezas diversas, por que deveríamos achar estranho, que Ele empreendeu um milagre muito maior em Jesus Cristo? São Paulo usa essas palavras: “se manifestou”, para que possamos distinguir Sua Divindade de Sua humanidade; para que possamos recebê-lO como Deus manifestado em carne; isto é, Aquele que é verdadeiramente Deus, e ainda assim fez-Se um conosco: portanto, somos os filhos de Deus; sendo Ele nossa justificação, somos libertos do fardo de nossos pecados. Considerando que Ele nos purificou de toda a nossa miséria, nós temos riquezas perfeitas nEle; em suma, considerando que Ele submeteu-Se à morte, estamos agora assegurados da vida.

 

São Paulo acrescenta: “Foi justificado no espírito”. A palavra “justificado” é muitas vezes utilizada na Escritura, como aprovado. Quando se diz, “Ele foi justificado”, não é que Ele tornou-se justo, não é que Ele foi absolvido pelos homens, como se fossem Seus juízes, e que Ele se obrigou a dar-lhes uma explicação; não, não; não existe tal coisa; mas isto é quando a glória é dada a Ele, a qual Ele merece, e nós O confessamos ser o que realmente Ele é. O que é dito é isso: o evangelho é justificado quando os homens o recebem, em obediência, e por meio da fé, submetendo-se à doutrina que Deus ensina; assim neste lugar, diz-se que Jesus Cristo foi justificado no espírito.

 

Não devemos nos contentar, olhando para a presença corporal de Jesus Cristo, que era visível, mas temos de olhar mais alto. São João diz que Deus Se fez carne; ou a Palavra de Deus, que é o mesmo. A Palavra de Deus, que era Deus antes da criação do mundo, Se fez carne; isto é, Se uniu à nossa natureza; de modo que o Filho da virgem Maria é Deus; sim, o Deus eterno! Seu infinito poder foi ali manifestado; que é um seguro testemunho de que Ele é verdadeiro Deus! São Paulo diz: Jesus Cristo, nosso Senhor nasceu da descendência de Davi; Ele também acrescenta: Ele foi declarado ser o Filho de Deus (Romanos 1).

 

Não é o suficiente para nós que O contemplemos com nossos olhos naturais; pois, neste caso, nós não subiremos mais alto do que o homem, mas quando vemos, que por meio de milagres e prodígios, Ele mostra a Si mesmo como sendo o Filho de Deus, isto é um selo e prova que, humilhando a Si mesmo, Ele não excluiu a Sua majestade celestial! Portanto, podemos ir a Ele como nosso Irmão, e ao mesmo tempo adorá-lO como o Deus eterno; por meio de quem fomos feitos, e por quem somos preservados.

 

Se não fosse por isso, não poderíamos ter nenhuma igreja; se não fosse isso, não poderíamos ter nenhuma religião; se não fosse isso, não teríamos nenhuma salvação. Seria melhor para nós que fôssemos animais irracionais, sem razão e compreensão, do que estivéssemos destituídos desse conhecimento: a saber, que Jesus veio e uniu a Sua Divindade à nossa natureza, que era tão desventurada e miserável. São Paulo declara que isso é um mistério; para que não possamos ir a ele com orgulho e arrogância, como muitos fazem, os quais desejam ser julgados sábios; isto tem produzido o aparecimento de muitas heresias. E, de fato, o orgulho sempre foi a mãe das heresias.

 

Quando ouvimos esta palavra: “mistério”, lembremo-nos de duas coisas: em primeiro lugar, que nós aprendamos a nos manter sob os nossos sentidos, e não nos gloriemos de possuirmos conhecimento e capacidade suficientes para compreender tão vasto assunto. Em segundo lugar, aprendamos a ir além de nós mesmos, e a reverenciar esta majestade que excede todo o nosso entendimento. Não devemos ser lentos nem sonolentos; mas considerar essa doutrina, e nos esforçarmos para que nos tornemos instruídos nela. Quando adquirirmos algum pouco conhecimento sobre ela, devemos nos esforçar para beneficiar-nos com isso, todos os dias de nossa vida.

 

Quando nós obtivermos esse conhecimento, de forma que o Filho de Deus esteja unido a nós, deveríamos lançar nossos olhos naquilo que é tão altamente estabelecido nEle; isto é, a virtude e o poder do Espírito Santo. Então, Jesus Cristo não apenas evidenciou-Se como homem, mas mostrou-Se de fato que Ele era o Deus Todo-Poderoso, visto que toda a plenitude da Divindade habitou nEle. Se uma vez conhecermos isso, bem podemos perceber que não é sem razão que São Paulo diz que todos os tesouros da sabedoria estão escondidos em nosso Senhor Jesus Cristo.

 

Quando uma vez lançarmos mão das promessas deste Mediador, e conheceremos a altura e profundidade, o comprimento e a largura, sim, e tudo que é necessário para nossa salvação, para que possamos firmar a nossa fé nEle, como sobre o único verdadeiro Deus; e também contemplá-lO como nosso Irmão; que não somente aproximou-Se de nós, mas uniu-Se e juntou-Se a nós de tal maneira, que Ele Se tornou de mesma substância. Se vivermos a isso, saibamos que chegamos à perfeição da sabedoria, que é falada por São Paulo em outro lugar; de modo que podemos nos alegrar plenamente na bondade de Deus; pois, aprouve a Ele nos iluminar com o brilho de Seu Evangelho e nos atrair para o Seu reino celestial.
 

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