Os Batistas Brasileiros – John Smith e Thomas Helwys, por Marcus Paixão

JOHN SMITH E THOMAS HELWYS

A história dos batistas está ligada a dos ingleses John Smith e Thomas Helwys. Muitos livros têm sido escritos sobre os batistas e suas origens e Smith e Helwys aparecem em quase todos eles como os precursores dos batistas. Seus dias podem ser contados a partir do período da rainha Elizabete até os dias do rei Tiago I. Os momentos mais importantes de suas vidas aconteceram no período deste último monarca.

Por esse tempo ouvia-se um grande lamento em toda a Inglaterra por parte dos clérigos da igreja anglicana. A igreja inglesa estava muito parecida com a igreja católica romana e isso causava mal estar em muitos religiosos. A reforma não havia sido completa. Muitos passaram a protestar contra o rei, exigindo dele uma purificação na igreja da Inglaterra de todos os resquícios católicos romanos que ainda estavam presentes. Apesar do grande lamento as reformas não chegavam. A insatisfação era tamanha que logo alguns grupos se levantaram. Alguns começaram um esforço para reformar a igreja sem, contudo, abandoná-la. Estes foram chamados de conformistas. Outros não suportavam mais viver em uma igreja que abraçava parte do catolicismo romano, e resolveram separar-se de uma vez por todas do anglicanismo. Estes foram chamados de não-conformistas ou separatistas.

A vida de Thomas Helwys é pouco conhecida, apesar de várias obras sobre ele já terem sido escritas na Inglaterra e nos EUA. Para muitos ele é visto como um grande vilão, radical religioso e inconsistente em sua teologia, enquanto que para outros ele é tido como uma das figuras mais importantes da história dos batistas e da liberdade de consciência. Ele nasceu por volta de 1570, em Broxtowe Hall, Nottinghamshire.[1] Por volta 1592 ou 1593 ele iniciou seus estudos na Gray’s Inn “a maior e mais adequada academia destinada a nobreza e pessoas de posição social elevada” (OLIVEIRA, Zaqueu. 1997. p. 33).  Helwys era membro de uma influente família inglesa. Ele nunca foi um teólogo, nunca estudou teologia em uma academia especializada. Seus estudos estavam focados em uma outra disciplina: o Direito. Ele se tornou posteriormente um advogado, mas isso não o impediu de continuar sendo um homem religioso.  Em 1595 ele se casou com Joan Ashmore e seu primeiro filho nasceu um ano depois.

A casa de Thomas Helwys servia também para o encontro de muitos puritanos e ali muitas questões eram debatidas. Não se pode negar o grande interesse de Helwys pela vida piedosa e obediente a Deus. Como anglicano, ele sempre fora um submisso membro da igreja, contudo, ele começava a despertar uma simpática admiração pelo movimento dos separatistas, identificando-se com aquele grupo. Suas concepções foram fortemente influenciadas através das inúmeras conversas que teve com seu grande amigo John Smith:

 

Helwys era simpático ao partido puritano, e Broxtowe Hall tornou-se um lugar de encontro de ministros deste grupo. Logo Helwys entrou em contato com alguns ministros, tais como Ricardo Bernard, vigário de Worksop, e João Smith, pregador da cidade de Lincoln de 1600 a 1603. Helwys tornou-se intimamente relacionado com Smith, que era provavelmente um ano mais velho do que ele” (OLIVEIRA, Zaqueu. 1997. p. 33).

Os puritanos que se reuniam com Helwys eram conformistas, permaneciam no seio da igreja anglicana com a esperança de reformá-la por completo. Esta mesma esperança estava a princípio no coração de John Smith. Somente em 1603, após a ascensão ao trono inglês do rei Tiago I, Smith resolveu abandonar o anglicanismo definitivamente. Suas esperanças de ver a igreja oficial reformada chegaram ao fim! Ele passou a ingressar o movimento dos separatistas, fundando posteriormente uma congregação independente em Gainsborough, em 1606. Thomas Helwys foi um dos que aderiram à igreja fundada por seu amigo Smith. Neste mesmo ano John Smith renunciou sua posição como sacerdote anglicano.

 

A FÉ DE SMITH E HELWYS

 

A razão pela qual os conformistas e separatistas estavam distantes da igreja anglicana constituía-se principalmente de um motivo: O Anglicanismo trazia muitas mazelas do catolicismo romano. Eles lutavam para que o anglicanismo retirasse todo tipo de catolicismo que ainda restava. Não havia divergências quanto à fé comumente abraçada pela reforma protestante. Na verdade, eles entendiam que a reformava iniciada por Lutero foi incompleta. Porém, tudo que foi proposto na reforma foi aceito, mas era preciso ir um pouco mais longe.

Em 1571, no ano do nascimento de John Smith e um ano após o nascimento de Helwys, a igreja anglicana apresenta sua fé baseada em trinta e nove artigos. Foi a partir deste credo que foram educados praticamente todos os ingleses daqueles dias. Os conformistas e os separatistas não questionavam a essência teológica do credo anglicano. O problema estava na Eclesiologia anglicana e no Livro de Oração Comum, que era a base litúrgica da igreja inglesa. As doutrinas teológicas concernentes ao Deus Trino, a Cristologia, a salvação do homem e sua queda no pecado, sobre todos estes importantes temas, não havia contrários, eles caminhavam juntos.

Vale apena observarmos e comentarmos alguns pontos doutrinários dos trinta e nove artigos da igreja anglicana[2] que eram recebidos por Thomas Helwys e John Smith:

 

ARTIGO I

DA FÉ NA SANTÍSSIMA TRINDADE

 Há um único Deus, vivo e verdadeiro, eterno, sem corpo, indivisível, não sujeito à paixões, de infinito poder, sabedoria e bondade; Criador e Sustentador de todas as coisas visíveis e invisíveis. E na unidade desta Divindade há três Pessoas, da mesma substância, poder e eternidade: o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

 

ARTIGO II

DO VERBO OU FILHO DE DEUS, QUE SE FEZ VERDADEIRO HOMEM
 

O Filho, que é o Verbo do Pai, gerado da eternidade do Pai, verdadeiro e sempiterno Deus, e consubstancial com o Pai, tomou a natureza humana no ventre da bendita Virgem e da sua substância; de sorte que as duas inteiras e perfeitas Naturezas, isto é, Divina e Humana, se uniram em uma Pessoa, para nunca mais se separarem, das quais resultou Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem; que verdadeiramente padeceu, foi crucificado, morto e sepultado, para reconciliar seu Pai conosco, e ser vítima, não só pela culpa original, mas também pelos atuais pecados dos homens.

 

ARTIGO X

DO LIVRE-ARBÍTRIO
 

A condição do Homem depois da queda de Adão é tal que ele não pode converter-se e preparar-se a si mesmo, por sua própria força natural e boas obras, para a fé e invocação a Deus. Portanto, não temos o poder de fazer boas obras agradáveis e aceitáveis a Deus, sem que a graça de Deus por Cristo nos preceda, para que tenhamos boa vontade, e coopere conosco enquanto temos essa boa vontade.

 

ARTIGO XVII

DA PREDESTINAÇÃO E ELEIÇÃO
 

A predestinação para a Vida é o eterno propósito de Deus, pelo qual (antes de lançados os fundamentos do mundo) tem constantemente decretado por seu conselho a nós oculto, livrar da maldição e condenação os que elegeu em Cristo dentre o gênero humano, e conduzi-los por Cristo à salvação eterna, como vasos feitos para honra. Por isso os que se acham dotados de um tão excelente benefício de Deus são chamados segundo o propósito de Deus, por seu Espírito, operando no tempo devido; pela Graça obedecem à vocação, são justificados gratuitamente; são feitos Filhos de Deus por adoção; são criados conforme à imagem de seu Unigênito Filho Jesus Cristo; vivem religiosamente em boas obras, e enfim chegam, pela misericórdia de Deus, à felicidade eterna.

Assim como a pia consideração da Predestinação, e da nossa Eleição em Cristo, é cheia de um doce, suave e inexplicável conforto para as pessoas devotas, e os que sentem em si mesmos a operação do Espírito de Cristo, mortificando as obras da carne, e seus membros terrenos, e elevando o seu pensamento às coisas altas e celestiais, não só porque muito estabelece e confirma a sua fé na salvação eterna que hão de gozar por meio de Cristo, mas porque de modo veemente acende o seu amor para com Deus; assim para as pessoas curiosas e carnais, destituídas do Espírito de Cristo, o ter de contínuo diante dos seus olhos a sentença da Predestinação de Deus é um precipício muitíssimo perigoso, por onde o Diabo as arrasta ao desespero, ou a que vivam na indignidade dos seres mais impuros, de maneira não menos perigosa que o desespero.

Além disso devemos receber as promessas de Deus do modo que nos são geralmente propostas nas Escrituras Sagradas e seguir em nossas obras a Vontade de Deus, que nos é expressamente declarada na sua Palavra.

 

ARTIGO XXVII

DO BATISMO
 

O Batismo não é um sinal de profissão, e marca de diferença, com que se distinguem os Cristãos dos que o não são, mas também um sinal de Regeneração ou Novo Nascimento, pelo qual, como por instrumento, os que recebem o Batismo devidamente são enxertados na Igreja; as promessas da remissão dos pecados, e da nossa adoção como Filhos de Deus pelo Espírito Santo, são visivelmente marcadas e seladas, a Fé é confirmada, e a Graça, aumentada por virtude da oração a Deus.

O Batismo das Crianças deve conservar-se de qualquer modo na Igreja como sumamente conforme à instituição de Cristo.

John Smith e Thomas Helwys defendiam as doutrinas comumente aceitas por todos os cristãos que apoiaram a reforma protestante. É claro que esta não foi a fé que eles defenderam até o fim de suas vidas. Smith e Helwys diferiram destas doutrinas e diferiram até mesmo entre si. Quanto à doutrina da Trindade, os dois irmãos eram unânimes em confessá-la. A Cristologia ortodoxa que John Smith defendia foi abandonada por uma Cristologia Hofmanita.[3] A doutrina do livre arbítrio nunca foi aceita por Thomas Helwys. Ele abominava a idéia do homem ter livre arbítrio e atribuía tal pensamento aos papistas. A Doutrina da eleição e predestinação foi negada mais tarde. Tanto Helwys quanto Smith abandonaram esta doutrina quando estavam na Holanda. O batismo infantil foi negado por Smith e por Helwys. Para eles o batismo de crianças era destituído de valor. A forma, contudo, continuou sendo o derramar água sobre a cabeça, a afusão.  A grande mudança teológica que os fez abandonar boa parte da fé afirmada nos trinta e nove artigos da igreja anglicana aconteceu na Holanda, quando eles se encontraram com Anabatistas que eram chamados Menonitas. Neste mesmo momento histórico, ganhava força na Holanda as idéias teológicas defendidas por Jacob Arminius. A teologia proposta por Arminius era contrária à teologia proposta pelos reformadores. Esta nova teologia parece ter exercido grande influencia tanto em Smith quanto em Helwys.

 

DA INGLATERRA PARA A HOLANDA

 

Em 1603, quando o rei Tiago I subiu no trono, ele intensificou as perseguições iniciadas por Elizabete a todos os grupos que se opunham ao anglicanismo oficial. Conformistas e separatistas sofreram neste período da história inglesa as mais terríveis perseguições. Muitas vezes a perseguição foi tão intensa que resultava na morte dos chamados “rebeldes”. A única opção que eles tinham era deixar o próprio país. Eles foram obrigados a fugir da Inglaterra. O destino foi a Holanda, pois nesta terra eles poderiam viver em liberdade religiosa, servindo a Deus como suas consciências lhes direcionava.  

John Smith convenceu seu amigo e companheiro de fé a embarcarem juntos para a Holanda. Helwys, como era o mais abastardo financeiramente, custeou a viagem. Eles já haviam agrupado um bom número de pessoas que aderiram às suas tendências separatistas. O grupo inteiro resolve embarcar para a Holanda. Era o começo de um novo desafio em suas vidas. Entre 1607 e 1608 o grupo liderado por Smith deixou a Inglaterra em direção a terra da tolerância: a Holanda. Segundo Zaqueu Moreira, “A cidade de Amsterdã tinha sido por muitos anos refúgio dos desvalidos e perseguidos” (OLIVEIRA, 1997, p. 35).

A data da fundação da igreja pode ser estabelecida. Zaqueu Moreira, citando Champlin Burrage, em sua obra The Early English Dissenters in the Light of Recent Research: 1550-1641 nos informa que a igreja liderada por Smith parece ter sido estabelecida em setembro de 1608 (OLIVEIRA, 1997, p. 36). Quando a igreja foi oficialmente estabelecida em solo holandês, as convicções do grupo liderado por Smith ainda não tinha sofrido grandes mudanças. Contudo, eles logo tiveram contato com outros grupos dissidentes.

John Smith não perdera o interesse pelo estudo das Sagradas Escrituras. Vale informar que ele, diferentemente de Thomas Helwys, foi graduado em teologia no Cristo’s College, da Universidade de Cambridge. Seus intensos estudos no Novo Testamento o levaram a rejeitar a sua concepção de batismo infantil, rejeitando-o completamente, prática que o grupo Menonita já adotava. O artigo 27 do credo anglicano expunha que o batismo de infantes deveria ser conservado na igreja. Suas convicções mudaram radicalmente após seus estudos do Novo Testamento e seu contato com Menonitas. Compreendeu que ele e toda a sua congregação tinham recebido um batismo “sem valor”, pois eles o receberam na ignorância. Smith acreditava agora que somente adultos regenerados poderiam ser submetidos ao batismo. Suas convicções logo foram passadas ao restante do grupo.

 

BATISMO: IMERSÃO OU AFUSÃO?

 

John Smith avançou muito em suas concepções quanto ao batismo, contudo, assim como a reforma fora incompleta, ele também descobriu apenas uma parte da verdade. Agora Smith entendia que nenhuma criança poderia ser levada ao batismo por não poder professar fé em Jesus Cristo e nem arrependimento. Isso invalidava o batismo de todos que haviam passado por essa ordenança na infância, inclusive o dele mesmo e de todos do seu grupo. Quanto à forma do batismo, John Smith permaneceu usando a afusão, isto é, o derramar água sobre a cabeça, como faziam os católicos romanos e os anglicanos. Esta não é a prática usada pelos batistas. Esse fato histórico ocorrido com John Smith tem causado transtorno nos mais apaixonados. Como muitos entendem que essa igreja estabelecida por John Smith foi a primeira igreja batista da história, e como sabe-se que uma das marcas dos batistas é o batismo por imersão somente, muitos historiadores batistas passam por esse ponto sem contudo mencionar esse fato importante ou sem dar-lhe um maior esclarecimento. Alguns são completamente ignorantes quanto ao assunto, e ainda existem aqueles que defendem que o batismo de Smith e do restante do seu grupo foi por imersão.

O inglês Joseph Ivimey autor de A History of English Baptists, de 1811, faz suas próprias interpretações do batismo de Smith como tendo sido a imersão. Suas conclusões quanto ao batismo por imersão não trazem nenhum tipo de nota bibliográfica. Ele conta que John Smith, “após uma nova consideração do assunto, ele viu razão para concluir que a imersão era o correto e verdadeiro significado da palavra batismo, e que deve ser administrado somente para aqueles que foram capazes de professar fé em Cristo”.[4]

Othon Ávila Amaral, pesquisador brasileiro da história batista, defendendo a imersão de Smith e seu grupo, disse: “Não existem registros precisos de como foi esse batismo o que abre espaço a especulações diversas, particularmente eu entendo que John Smith se batizou, literalmente, e depois batizou os demais membros do grupo, por causa do valor dessa simbologia (imergir – morrer para o mundo x emergir – nascer para Deus).” [5] Salovi Bernardo, pastor batista brasileiro, em um artigo para O Jornal Batista de 25 de setembro de 2005, sem restrições, afirmou que o grupo inteiro passou pelo batismo por imersão:

Em Amsterdã, o grupo de cerca de 40 pessoas, liderado por seu pastor, John Smith, convencido de que uma igreja fiel ao Novo Testamento teria que ser constituída de pessoas batizadas e que o batismo bíblico era por imersão e após a profissão de fé em Jesus Cristo como salvador. O resolveu dar o passo que muitos outros que já se haviam convencido de que o batismo era por imersão não deram. Como não havia ninguém batizado por imersão … Embora não tivesse o nome de batista, em 1609, na cidade de Amsterdã, foi organizada a primeira igreja com marcas características batistas: batismo por imersão, após profissão de fé em Jesus Cristo como salvador, como condição para a entrada na igreja e rejeição do batismo infantil. (Ano CV – 39, 25/09/05, p.2). [6]

Esse episódio só foi esclarecido quando Zaqueu Moreira de Oliveira, escrevendo para O Jornal Batista, clarificou os fatos, afirmando através de fontes documentais primárias que o batismo realizado foi ao modo do batismo praticado pelos Menonitas, ou seja, a afusão e não a imersão. O que se percebe é muito mais uma atitude apaixonada de torcer um fato para fortalecer um dado posicionamento histórico-teológico. Em outras palavras, desejosos de provar a origem dos batistas nesse episódio, muitos estudiosos batistas têm imaginado (distorcido) que o batismo por afusão realizado naquela ocasião foi, na realidade, um batismo por imersão. A história desmente tal posicionamento.

O respeitado e competente historiador batista J. Reis Pereira, narrando o episódio histórico do batismo de John Smith, nada diz sobre o batismo por afusão. Ele o faz desta maneira:

Assim, John Smith batizou-se a si mesmo e depois batizou os outros. Eram cerca de quarenta. Dessa maneira foi organizada em Amsterdam, em 1609, uma igreja batista em língua inglesa que é considerada a primeira igreja batista dos tempos modernos. Não que tivesse esse nome. Mas porque adotou uma prática que é caracteristicamente batista: o batismo após profissão de fé como condição para a entrada na igreja. (PEREIRA, J. Reis. 2001, p. 50).

Obviamente que Reis Pereira não quis se ater quanto ao batismo por afusão do grupo de Amsterdã. Ele silenciou propositadamente este fato, omitindo-o, e isto se pode perceber pela extensa bibliografia que ele usou na composição de sua extraordinária obra. Não mentiu em nenhum ponto de sua narrativa, mas omitiu parte muito importante do fato histórico, o que pode levar muitos leitores a tirarem falsas conclusões sobre o assunto.

H. C. Vedder, em sua A Short History of the Baptists acrescenta que se John Smith tivesse tido dúvida no passado quanto ao batismo infantil, “estava agora convicto que não é justificado pelas Escrituras, e que uma igreja escriturística deve consistir apenas de [crentes] regenerados que foram batizados em uma confissão de fé pessoal”. E continua: “Assim, após ter batizado a si próprio, batizou Helwys e o restante, e assim constituiu a igreja … Também é certo que o batismo de Smith e seus seguidores foi por afusão … ”[7]. Vedder observa que Smith e o seu grupo ainda emitiram várias confissões de fé. Nelas o batismo é retratado como sendo um sinal externo da remissão dos pecados, de morrer e ressuscitar, que deve ser administrado apenas a pessoas que tem fé e se arrependem dos seus pecados, “mas nada é pronunciado em nenhuma delas sobre a imersão como sendo a forma de batismo”.[8] É estranho o fato das confissões de fé desse novo grupo não trazerem nenhum tipo de esclarecimento sobre a forma de batismo, mas, por outro lado, afirmarem que o batismo deve ser administrado apenas a adultos regenerados. Obviamente que a única mudança quanto a teologia do batismo foi quanto aos candidatos, o que as suas confissões esclarecem perfeitamente, mas nenhuma mudança foi feita quanto a forma do batismo, daí as confissões da época não trazerem nenhum tipo de comentário.

O historiador americano A. C. Underwood em A History of the English baptist não tem dúvida que o batismo realizado por Smith foi a afusão. Underwood entende que Smith seguia exatamente o pensamento desenvolvido pelos Menonitas. Ele informa que “eles não foram batizados por imersão, mas por afusão. A água usada estava em uma vasilha. O oficiante tomava uma mão cheia de água da vasilha e derramava sobre a cabeça da pessoa que estava sendo batizada” (UNDERWOOD, A. C. 1947, p. 38).

Havia diversos grupos de Anabatistas na Holanda. Cada grupo tinha suas peculiares interpretações. Os Menonitas Waterlanders foram o grupo liderado por Menon Simon e eles batizavam apenas adultos regenerados. A forma do batismo era a afusão. Havia outro grupo de Menonitas denominado de Colegiantes. Estes últimos possivelmente usavam a imersão como o modo correto do batismo. Aqueles que advogam a favor de um batismo por imersão, sugerem que John Smith seguiu o modelo dos Collegiantes. É quase unânime a negação desta proposta. Não há registros de que Smith tenha tido contato com esse grupo de Menonitas. Por outro lado, existem inúmeros registros da época que mostram que John Smith juntou-se aos Menonitas Walterlanders, que batizavam por afusão. Sobre eles escreveu Justo Gonzalez: “O batismo, que Menno praticava jogando água sobre a cabeça, somente seria administrado aos adultos que confessassem a sua fé” (GONZALEZ, Justo. Até os Confins da Terra: Uma História ilustrada do Cristianismo. Vol 6. A Era dos Reformadores. São Paulo. Vida Nova, 1995, pp. 104,105). Exatamente como fez John Smith, em Amsterdã, na Holanda, em 1608 ou 1609.

Portanto, se entendermos que a origem dos batistas remonta a John Smith e Thomas Helwys, e que a igreja por eles instituída foi a primeira igreja batista da história, precisamos concluir que esta igreja, a princípio, não considerava a imersão como a forma correta de batismo.

 

A MUDANÇA TEOLOGIA DE JOHN SMITH E THOMAS HELWYS

Além da influencia dos Menonitas, John Smith e seu grupo chegaram na Holanda no momento em que uma grande controvérsia teológica estava acontecendo. Um renomado pastor e professor chamado Jacob Arminius, que havia iniciado seus estudos em Genebra, em 1582, e um pouco mais tarde, em 1588, fora ordenado para o sagrado ofício ministerial, propagava na Holanda uma nova teologia. Arminius “era um distinto pastor e professor holandês, cuja formação teológica havia sido profundamente calvinista” (GONZALEZ, Justo. Até os Confins da Terra: Uma História ilustrada do Cristianismo. Vol 8. A Era dos Dogmas e das Dúvidas. São Paulo. Vida Nova, 1995, pp. 114). Era fato, que ele admirava muito João Calvino, chegando a afirmar que seus escritos teológicos eram a mais pura essência bíblica. Na verdade, para Arminius, os textos de Calvino estavam abaixo apenas da Escritura inspirada.

Um teólogo chamado Dirck Koornhert ameaçava a fé ortodoxa, base da teologia cristã. Sua teologia ia de encontro com a teologia aceita na reforma protestante. Foi aí que o nome de Armínius foi lembrado pelos teólogos da igreja de Amsterdã para combater o novo ensino trazido por Koornhert. Gonzalez nos diz que:

Devido a essa fama e a seu prestígio, como estudioso da Bíblia e da teologia, os dirigentes da igreja de Amsterdam lhe pediram que refutasse as opiniões do teólogo Dirck Koornhert, que havia atacado algumas das doutrinas calvinistas, particularmente, no que se referia à predestinação (GONZALEZ, Ibid).

Mas o efeito foi inverso e Arminius passou a defender as idéias de Koornhert. Em 1603, ano em que John Smith abandonou definitivamente a igreja da Inglaterra, Jacob Arminius juntava-se ao corpo docente teológico em Leiden, Holanda.[9] Mas agora, um outro Armínius, não mais aquele que defendia como verdade o calvinismo, mas o defensor de uma teologia que veio a ser chamada “arminianismo”, oposta ao calvinismo.

Arminíus mudou sua forma de entender doutrinas como a eleição, a predestinação, a graça irressistível do Espírito Santo e a depravação completa do homem. As mudanças provocadas pela teologia arminiana atribuíam ao homem uma capacidade bem maior e uma participação decisiva na salvação. Quanto a Deus, sua soberania foi “diminuída”, a ação do Espírito Santo foi “enfraquecida” e seu poder de salvar o homem foi submetido à própria vontade humana. Quanto à extensão da obra de Cristo, os arminianos defendiam que Jesus Cristo morreu por todos os seres humanos, ou seja, o seu sangue foi derramado na cruz por cada pessoa da raça humana em todas as eras. As idéias arminianas feriam a doutrina calvinista quanto à salvação. É verdade que os pontos defendidos por Jacob Armínius foram expandidos, após a morte dele, pelos seus seguidores, que foram chamados de Remonstrantes. Armínius morreu em 1609. Mesmo com sua morte, seus pontos de vista continuaram a ser ensinados na Holanda.

John Smith e Thomas Helwys eram calvinistas até sua chegada a Holanda.[10] Quando se depararam com os Menonitas, suas concepções teológicas quanto ao batismo infantil foram abaladas e o grupo passou a batizar apenas crentes. Quando se depararam com a doutrina de Jacob Armínius, suas concepções teológicas quanto à doutrina da salvação, do pecado e do homem foram radicalmente mudadas. No mesmo ano da morte de Armínius (1609) deu-se o re-batismo do grupo.

 

O CISMA ENTRE SMITH E HELWYS

 

Foi nesse ponto da história que John Smith separou-se de Helwys e do restante do grupo. Os pontos de vista doutrinários do líder do grupo haviam mudado. Ele tentou convencer Thomas Helwys a acompanhá-lo mais uma vez em sua escalada doutrinária, mas não teve êxito. Segundo nos conta Zaqueu Moreira, a “atitude assumida por Smith e sua igreja resultou em nova controvérsia com outros líderes separatistas em Amsterdã. A principal acusação foi o re-batismo de Smith” (OLIVEIRA, 1997, p. 38). O batismo de Smith era considerado por outros separatistas como sendo inválido, pois o próprio Smith se rebatizara e não um outro ministro. Argumentavam usando a Bíblia, mostrando que Cristo não batizou a si mesmo, mas que o próprio Jesus foi batizado por outra pessoa, João Batista. Tudo isso perturbou John Smith, que terminou por entender que havia cometido um grave erro ao batizar-se. Assim como os Menonitas, ele agora compreendia que somente um ministro autorizado, que vinha de uma longa sucessão de ministros bíblicos poderia batizar uma pessoa. Ele não desconsiderou o batismo de crentes, mas o oficiante. Com isso ele entendia que o batismo por ele ministrado aos demais também havia sido impróprio. Neste ínterim, quando ele apresentava a Helwys e ao restante do grupo seus argumentos que o levara a mudança, ele uniu-se aos Menonitas Waterlanders. Helwys não aceitou a decisão do líder. Contestou várias doutrinas Anabatistas (mas não o batismo por afusão) e procurou expor seus erros à luz da Escritura.

A pequena igreja holandesa, que a pouquíssimo tempo havia sido estabelecida, dividiu-se em suas opiniões. A maior parte do grupo seguiu com John Smith, talvez por entenderem que ele, um ministro formando na Universidade de Cambridge e que havia sido ordenado ao ministério tivesse mais conhecimento sobre essas questões do que Thomas Helwys, que era apenas um leigo. 32 pessoas seguiram juntos com Smith para o grupo Menonita. Ficaram com Helwys cerca de 10 pessoas. A partir desse acontecimento, Thomas Helwys passa a ser visto como o líder do grupo. Um crescente rancor tomou conta do coração de Helwys contra Smith. Desde a ruptura, Helwys passou a escrever contra o ex-amigo, usando fortes expressões condenatórias contra ele, e rechaçando suas crenças. Praticamente todos os escritos de Helwys, desde o cisma, citam Smith direta ou indiretamente ou repudiam as suas crenças.

É importante notarmos que não foram somente as crenças de John Smith que mudaram. O próprio Thomas Helwys mudou a sua teologia drasticamente. A febre arminiana que corria velozmente as sendas holandesas chegara forte até o arraial de Smith e Helwys. Afirmações teológicas arminianas podem ser encontradas logo nos primeiros livros produzidos por Thomas Helwys em 1611. Ele produziu uma declaração de fé intitulada: Uma Declaração de Fé do Povo Inglês Permanecendo em Amsterdã na Holanda. Neste documento ele apresenta a fé professada por ele e sua igreja.

 

HELWYS NEGA O PECADO ORIGINAL

 

Em muitos pontos as crenças de Helwys são opostas à fé cristã histórica, ou seja, àquela fé concebida na reforma protestante e que foi aceita por quase todas as denominações cristãs. Nem mesmo os batistas defendem grande parte das doutrinas esposadas por Helwys. Dentre outros artigos de fé, ele negou o pecado original. Para ele, nenhuma criancinha nascia em pecado, pelo contrário, nascia livre em um estado de inocência completa. Ele produziu uma Confissão de Fé em 1610. No artigo vinte ele nega a existência do pecado original e afirma a inocência de toda criança: “Que as crianças são concebidas e nascem em inocência e sem pecado” (Confissão de Fé de Thomas Helwys – 1610, artigo 20).[11] Ele ainda afirma que cada criança que morre neste estado está seguramente salva.

Esta concepção errônea de Helwys afeta de forma central a teologia cristã. Negar o pecado original resulta na idéia de que as criancinhas não precisam do Salvador até o momento de virem a pecar. Helwys não aceitava a doutrina da imputação ou transmissão dos pecados a todos os homens. Para sustentar que as “crianças nascem na inocência e sem pecado”, Helwys invariavelmente precisaria negar o ensinamento do apóstolo Paulo em Romanos 3, Efésios 2 e uma série de outros textos.

 

HELWYS NEGA A SEGURANÇA DO CRENTE

 

Outro ponto sustentado por Thomas Helwys foi a idéia do “cair da graça”. Ele sustentava que o crente pode chegar a um estado de apostasia e consequentemente perder a salvação. Para ele foi exatamente isso que aconteceu com John Smith: “mas ele negou a verdade do Senhor, ele caiu da graça …” (OLIVEIRA, 1997, p. 40). A atitude de Helwys contra Smith se deve, em grande parte, pelo mal-estar causado na divisão da igreja. Certamente esta era a concepção teológica de Helwys, mas os recentes acontecimentos parece que o fizeram supervalorizar este ponto.

Helwys negava a perseverança dos santos, doutrina amplamente defendida pelos batistas. Entendia que embora alguém tenha professado a fé verdadeira em Jesus, e tenha sido lavado e remido de seus pecados, tornando-se uma nova criatura, tal pessoa não estava segura. Toda a obra de Cristo em favor do eleito não era um porto seguro para ele. Pensava que mesmo estando salvo, o homem pode cair desse estado e voltar a um estado de perdição e miséria. Sua crença o levava e entender que um homem salvo hoje, poderia estar no inferno amanhã. Na sua obra Uma Declaração de Fé do Povo Inglês Permanecendo em Amsterdã na Holanda de 1611, ele diz:

Que homens podem cair da graça de Deus, Hb 12.15, e da verdade que eles tinham recebido e conhecido. […] Portanto, nenhum homem deve pensar que porque ele tem ou em dado momento teve graça, ele sempre terá graça, mas […] se perseverar até o fim, será salvo.

O corpo de doutrinas de Thomas Helwys está muito distante daquela fé que os batistas sempre defenderam ao longo da história. No Brasil, o corpo doutrinário da Convenção Batista Brasileira (CBB) refuta a idéia do “cair da graça”, negando o ponto defendido por Helwys, mas adere a ideia do Livre Arbítrio.

 

HELWYS NEGA A PREDESTINAÇÃO

 

A predestinação, doutrina que ele estava familiarizado na Inglaterra, mas que na Holanda estava sendo fortemente combatida por Jacob Arminius, foi abandonada por Thomas Helwys. Com a controvérsia arminiana em andamento, muitos ministros começaram a ter suas concepções abaladas.

A doutrina da predestinação, como Helwys defendia antes, assegurava que Deus, antes da fundação do mundo, escolheu um número desconhecido (para nós) de pessoas e as predestinou para a salvação. Somente estas pessoas serão salvas. A doutrina da predestinação atribuía essa escolha divina tão somente ao seu Beneplácito ou Vontade Soberana, sendo que ele não escolheu e predestinou baseado em seu conhecimento dos acontecimentos futuros, nem baseado em boas obras, nem tão pouco porque sabia que alguns iriam crer livremente. Nenhum homem fez qualquer coisa para poder ser predestinado. Nenhum homem tem mérito algum na sua salvação. A predestinação atribui somente a Deus a salvação humana. O quinto artigo da confissão de fé escrita por Helwys e publicada em 1611 condena a doutrina da predestinação.

HELWYS E OS BATISTAS DO BRASIL

 

Se Thomas Helwys é o fundador dos batistas, ou da primeira igreja batistas moderna, como dizem, é necessário reconhecer que a igreja batista defendia uma forma doutrinária bem diferente em sua origem. Algo é certo: mesmo os batistas brasileiros ligados à Convenção Batista Brasileira que defendem a originalidade de Helwys como pai fundador, precisam admitir que o grupo que se desenvolveu a partir dele (os batistas gerais) seguiu um caminho herético trágico, negando, inclusive, a doutrina da trindade e abraçando a fé no unitarismo. As doutrinas de Helwys, ou boa parte delas, não são confessadas pelos batistas da CBB (negação do pecado original, negação da perseverança dos santos, afirmação do batismo por afusão, etc.). A história aponta que o pais dos batistas brasileiros são de origem calvinista, fato que pode ser facilmente comprovado pelo estudo das primeiras confissões de fé adotadas no Brasil, pelo estudo das primeiras edições de O Jornal Batista. Fora isso, os próprios missionários (os primeiros) que aqui estiveram foram enviados por missões de fé calvinista. Sendo assim, helwys e os batistas brasileiros, fora o fato de rebatizarem e de batizarem apenas adultos crentes, não tem muita coisa em comum.

___________________________

BIBLIOGRAFIA:

 

OLIVEIRA, Zaqueu Moreira de. Liberdade e Exclusivismo: Ensaio Sobre os Batistas Ingleses. Rio de Janeiro: Horizontal, Recife: STBNB Edições, 1997.

 

VEDDER, Henry. C. A Short History of the Baptists publicada em 1907. Disponível em inglês em: www.reformedreader.org

 

PEREIRA, J. Reis. História dos Batistas no Brasil: 1882-2001. Rio de Janeiro: JUERP, 2001

 

SANTOS, Gilson. Os Primeiros Batistas Gerais Ingleses Praticaram o Batismo por Imersão? Artigo disponível em: www.gilsonsantos.com.br

 

Sem autor. Artigos da Religião: 39 artigos da igreja da Inglaterra. Disponível em: www.teuministerio.com.br

 

UNDERWOOD, A. C. A History of the English Baptist. The Baptist Union Publication Dept. London, 1947.

 

IVIMEY, Joseph. A History of English Baptists. publicada em 1811. Disponível em inglês em: www.reformedreader.org

 

GONZALEZ, Justo L. Até os Confins da Terra: Uma História ilustrada do Cristianismo. Vol 6. A Era dos Reformadores. São Paulo. Vida Nova, 2005.

 

_____________ Até os Confins da Terra: Uma História ilustrada do Cristianismo. Vol 8. A Era dos Dogmas e das Dúvidas. São Paulo. Vida Nova, 2005.

 

SPROUL, R. C, Sola Gratia: A Controvérsia Sobre o livre-Arbítrio na História. Cultura Cristã. São Paulo, 2001.

 

 

[1] Segundo nos apresenta Zaqueu Moreira de Oliveira em seu livro Liberdade e Exclusivismo: Ensaio Sobre os Batistas Ingleses, publicado pela Horizontal editora e STBNB edições.

[3] A Cristologia Hofmanita…

[4] Tradução do autor. Da obra de Joseph Ivimey autor de The History of English Baptist. publicada em 1811. Disponível em inglês em: www.reformedreader.org

[5] Do artigo escrito pelo pastor Gilson Santos: Os Primeiros Batistas Gerais Ingleses Praticaram o Batismo por Imersão?

[6] Ibid.

[7] Tradução e grifo do autor. Da obra de Henry. C. Vedder A Short History of the Baptists publicada em 1907. disponível em inglês em: www.reformedreader.org

[8] Ibid

[9] Em um quadro, Sproul apresenta algumas datas importantes da vida de Jacob Arminius. SPROUL, R. C, Sola Gratia: A Controvérsia Sobre o livre-Arbítrio na História. p. 139.

[10] Eles defendiam os trinta e nove artigos da igreja Anglicana. Esses artigos seguiam as linhas gerais do pensamento calvinista. O motivo da separação do grupo liderado por John Smith da igreja da Inglaterra deu-se não por discordarem da doutrina calvinista, mas por não aceitarem a estatização da igreja e sua forma de governo. O problema era eclesiológico e não puramente teológico.

[11] Confissão de Fé de Thomas Helwys – 1610, Artigo 20. Tradução do autor).

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