Parágrafo 2[1]
Sob o nome de Sagradas Escrituras, ou Palavra de Deus escrita, incluem-se agora todos os Livros do Antigo e do Novo Testamento, que são estes:
DO ANTIGO TESTAMENTO: Gênesis; Êxodo; Levítico; Números; Deuteronômio; Josué; Juízes; Rute; 1Samuel, 2Samuel; 1Reis, 2Reis; 1Crônicas, 2Crônicas; Esdras; Neemias; Ester; Jó; Salmos; Provérbios; Eclesiastes; Cantares de Salomão; Isaías; Jeremias, Lamentações; Ezequiel; Daniel; Oséias; Joel; Amós; Obadias; Jonas; Miquéias; Naum; Habacuque; Sofonias; Ageu; Zacarias; Malaquias.
DO NOVO TESTAMENTO: Os Evangelhos segundo Mateus, Marcos, Lucas e João; Atos dos Apóstolos; as Epístolas de Paulo aos Romanos, 1Coríntios, 2Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, 1Tessalonicenses, 2Tessalonicenses, 1Timóteo, 2Timóteo, Tito, Filemom; a Epístola aos Hebreus; a Epístola de Tiago; a Primeira e Segunda Epístolas de Pedro; a Primeira, Segunda e Terceira Epístolas de João; a Epístola de Judas; Apocalipse.
Todos os quais são dados por inspiração de Deus, para ser a regra de fé e vida.
O segundo parágrafo do primeiro capítulo da Confissão Batista apresenta a lista dos livros que compõe a Bíblia. O parágrafo é idêntico ao da Confissão de Fé de Westminster. Embora citar integralmente essa lista de livros possa parecer algo desnecessário em nosso tempo, era imprescindível no século XVII. Como veremos logo em seguida, a Igreja Católica Romana defendeu um cânon mais extenso, que acomodava mais livros que o cânon Protestante. Por isso, esse parágrafo apresenta a nomeação de cada livro que os batistas, e o protestantismo Reformado em geral, reconheceram como parte da Escritura Sagrada.
A Confissão diz que “Sob o nome de Sagradas Escrituras, ou Palavra de Deus escrita” estão todos os livros que são reconhecidamente inspirados. Sagradas Escrituras é um termo que a própria Escritura utiliza para os textos inspirados, mas geralmente apenas “Escritura” é citado. O termo “sagrada” referente à Escritura é uma derivação da palavra santo. Em inglês, “Holy Bible” (Bíblia Sagrada) ou “Holy Scriptures” (Sagradas Escrituras), ou mesmo “Santa Bíblia, Santa Escritura”. Isso indica a Bíblia como um livro santo ou simplesmente “separado” de qualquer outro livro ou escrito. Esse ponto é importante, porque mostra que os primeiros batistas não consideravam a Bíblia apenas como um livro da antiguidade ou o compêndio de histórias e tradições de um povo antigo. Também significa que a Bíblia era incomparável em relação a qualquer outro escrito religioso. Os batistas consideravam que somente a Escritura, com sua revelação redentiva, era sagrada.
Outra nomeação que a Confissão apresenta para a Bíblia é “Palavra de Deus escrita”. Esse título também deriva da própria Bíblia, especialmente quando Jesus se refere a Deus Pai: “guardaram a tua palavra” (João 17:6), e “porque lhes dei as palavras que tu me deste” (João 17:8); ou em textos em que Deus chama “minha palavra” a sua revelação. Em Êxodo 24:4 somos informados de que “Moisés escreveu todas as palavras do Senhor”, tornando, assim, a Palavra de Deus, escrita. Isaías também registrou a Palavra de Deus, escrevendo num livro as coisas que ouviu: “Vai, pois, agora, escreve isto numa tábua perante eles e registra-o num livro” (Isaías 30:8). Na tentação, a Palavra de Deus escrita é três vezes anunciada por Jesus: “está escrito” (Mateus 4:4); “também está escrito” (4:7) e “porque está Escrito” (4:10).
Ainda que por inferência, os dois termos citados na Confissão estão bem colocados, pois mesmo na palavra profética, quando se ler: “assim diz o Senhor” ou “a boca do Senhor o disse”, fica demonstrado que o profeta é apenas um instrumento na transmissão da Palavra que o próprio Deus disse. Assim, todas essas referências evidenciam que se trata de uma alusão à revelação de Deus ou Palavra de Deus.
Os batistas não tinham a intenção de afirmar que a Escritura era conhecida somente sob esses dois títulos: “Escritura Sagrada e Palavra de Deus”, pois há inúmeros outros nomes que a própria Escritura toma para si. Mas esses dois títulos escolhidos pela Confissão são, sem dúvida, bem representativos.
A construção dessa sentença é interessante. A Confissão afirma que sob o nome de Sagradas Escrituras ou Palavra de Deus escrita “incluem-se agora todos os Livros do Antigo e do Novo Testamento”. A construção “incluem-se agora” parece indicar mais uma vez o fechamento do cânon. Especialmente o emprego da palavra “agora”, seguida de “todos os Livros”, aponta na direção de um cânon fechado em que nada mais pode ser acrescentado ou retirado. O parágrafo seguinte vai ser um manifesto de repúdio contra as alterações católico romanas, que acrescentaram livros apócrifos à Escritura.
Os Reformadores e os Apócrifos
Note que o Cânon por muitos séculos esteve aberto[2] e as Sagradas Escrituras estavam sendo progressivamente escrita, isso à medida que a revelação redentiva era comunicada aos escritores sagrados. Naquele período a Escritura estava “aberta” e mais e mais revelação estava sendo acrescentada a ela, pela própria vontade de Deus. Porém, os batistas entendem que o cânon está “agora” fechado e que todo o conteúdo divinamente revelado está incluído nos livros do Antigo e do Novo Testamento. Como o período era de intensos debates sobre o conteúdo do cânon, e os católicos romanos apresentavam outra alternativa, acrescentando livros ao cânon, era crucial que a Confissão apresentasse uma lista completa dos livros que formavam as Sagradas Escrituras.
A lista apresentada na Confissão consta dos 39 livros do Antigo Testamento seguidos pelos 27 livros do Novo Testamento, totalizando os 66 livros bíblicos reconhecidos pela Igreja Antiga, pelo Protestantismo Reformado e pela totalidade das igrejas evangélicas e protestantes da atualidade.
Neste segundo parágrafo, os batistas afirmam quais livros têm autoridade sobre a igreja, e aqui mais uma vez fica patente o contexto de disputa com a Igreja Católica Romana, visto que os livros apócrifos da lista católico romana foram acrescentados por ela, o que implica dizer que a Igreja de Roma tem autoridade e é a formadora do cânon. Para os batistas, não é a Igreja que forma e tem autoridade sobre o cânon, mas o cânon ou as Sagradas Escrituras é que detém autoridade sobre a Igreja. A Igreja deve submeter-se obedientemente à Palavra de Deus.
A última parte deste parágrafo conclui com a seguinte declaração sobre os 66 livros listados: “Todos os quais são dados por inspiração de Deus, para ser a regra de fé e vida”. Eis o motivo pelo qual a Confissão atribui total autoridade à Escritura: a inspiração divina. A Escritura foi soprada por Deus (2 Timóteo 3:16), por isso a afirmação da inspiração de todos os livros. Note que em 2 Timóteo 3:16 o que é tido como inspirado é o texto sagrado: “toda a Escritura é inspirada por Deus”. Os autores humanos foram escolhidos por Deus para essa tarefa, “falaram inspirados” (2 Pedro 1:21) pelo Espírito Santo para escrever o texto inspirado (soprado). Em suma, os autores não são inspirados, somente o produto que eles receberam de Deus, a revelação redentiva ou Sagrada Escritura, é inspirada.
Embora na teologia sistemática a inspiração seja uma obra realizada pelo Espírito Santo, a Confissão não erra em conferir a inspiração a Deus: “inspiração de Deus”. Primeiro porque o Espírito é inequivocamente uma pessoa da Divindade. Ele é Deus. Segundo, considerando Deus Pai, é dEle que o Espírito procede, sendo enviado por Ele com a missão designada conforme o Seu plano eterno.
A Confissão de Fé Batista de 1689 está alicerçada sobre as Sagradas Escrituras como um compêndio de afirmações teológicas verdadeiras, por isso, é fundamental declarar que toda a confiança posta na Escritura reside no fato de sua inspiração divina, que a torna, dentre outras coisas, inerrante ou livre de qualquer tipo de erro. O significado de inspiração para a Confissão tem lugar elevado e reflete a ortodoxia cristã milenar. Para os batistas, a Escritura não “se torna” a Palavra de Deus, como afirma a neo-ortodoxia encabeçada por Kierkegaard. Da mesma forma, para os batistas de 1689, a Escritura não apenas “contém” a Palavra de Deus, como declarou o liberalismo teológico algum tempo depois, alegando que algumas partes da Bíblia realmente contém a Palavra de Deus e são divinas, mas outras partes são meramente humanas e possuem erros.
A Confissão Batista declara enfaticamente, e com uma variedade de afirmações, que as Sagradas Escrituras “é” a Palavra de Deus. Ela não simplesmente “contém” ou “torna-se” a Palavra de Deus. Ela é a Palavra de Deus. Embora esse desenvolvimento no conceito da inspiração seja posterior à escrita da Confissão, os batistas já afirmavam essa qualidade da Escritura, repudiando os erros da teologia liberal e da neo-ortodoxia antecipadamente. A Confissão afirma que Deus inspirou toda a Escritura, o que abrange todo o seu conteúdo e não somente algumas partes. Assim, o conceito de uma inspiração verbal (o texto) e plenária (a totalidade do texto) se firma na Confissão de 1689.
Alguns teólogos presbiterianos[3] chegaram a questionar a doutrina da inerência da Escritura, especialmente alegando que a “inerrância não se encontra nos padrões de Westminster”.[4] Note que eles não rejeitavam a Confissão de Fé de Westminster, mas consideravam que labutava em erro quem procurava a doutrina da inspiração e da inerrância naquele documento. Como o texto da Confissão de Fé Batista de 1689 é idêntico ao da Confissão de Fé de Westminster, vale apena fazer uma observação nesse ponto.
Como o termo “inerrância” não se encontra na Confissão, surge o questionamento de que essa doutrina não foi ensinada, e, dessa forma, alguém poderia pensar que a Bíblia pode realmente conter alguns erros, como dizem os liberais. Mas observe essa explicação:
É fácil ver a razão pela qual a palavra ‘inerrante’ não é usada. Há 350 anos, os problemas críticos modernos e o ‘conflito’ entre ciência e Bíblia, ou as sérias questões sobre a exatidão histórica ainda não tinham surgido. A Confissão fala da verdade ‘infalível’ da Palavra de Deus e isso deveria ser suficiente. ‘Inerrante’ significa ‘sem erro’; ‘infalível’ significa ‘incapaz de erro’. Essa é realmente uma palavra mais forte… Assim, os padrões de Westminster realmente ensinam a inerrância bíblica, embora não usem a terminologia moderna que foi desenvolvida para enfrentar o novo ataque (HARRIS, p. 60).
Quando o termo “infalível” surge na Confissão de 1689, ela realmente está afirmando, assim como Westminster, a inerrância das Sagradas Escrituras. A Confissão assegura a infalibilidade da Bíblia em decorrência da inspiração divina. Waldron observou que não existe nenhuma crítica na Escritura a ela mesma, e que não há em nenhum lugar da Bíblia uma declaração de que há algum erro em qualquer de suas partes.[5]
A consequência da inspiração é óbvia: se o texto bíblico é divinamente inspirado, então ele deve ser aceito como “a regra de fé e vida”. Isso significa que toda a Escritura deve ser crida pela Igreja. Tudo que foi revelado deve ser crido e não negado. As Sagradas Escrituras também são uma regra para a conduta. É a “regra de fé e vida”, como foi frequentemente confessado no passado por todos os batistas.
Parágrafo 3
Os livros comumente chamados Apócrifos, não sendo de inspiração divina, não fazem parte do cânon ou regra da Escritura; e, portanto, não são de autoridade para a Igreja de Deus, nem de modo algum podem ser aprovados ou empregados, senão como escritos humanos.
Neste parágrafo o alvo da Confissão é defender o cânon sagrado e a inspiração. O texto é deliberadamente contra os acréscimos promovidos pela Igreja Católica Romana, que adicionou alguns escritos ao conjunto de livros reconhecidamente canônicos e de inspiração divina. Os livros acrescentados são “comumente chamados Apócrifos”, e haviam sido adotados pela Igreja Romana há mais de um século, no Concílio de Trento.
A palavra grega “apócrifo” é aplicada aos livros que, por não serem inspirados, não fazem parte do cânon sagrado:
“Significava [no grego clássico] ‘oculto’ ou ‘difícil de entender’. Posteriormente, tomou o sentido de esotérico, ou algo que só os iniciados podem entender, não os de fora. Pela época de Irineu e de Jerônimo (séculos III e IV), o termo apocrypha veio a ser aplicado aos livros não canônicos do Antigo Testamento […] Desde a era da Reforma, essa palavra tem sido usada para denotar os escritos judaicos não canônicos originários do período intertestamentário” (GEISLER; NIX, p. 91).
A controvérsia relacionada ao conteúdo do cânon, sobre quais livros eram inspirados, teve seu apogeu na Reforma, quando Lutero atacou o ensino das indulgências proposto pelo catolicismo romano. Lutero rejeitou todas as argumentações e alegou que somente a Escritura tinha a autoridade para dar um veredicto final sobre a prática das indulgências, e não a Igreja ou o Papa. A Escritura tinha a primazia, e não havia nenhum livro canônico que argumentasse em favor da inovação Romanista. Desde então, questionou-se quais livros eram realmente parte do cânon, isto é, quais livros eram realmente inspirados. Como parte da defesa das indulgências estava alicerçada sob os livros apócrifos, a Igreja Católica Romana os reconheceu como inspirados no Concílio de Trento (1545), e declarou anátema a todos que os rejeitavam.[6]
Conforme a decisão tomada no concílio católico romano de Trento, “se alguém não receber tais livros como sagrados e canônicos, em todas as suas partes, da forma em que têm sido usados e lidos na Igreja Católica […] seja anátema” (GEISLER; NIX, p. 93).
Os livros apócrifos são os seguintes: Sabedoria de Salomão, Eclesiástico, Tobias, Judite, 1 Esdras, 2 Esdras, 1 Macabeus, 2 Macabeus, Baruque, Epístola de Jeremias, Adições em Ester, Oração de Azarias, Susana, Bel e o Dragão, Oração de Manassés. Os apócrifos somam um total de 15 livros, e são todos classificados pelos papistas como pertencentes ao Antigo Testamento. A Confissão Batista, contudo, nega a inspiração, a canonicidade e a autoridade de tais livros, bem como desaprova o seu uso.
A Confissão de 1689 faz quatro afirmações negativas a respeito dos livros apócrifos. As declarações são progressivas, de modo que o argumento subsequente é um desenvolvimento lógico do anterior.
Primeiro, “não sendo de inspiração divina”. O fato que leva os batistas a não reconhecerem os apócrifos é a sua não inspiração. Não são Escritura Sagrada. Eles contêm erros e em muitos pontos contradizem os textos inspirados. No livro de Macabeus surge a oração pelos mortos, que se constituiu a base da defesa da Igreja de Roma dessa prática. Mas a Escritura não ordena tal coisa, antes a proíbe. Como a inspiração é livre de erro e da contradição de suas partes, os batistas rejeitam tais livros.
Segundo, “não fazem parte do cânon ou regra da Escritura”. A afirmação é dupla: teológica e histórica. Os apócrifos não fazem parte do cânon pelo fato de não serem inspirados, conforme apresentado acima. O cânon só pode ser compreendido por aqueles livros que foram soprados por Deus. Ao afirmar que não fazem parte da regra das Escrituras, a Confissão se baseia em registros históricos, desde os pais da Igreja, até o cânon judaico, que não reconhecia nenhum dos livros apócrifos. No cânon judaico constam exatamente os mesmos livros que o protestantismo reconhece como canônicos.
Terceiro, “não são de autoridade para a Igreja de Deus”. A Confissão já declarou que a Escritura foi dada à igreja porque o seu conteúdo é a revelação redentiva, sendo ela “a única, suficiente, correta e infalível regra de todo conhecimento, fé e obediência salvíficos”. Os livros apócrifos não têm essas qualificações. Não são regra para a igreja, antes, eles são insuficientes em si mesmos, estão coalhados de equívocos teológicos, históricos e geográficos, são falíveis por não serem inspirados, são nulos de autoridade para a igreja.
Quarto, “De modo algum podem ser aprovados ou empregados”. A Confissão não reconhece os apócrifos, portanto, não os aprova como Escritura, como fez a Igreja De Roma. Os Batistas desaprovaram todos os escritos apócrifos, pseudepígrafos e deuterocanônicos, e com essa ênfase em desaprová-los. Os batistas seguem exatamente o caminho contrário da Igreja Romana. Essa é uma declaração clara de rompimento e desacordo com a igreja papal. A proibição quanto ao uso está na esfera de “revelação”. Não podem ser usados, empregados, como se fossem inspirados e parte da revelação redentiva. Os apócrifos não passam de escritos puramente humanos, e, por não serem inspirados por Deus, não têm nenhum valor espiritual ou salvífico para a igreja.
A única concessão que a Confissão faz aos apócrifos é igualá-los a quaisquer outros “escritos humanos”. Como texto meramente humano, há alguma utilidade neles, assim como há utilidade nos livros de historiadores, poetas, cronistas e até nos livros ficcionais. Nessa perspectiva, escritos não inspirados têm alguma utilidade, e são até citados na Escritura, como o livro de Enoque, que é citado no livro canônico de Judas (vv. 14-15). Além do livro de Enoque, Paulo cita alguns poetas gregos, dos quais foram identificados os pagãos Epimênides, Cleanto, Arasto (Atos 17:18-28); Menandro (1 Coríntios 15:33). Os apóstolos e o Senhor Jesus Cristo reconheceram os trinta e nove livros do Antigo Testamento como inspirados e canônicos, fazendo citações do Antigo Testamento no Novo Testamento, mas nenhum dos apócrifos jamais é citado como Escritura inspirada.
Especialmente sobre a utilidade dos apócrifos do Novo Testamento, Geisler e Nix destacam três delas:
“Há diversas razões por que são importantes, e faziam parte das bibliotecas devocionais e homiléticas das igrejas primitivas: 1) revelam os ensinos da igreja do século II, 2) fornecem documentação da aceitação dos 27 livros canônicos do Novo Testamento e 3) fornecem outras informações históricas a respeito da igreja primitiva, no que concerne à sua doutrina e liturgia” (GEISLES; NIX, p. 119).
Reformadores como Lutero e Zuínglio chegaram a publicar em suas Bíblias os apócrifos, mas sempre sob a ressalva de que eram meros escritos humanos, não podendo ser equiparados aos textos inspirados.
“Lutero demonstrou sua aceitação da distinção feita por Jerônimo entre as duas categorias de livros do Antigo Testamento ao reunir os Apócrifos em sua Bíblia alemã como uma espécie de apêndice ao Antigo Testamento, ao invés de deixá-los na posição que ocupavam na Vulgata […] A sessão que os continha era intitulada: ‘Os Apócrifos: Livros que não devem ser considerados iguais à Escritura Sagrada, mas que são úteis e bons para a leitura’” (BRUCE, p. 93).
Sobre Zuínglio, F. F. Bruce diz que “na Bíblia de Zurique, publicada por Zuínglio, os livros apócrifos já haviam sido separados do restante do Antigo Testamento e publicados num volume à parte” (p. 93). Segue, então, desde a Reforma Protestante que os livros apócrifos não fazem parte da Bíblia que os reformadores utilizaram, pelo menos não como reconhecidamente canônicos. Por outro lado, eles são definitivamente reconhecidos e acrescentados ao cânon da Igreja Católica Romana nessa mesma época.
Essa posição dos reformadores não foi acompanhada pela Confissão de 1689 e nem pelos reformadores radicais, os Anabatistas. Os Anabatistas não nutriam o menor interesse pela tradição e muito menos pelos livros apócrifos contidos na Vulgata, a Escritura Romanista padrão. Lutero e Zuínglio embora rebaixando e não reconhecendo a inspiração deles, os mantiveram em suas versões bíblicas, o que representa um certo grau de apreço pela literatura apócrifa. Contudo, é ponto pacífico que eles não tinham tais livros como Escritura.
Os textos bíblicos que a Confissão utiliza contra os apócrifos papistas e como prova do seu ponto, são respectivamente Lucas 24:27,44 e Romanos 3:2. Os dois textos são neotestamentários, mas apontam para o cânon do Antigo Testamento. No Evangelho de Lucas a referência é à totalidade das Escrituras do Antigo Testamento: “começando por Moisés, e por todos os profetas, explicava-lhes o que dele se achava em todas as Escrituras” (v. 27), e “[…] convinha que se cumprisse tudo o que de mim estava escrito na lei de Moisés, e nos profetas e nos Salmos” (v. 44).
Os dois textos têm a função de anular qualquer pretensão dada aos apócrifos como Sagradas Escrituras. Os textos bíblicos apresentam as divisões do cânon judaico, primeiro considerando “Moisés e os profetas” e, depois, modificando um pouco essa divisão: “Lei de Moisés, profetas e Salmos”, onde o livro de Salmos é acrescentado. Note que na passagem de Lucas os livros apócrifos não estão presentes no cânon judaico, sendo excluídos pelo próprio evangelista e pelo Senhor Jesus.
Em Romanos 3:2, Paulo argumenta sobre o privilégio dos judeus, que receberam a revelação divina escrita, enquanto que outras nações jamais tiveram qualquer contato com o texto sagrado. Paulo diz a respeito dos judeus, “as palavras de Deus lhe foram confiadas” (3.2). Novamente a Confissão frisa a importância do cânon judaico, lembrando que os judeus receberam os oráculos de Deus, e que seu cânon deve ser levado em conta ao analisar a lista canônica do Antigo Testamento. Os apócrifos são livros que jamais foram contados no cânon judeu.
Comentando esse parágrafo da Confissão Batista, Russel Fuller cita o judeu Flávio Josefo (contra Apion) e o Talmude Babilônico, Baba Bathra, como testemunhos da rejeição dos livros apócrifos, e conclui que “os judeus aceitaram os trinta e nove livros da Confissão, mas rejeitaram os apócrifos” (p. 22). Ele acrescenta: “Para os Rabis o espírito da profecia desapareceu de Israel depois de Malaquias, considerando os apócrifos sem autoridade profética e, assim, sem inspiração divina” (p. 22).[7]
Com a citação dos dois textos bíblicos, a Confissão desmonta o acréscimo papista feito pelo Concílio de Trento, expõe sua falta de autoridade, anula os apócrifos como Escritura inspirada, e confirma o cânon ortodoxo com os 39 livros do Antigo Testamento que sempre foram reconhecidos pelos judeus, e os 27 livros do Novo Testamento reconhecidos pela Igreja.
[1] Leia o comentário do parágrafo 1 do capítulo 1 da CFB1689.
[2] Não confundir aqui “cânon aberto” com o que os teólogos liberais dizem quando usam o mesmo termo. cânon aberto neste ponto significa o cânon em processo de formação, quando os livros estavam sendo escritos.
[3] Conforme o texto de Laird Harris, esses teólogos questionaram o pensamento dominante da Igreja Presbiteriana, e criticaram os célebres teólogos Charles Hodge, Benjamin Warfield e John Gresham Machen. Eles foram acusados de terem criado a doutrina da inspiração verbal e da inspiração: “um desenvolvimento recente, o produto da escola de pensamento de Hodge-Warfield-Machen no Seminário de Princeton”. Inspiração e Canonicidade da Bíblia, p. 59.
[4] Ibid, p. 59.
[5] WALDRON, Samuel E. A Modern Esposition of the 1689 Baptist Cofession of Faith [Uma Exposição Moderna da Confissão Batista de 1689], p. 34.
[6] Cf. BRUCE, F.F. O Cânon das Escrituras, pp. 92-96.
[7] FULLER, Russel. The Rule and Authority of Scripture [A Regra e Autoridade da Escritura], In Founders Journal, spring 2016, nº 104.