[Capítulos 4 e 5 do livro A Guide to Fervent Prayer • Editado]
“Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que, segundo a sua grande misericórdia, nos gerou de novo para uma viva esperança, pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, para uma herança incorruptível, incontaminável, e que não se pode murchar, guardada nos céus para vós, que mediante a fé estais guardados na virtude de Deus para a salvação, já prestes para se revelar no último tempo.” (1 Pedro 1:3-5)
PARTE 1
Alguns extremistas dentre os Dispensacionalistas afirmam e insistem que as últimas sete epístolas do Novo Testamento (de Hebreus a Judas) não dizem respeito a todos aqueles que são membros do corpo místico de Cristo, mas são totalmente Judaicas, escritas pelos apóstolos para a circuncisão e destinadas somente para eles. Tal afirmação feroz e perversa é uma invenção arbitrária deles próprios, pois não há uma palavra nas Escrituras que fundamenta a reivindicação deles. Pelo contrário, há muito nestas mesmas Epístolas que repudiam claramente esse ponto de vista. Seguindo o pensamento deles pode-se também afirmar que as epístolas de Paulo “não são para nós” (santos do século XX), porque elas são dirigidas a grupos de crentes em Roma, Corinto, Galácia, e assim por diante. A identidade precisa dos Cristãos professos a quem a Epístola aos Hebreus foi originalmente dirigida não pode ser descoberta. É vital reconhecer, no entanto, que a Epístola é dirigida àqueles que são “participantes da vocação celestial” (Hebreus 3:1), algo que de modo algum pertencia à nação Judaica como um todo. Embora a Epístola de Tiago fora escrita para “as doze tribos que andam dispersas”, no entanto, foi dirigida aos membros dos que eram gerados de Deus (Tiago 1:18). As Epístolas de João são manifestamente as cartas de um pai em Cristo aos seus queridos filhinhos (1 João 2:12; 5:21) e, como tal, transmitem o cuidado solícito do Pai celestial para os Seus próprios, para aqueles que tinham Jesus Cristo por seu advogado (1 João 2:1). A epístola de Judas é também geral, direcionada para os “santificados em Deus Pai, e conservados por Jesus Cristo” (v.1).
Àqueles por Quem Pedro Oferece Esta Doxologia
A primeira Epístola de Pedro é dirigida “aos estrangeiros dispersos no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia” (1 Pedro 1:1). A Versão Americana Padronizada mais literalmente o traduz: “aos eleitos que são forasteiros da Dispersão no Ponto…”, ou seja, para os Judeus que estão ausentes da Palestina, residentes nas terras dos Gentios (cf. João 7:35). Mas cuidado deve ser tomado para que o termo “estrangeiros” não seja limitado à sua força literal, mas sim seja dado também o seu sentido figurado e aplicação espiritual. Isso não se refere estritamente aos descendentes carnais de Abraão, mas sim à sua descendência espiritual, que eram participantes da vocação celestial, e como tal, estavam longe de seu lar. Os patriarcas “…confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra. Porque… claramente mostram que buscam uma pátria… desejam uma melhor [do que a Canaã terrena], isto é, a celestial”. (Hebreus 11:13-16). Mesmo Davi, enquanto reinando como rei em Jerusalém, fez um reconhecimento similar: “Eu sou um peregrino na terra” (Salmos 119:19). Todos os Cristãos são estrangeiros neste mundo; por enquanto eles “estando no corpo”, estão “ausentes do Senhor” (2 Coríntios 5:6). Sua pátria está nos céus (Filipenses 3:20). Assim, era aos peregrinos espirituais (residentes temporários) a quem Pedro escreveu, aqueles que tinham sido gerados para uma herança guardada nos céus para eles (1 Pedro 1:4).
Nem todos os estrangeiros espirituais eram da linhagem natural de Abraão. Há mais do que uma indicação nesta mesma epístola que, embora possivelmente a maioria deles eram crentes judeus, contudo de modo algum todos o eram. Assim, no capítulo 2, versículo 10, depois de afirmar que Deus os chamou das trevas para a sua maravilhosa luz, o Apóstolo Pedro passa a descrevê-los com estas palavras: “Vós, que em outro tempo não éreis povo, mas agora sois povo de Deus; que não tínheis alcançado misericórdia, mas agora alcançastes misericórdia”. Isso delineia precisamente o caso dos crentes Gentios (cf. Efésios 2:12-13). Pedro está aqui citando Oséias 1:9-10 (onde os “filhos de Israel”, no versículo 10, referem-se ao Israel espiritual), o que é definitivamente interpretado por “nós” em Romanos 9:24-25: “Os quais somos nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios? Como também diz em Oséias: Chamarei meu povo ao que não era meu povo”. Mais uma vez, no capítulo 4, versículo 3, Pedro diz por meio de recordação para aqueles a quem ele está escrevendo: “Porque é bastante que no tempo passado da vida fizéssemos a vontade dos gentios, andando em dissoluções, concupiscências, borrachices, glutonarias, bebedices e abomináveis idolatrias”. A última categoria de transgressão só pode referir-se aos Gentios; pois os judeus (quando considerados como uma nação), desde o cativeiro Babilônico, nunca caíram em idolatria.
A Oração em Si
Ao examinarmos juntos a oração contida em 1 Pedro 1:3-5, consideremos oito coisas: (1) a sua conexão, para que percebamos que todos estão incluídos pelas palavras “nos gerou de novo”; (2) a sua natureza, uma doxologia (“Bendito seja”); (3) o seu Objeto, “o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”; (4) a sua atribuição, “Sua grande misericórdia”; (5) o seu incitamento, “nos gerou de novo para uma viva esperança”; (6) o seu reconhecimento, “pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos”; (7) a sua substância, “para uma herança incorruptível, incontaminável, e que não se pode murchar, guardada nos céus para vós” e (8) a sua garantia, “que mediante a fé estais guardados”. Há muito aqui de interesse e profunda importância. Portanto, seria errado para nós apressadamente ignorarmos tal passagem com algumas generalizações, especialmente uma vez que ela contém uma tal riqueza de reflexão espiritual, jubilosa que não deixará de edificar a mente e despertar a vontade e as afeições de cada santo que medita corretamente sobre ela. Que possamos ser devidamente afetados por seu conteúdo e realmente adentremos em seu espírito elevado.
Em primeiro lugar, consideramos a sua conexão. Aqueles em cujo nome o apóstolo ofereceu esta doxologia são citados de acordo com suas circunstâncias literais e figuradas no versículo 1, e, em seguida, descritos por suas características espirituais: “Eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo” (v. 2). Essa descrição refere-se igualmente a todos os regenerados em todas as épocas. Quando conectada com a eleição, a “presciência de Deus” não se refere à Sua presciência eterna e universal, pois esta envolve todos os seres e acontecimentos, passados, presentes e futuros; e, portanto, tem por seus objetos os não-eleitos, bem como os eleitos. Consequentemente, não há qualquer alusão à previsão de Deus de nossa crença ou qualquer outra virtude nos objetos de Sua escolha. Em vez disso, o termo presciência relaciona-se à fonte ou origem da eleição, a saber, a imerecida boa vontade e aprovação de Deus. Para este sentido da palavra, veja os seguintes: Salmo 1:6; Amós 3:2; 2 Timóteo 2:19. Para um sentido semelhante da palavra previsão, veja Romanos 11:2. Portanto, a frase “eleitos segundo a presciência de Deus” significa que as pessoas favorecidas, assim descritas, foram de antemão amadas por Ele, que foram os objetos de Sua eterna graça, inalteravelmente agradáveis a Ele, enquanto Ele as previa em Cristo, “… pela qual nos fez agradáveis [ou “objetos da graça”] a si no Amado” (Efésios 1:4-6).
Obediência, um Sinal Indispensável da Obra Salvífica do Espírito
“Em santificação do Espírito”. É por meio das operações graciosas e eficazes do Espírito que a nossa eleição por Deus Pai tem efeito (veja 2 Tessalonicenses 2:13). As palavras “santificação do Espírito” têm referência à Sua obra de regeneração, pela qual somos vivificados (feitos vivos), ungidos e consagrados ou separados para Deus. A ideia subjacente de santificação é quase sempre a de separação. Pelo novo nascimento, nós somos distinguidos daqueles que estão mortos em pecado. As palavras “para a obediência” aqui em 1 Pedro 1:2 significam que pelo chamado eficaz do Espírito, somos sujeitos ao chamado de autoridade do Evangelho (versículo 22 e Romanos 10:1, 16) e, posteriormente, para os seus preceitos. A Eleição nunca promove licenciosidade, mas sempre produz santidade e boas obras (Efésios 1:4; 2:10). O Espírito regenera os pecadores para uma nova vida de amável submissão a Cristo, e não a uma vida de autossatisfação. Quando o Espírito santifica a alma, é a fim de que ela possa adornar o Evangelho por uma caminhada que é regulada por ele. É pela sua obediência que um Cristão torna evidente a sua eleição pelo Pai, pois anteriormente ele era um dos “filhos da desobediência” (Efésios 5:6). Por sua nova vida de obediência, ele fornece a prova de uma obra sobrenatural do Espírito em seu interior.
“E aspersão do sangue de Jesus Cristo”. É importante que nós entendamos a distinção entre a aspersão do sangue de Cristo e o derramamento dele (Hebreus 9:22). O derramamento é em relação a Deus; enquanto que a aspersão é a sua aplicação ao crente, pelo qual ele obtém o perdão e a paz de consciência (Hebreus 9:13-14; 10:22), e pelo que o seu serviço é prestado de maneira aceitável a Deus (1 Pedro 2:5).
Uma leitura cuidadosa de toda a epístola torna evidente que estes santos estavam passando por duras provas (veja 1 Pedro 1:6-7; 2:19-21; 3:16-18; 4:12-16; 5:8-9). Cristãos judeus (que evidentemente compunham a maioria daqueles a quem originalmente Pedro se dirigiu) já haviam sido severamente oprimidos, perseguidos, não tanto pelo mundo profano quanto por seus próprios irmãos segundo a carne. Quão amargo e feroz era o ódio de tais judeus incrédulos é demonstrado não somente a partir do caso de Estevão, mas pelo que o apóstolo Paulo sofreu nas mãos deles (2 Coríntios 1:24-26). Como forma de incentivo, o apóstolo Paulo deliberadamente lembrou seus irmãos Hebreus das perseguições que ele já havia sofrido por amor de Cristo. “Lembrai-vos, porém, dos dias passados, em que, depois de serdes iluminados, suportastes grande combate de aflições… e com alegria permitistes o roubo dos vossos bens” (Hebreus 10:32-34). Ao mantermos esse fato em mente, uma melhor compreensão é tida sobre muitos dos detalhes do livro de Hebreus. Além disso, isso se torna mais evidente por que Pedro tem muito a dizer sobre a aflição, e por que ele se refere com tanta frequência aos sofrimentos de Cristo. Seus irmãos estavam em necessidade de um estímulo cordial que pudesse encorajá-los à resiliência heroica. Ele, portanto, alongou-se sobre os aspectos da verdade Divina mais adequados a apoiar a alma, fortalecer a fé, inspirar a esperança, e produzir firmeza e boas obras.
Esta Oração é Uma Doxologia, uma Expressão de Puro Louvor a Deus
Em segundo lugar, examinemos a sua natureza. É um tributo de louvor. Nesta oração, o apóstolo não está suplicando a Deus, antes está oferecendo adoração a Ele! Este é tanto o nosso privilégio quanto o dever, enquanto nós derramamos as nossas necessidades diante dEle; sim, um deve sempre ser acompanhado pelo outro. É “com ações de graças” que somos convidados a fazer com que as nossas “petições sejam em tudo conhecidas diante de Deus” (Filipenses 4:6). E isso é precedido pela exortação: “Regozijai-vos sempre no Senhor”, cuja alegria deve encontrar a sua expressão em gratidão e por atribuir a glória a Ele. Se nós somos adequadamente afetados pelas bênçãos de Deus, não podemos deixar de bendizer o Doador delas. No versículo 2, Pedro mencionou alguns dos mais notáveis e abrangentes de todos os benefícios Divinos, e esta exclamação: “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo!” é o eco, ou melhor, o reflexo do coração do Apóstolo Pedro, em resposta à maravilhosa graça de Deus por si e pelos seus irmãos. Esta doxologia especial também deve ser considerada como um reconhecimento devoto dos favores inestimáveis que Deus concedeu aos Seus eleitos, como ampliado no versículo 3. Enquanto o apóstolo refletia sobre as gloriosas bênçãos concedidas aos pecadores merecedores do inferno, seu coração foi inclinado à adoração fervorosa ao benigno Autor delas.
Assim pode ser, assim deve ser, com os Cristãos hoje. Deus não tem filhos mudos (Lucas 17:7). Eles não somente clamam a Ele dia e noite, em sua aflição, mas eles frequentemente O louvam por Sua Excelência e Lhe dão graças por Seus benefícios. Enquanto eles meditam sobre a Sua grande misericórdia, em tê-los gerado para uma viva esperança, enquanto eles antecipam, pela fé, a herança gloriosa que, para eles, está reservada nos céus, e enquanto eles percebem estes fluxos do favor soberano de Deus vindo a eles através da morte e ressurreição do Seu Filho amado, eles bem podem exclamar: “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo!”. Doxologias, então, são expressões de santa alegria e de homenagem em adoração. Em relação ao bendito termo especial, Ellicott mui proveitosamente observa:
Esta forma da palavra Grega é consagrada a Deus somente: Marcos 14:61; Romanos 9:5; 2 Coríntios 11:31. É uma palavra completamente diferente de “bendito” ou “feliz” das Bem-aventuranças e diferente de “bem-aventurada”, que é disto sobre a mãe de nosso Senhor em Lucas 1:28, 42. Esta forma dela [em 1 Pedro 1:3] implica que essa bênção é sempre devida em consideração a algo inerente à pessoa, enquanto aquela apenas implica uma bênção que foi recebida.
Assim, vemos mais uma vez quão minuciosamente distintiva e precisa é a linguagem da Sagrada Escritura.
O Glorioso Objeto de Louvor
Em terceiro lugar, nós contemplamos o seu objeto. Esta doxologia é dirigida ao “Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”, o que é explicado por Calvino, assim:
Porque, como anteriormente, ao chamar a Si mesmo o Deus de Abraão, Ele quis evidenciar a diferença entre Ele e todos os falsos deuses; assim, depois que Ele Se manifestou em Seu próprio Filho, Sua vontade é não ser conhecido de outro modo, a não ser nEle. Daí, aqueles que formam suas ideias sobre Deus em Sua pura majestade, à parte de Cristo, tem um ídolo em vez do verdadeiro Deus, como é o caso dos Judeus e dos Turcos [isto é, dos maometanos, aos quais podemos acrescentar os Unitarianos]. Todo aquele que, então, procura realmente conhecer ao único Deus verdadeiro, deve considerá-lO como o Pai de Cristo.
Além disso, em Salmos 72:17, é predito sobre Cristo que “os homens serão abençoados nele” e que “todas as nações o chamarão bem-aventurado”. Diante disso, o cantor sagrado irrompe nesse louvor em adoração: “Bendito seja o Senhor Deus, o Deus de Israel, que só ele faz maravilhas” (v. 18). Essa foi a forma de doxologia do Velho Testamento (cf. 1 Reis 1:48, 1 Crônicas 29:10); mas a doxologia no Novo Testamento (2 Coríntios 1:3; Efésios 1:3) é expressa em termos da autorrevelação da Divindade feita na Pessoa de Jesus Cristo: “Quem não honra o Filho, não honra o Pai que o enviou” (João 5:23).
Aqui, Deus Pai não é visto absolutamente, mas relativamente, isto é, como o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Nosso Senhor é contemplado em Seu caráter de Mediador, ou seja, como o Filho eterno investido de nossa natureza. Como tal, o Pai nomeou e enviou-O em Sua missão redentora. Nessa qualidade e ofício, o Senhor Jesus O confessou e O serviu, como o Seu Deus e Pai. Desde o início Ele esteve envolvido nos negócios de Seu Pai, sempre fazendo as coisas que eram agradáveis à Sua vista. Ele foi regulado em todas as coisas pela Palavra de Deus. Jeová era sua “porção” (Salmo 16:5), Seu “Deus” (Salmos 22:1), Seu “Tudo”. Cristo estava submisso a Ele (João 6:38; 14:28): “a cabeça do Cristo é Deus” (1 Coríntios 11:3). Na forma de aliança, também, Ele era e é o Deus e Pai de Cristo (João 20:17), não somente enquanto Cristo esteve aqui na terra, mas mesmo agora que Ele está no céu. Isso é claro a partir da promessa de Cristo depois de Sua ascensão: “A quem vencer, eu o farei coluna no templo do meu Deus, e dele nunca sairá; e escreverei sobre ele o nome do meu Deus” (Apocalipse 3:12). No entanto, esta subordinação oficial de Cristo a Deus Pai em nenhum aspecto milita contra, nem modifica a Sua igualdade essencial com Ele (João 1:1-3; 5:23, 10:30-33).
Pelo Fato de Deus ser o Pai de nosso Fiador, Ele é Também nosso Pai
Deve ser observado atentamente que o louvor aqui é prestado não ao “Deus e Pai do Senhor Jesus Cristo”, mas de “nosso Senhor Jesus Cristo”. Em outras palavras, a relação de Deus conosco é determinada por Sua relação com o nosso Fiador. Ele é o Deus e Pai dos pecadores somente em Cristo. Ele é adorado como o Cabeça da aliança e Salvador dos Seus eleitos nEle. Este é um ponto de suma importância: a conexão que a Igreja mantém com Deus é estabelecida por aquela relação do Redentor com Deus, pois ela é de Cristo, e Cristo é de Deus (1 Coríntios 3:23). O título “Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo” é a designação Cristã peculiar e característica da Divindade, contemplando-O como o Deus da redenção (Romanos 15:6; 2 Coríntios 11:31; Colossenses 1:3). Quando um israelita O chamava como “o Deus de Abraão, Isaque e Jacó”, ele O reconhecia e confessava não somente como o Criador e Governador moral do mundo, mas também como o Deus da aliança de sua nação. Assim, quando o Cristão O chama como “o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”, ele O reconhece como o Autor da eterna redenção por meio do Filho encarnado, que voluntariamente tomou o lugar de subserviência e dependência nEle. No mais elevado sentido da palavra, Deus não é o Pai de nenhum homem até que ele se una Àquele a quem Ele comissionou e enviou para ser o Salvador dos pecadores, o único Mediador entre Deus e os homens.
A linguagem na qual Deus é aqui adorado explica como é que Ele pode ser tão amável e generoso para o Seu povo. Todas as bênçãos veem de Deus para as criaturas. Ele é quem lhes deu a existência e supre as suas variadas necessidades. Igualmente assim, todas as bênçãos espirituais procedem de Deus (Efésios 1:3; Tiago 1:17). O Altíssimo é “benigno até para com os ingratos e maus” (Lucas 6:35). Mas as bênçãos espirituais são derramadas a partir dEle não simplesmente como Deus, nem da parte do Pai absolutamente, mas a partir do “Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”. No que segue, o apóstolo faz menção à Sua grande misericórdia, de Seu gerar os eleitos para uma viva esperança, e para uma herança que transcende infinitamente todo bem terrenal. E na concessão desses favores, Deus é aqui reconhecido no caráter especial no qual Ele lhes outorga. Se for perguntado, Como pode um Deus santo dotar homens pecadores com tais bênçãos? A resposta é, como “o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”. É porque Deus Se agrada do Redentor que Ele Se agrada dos redimidos. A obra de Cristo mereceu tal recompensa, e Ele a compartilha com aqueles que Lhe pertencem (João 17:22). Tudo vem para nós do Pai, por meio do Filho.
Sua Abundante Misericórdia, a Causa da Eleição da Graça
Em quarto lugar, vamos refletir sobre a sua atribuição, que é encontrada na frase “sua grande misericórdia”. Assim como Deus não elegeu porque previu que qualquer um se arrependeria e creria salvificamente no Evangelho — pois estes são os efeitos de Seu chamado invencível, o que por sua vez é a consequência e não a causa da eleição — mas, sim, “de acordo com seu próprio propósito” (2 Timóteo 1:9). Nem Ele regenerou por causa de quaisquer méritos possuídos pelos sujeitos do mesmo, mas apenas por Sua própria vontade soberana (Tiago 1:18). Sua grande misericórdia é aqui definida em oposição aos nossos abundantes deméritos, e na medida em que estamos sensíveis aos nossos deméritos, seremos movidos a prestar louvor à Sua grande misericórdia. Tal é o nosso terrível caso por causa do pecado, de forma que nada, a não ser a misericórdia Divina pode socorrê-lo. Atentem para as palavras de C. H. Spurgeon:
Nenhum outro atributo teria nos ajudado, se a misericórdia fosse negada. Como nós somos, por natureza, a justiça nos condena, a santidade nos desaprova, o poder nos esmaga, a verdade confirma a ameaça da lei, e a ira a cumpre. É a partir da misericórdia de Deus, que todas as nossas esperanças começam. A misericórdia é necessária para o miserável, e ainda mais para o pecaminoso. A miséria e o pecado são totalmente unidos na raça humana, e a misericórdia aqui realiza as suas nobres ações. Meus irmãos, Deus graciosamente concedeu a Sua misericórdia para nós, e nós devemos reconhecer que, felizmente, no nosso caso, a Sua misericórdia tem sido grande misericórdia!
Nós estávamos contaminados com pecado abundante, e somente a multidão das Suas benignidades poderia ter retirado esses pecados. Nós estávamos infectados com um mal abundante, e somente misericórdia transbordante alguma vez poderia nos curar de toda a nossa doença natural, e fazer-nos encontrar o céu. Nós temos recebido graça abundante até agora; temos feito grandes saques no erário¹ de Deus, e da Sua plenitude todos nós recebemos graça sobre graça. Onde abundou o pecado, superabundou a graça… Tudo em Deus é em grande escala. Grande poder, Ele estremece o mundo. Grande em sabedoria, Ele controla as nuvens. Sua misericórdia é compatível com Seus outros atributos: é a misericórdia Divina, misericórdia infinita! Você pode medir a Sua Divindade antes que possa contabilizar a Sua misericórdia. Ela bem pode ser chamada de “abundante”, se ela é infinita. Ela sempre será abundante, pois tudo o que pode ser extraído de lá será apenas como a gota de um balde no próprio mar. A misericórdia que lida conosco não é a misericórdia do homem, mas a misericórdia de Deus, e, portanto, uma misericórdia sem limites. [Um Colar de Pérolas, Sermão Nº 948 – N. do R.]
PARTE 2
“Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo que, segundo a sua grande misericórdia, nos gerou de novo para uma viva esperança”. Começaremos este capítulo com uma continuação de nossa análise da atribuição desta doxologia. Deus o Pai é aqui visto como a Cabeça da aliança, do Mediador e dos eleitos de Deus nEle, e é, portanto, chamado por Seu distintivo título Cristão (veja, por exemplo, Efésios 1:3). Este título O apresenta como o Deus da redenção. “Grande misericórdia” é atribuída a Ele. Esta é uma das Suas perfeições inefáveis, mas o seu exercício, como de todos os Seus outros atributos, é determinado por Sua própria vontade imperial (Romanos 9:15). Muito se fala na Escritura sobre esta excelência Divina. Lemos sobre sua “misericórdia” (Lucas 1:78). Davi declara: “Pois grande é a tua misericórdia” (Salmos 86:13); “Pois tu, Senhor, és… abundante em benignidade” (Salmos 86:5). Neemias fala de Sua “grande misericórdia” (Neemias 9:27). Ouça Davi descrever o efeito de meditar sobre esse atributo, enquanto ele o tinha experimentado praticamente, sobre sua adoração: “Porém eu entrarei em tua casa pela grandeza da tua benignidade; e em teu temor me inclinarei para o teu santo templo” (Salmos 5:7). Bendito seja o Seu nome porque “a sua benignidade dura para sempre” (Salmos 107:1). Bem, então cada crente pode se unir ao salmista, ao dizer: “Eu, porém, cantarei… a tua misericórdia” (Salmos 59:16). Para este atributo especial, os santos errantes devem olhar: “apaga as minhas transgressões, segundo a multidão das tuas misericórdias” (Salmo 51:1).
A Misericórdia Geral e Especial de Deus devem ser Distinguidas
Deve ser pontuado que há tanto uma misericórdia geral quanto uma especial. Essa distinção é necessária e importante, sim, algo vital; pois muitas pobres almas estão contando com a primeira, em vez de olhar pela fé para esta última. “O Senhor é bom para todos, e as suas misericórdias são sobre todas as suas obras” (Salmos 145:9). Considerando quanta maldade abunda neste mundo, o coração discernente e contrito pode dizer com o salmista: “A terra, ó Senhor, está cheia da tua benignidade…” (Salmo 119:64). Para o bem de nossas almas, é essencial que nós compreendamos a distinção revelada na Palavra de Deus entre esta misericórdia geral e a especial benignidade de Deus em relação aos Seus eleitos. Em virtude de Sua eminência como um dom de Deus, Cristo é denominado “misericórdia a nossos pais” (Lucas 1:72). Quão acertadamente o salmista declara: “Porque a tua benignidade se estende até aos céus” (Salmos 108:4; cf. Efésios 4:10); pois ali o propiciatório de Deus é encontrado (veja Hebreus 9, especialmente vv. 5, 23, 24), sobre o qual o Salvador exaltado está agora assentado, administrando os frutos de Sua obra redentora. É para lá que a alma condenada e sobrecarregada pelo pecado deve olhar por misericórdia salvadora. Concluir que Deus é misericordioso demais para condenar alguém eternamente é uma ilusão com que Satanás fatalmente engana multidões. A misericórdia do perdão é obtida somente através da fé no sangue expiatório do Salvador. Rejeite-O, e a condenação Divina é inevitável.
Esta Misericórdia é Abundante Porque ela é Misericórdia da Aliança
A misericórdia aqui celebrada por Pedro é mui claramente particular e distintiva. É aquela do “Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”, e flui para Seus objetos favorecidos “pela [por meio da] ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos”. É entre essas duas frases que encontramos estas palavras firmemente apresentadas: “que, segundo a sua grande misericórdia, nos gerou de novo para uma viva esperança”. Assim, ela é uma misericórdia pactual, misericórdia redentora, misericórdia regeneradora. Justamente ela é denominada “grande misericórdia”, especialmente tendo em vista o Doador. Pois esta abundante misericórdia é emitida a partir do autossuficiente Jeová, que é infinito e imutavelmente bendito em Si mesmo, que não teria sofrido nenhuma perda pessoal se Ele abandonasse toda a raça humana à destruição. Foi de Sua mera boa vontade que Ele assim não o fez. Ela é vista como “grande misericórdia”, quando olhamos o caráter de seus objetos, ou seja, rebel-des depravados, cujas mentes eram inimigas contra Deus. Ela também aparece assim, quando contemplamos a natureza de suas bênçãos peculiares. Elas não são as mais comuns e temporais, como a saúde e força, sustento e preservação que são concedidas aos ímpios, mas os benefícios espirituais, celestiais e eternos, tais como nunca havia entrado na mente do homem conceber.
Ainda é mais vista assim, como “grande misericórdia”, quando contemplamos os meios através dos quais essas bênçãos são encaminhadas para nós: “pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos”, o que pressupõe necessariamente Sua encarnação e crucificação. Que outra linguagem, senão “grande misericórdia” poderia adequadamente expressar o Pai enviando o Seu Filho amado para tomar sobre Si a forma de servo, assumir a Si mesmo em carne e osso, e de ter nascido em uma manjedoura, tudo para o bem daqueles cujas inumeráveis iniquidades mereciam o castigo eterno? Esse Ser bendito veio aqui para ser o Fiador do Seu povo, para pagar as suas dívidas, para sofrer em seu lugar, para morrer, o justo pelos injustos. Portanto, Deus não poupou Seu próprio Filho, mas chamou a espada da justiça para feri-lO. Ele O entregou à maldição, para que Ele pudesse nos dar “também com ele todas as coisas” (Romanos 8:32). Assim, ela é uma misericórdia justa, como o salmista declara: “A misericórdia e a verdade se encontraram; a justiça e a paz se beijaram” (Salmos 85:10). Foi na cruz que os atributos aparentemente conflitantes da misericórdia e da justiça, do amor e da ira, da santidade e da paz se uniram, assim como as várias cores da luz, quando separadas por um prisma natural de neblina, são vistas maravilhosamente unidas no arco-íris, o sinal e emblema do Pacto (Gênesis 9:12-17; Apocalipse 4:3).
O Meditar sobre o Milagre do Novo Nascimento Evoca Louvor Fervoroso
Em quinto lugar, consideremos o incitamento desta doxologia, o qual é encontrado nas seguintes palavras: “que (quem), segundo a sua grande misericórdia, nos gerou de novo para uma viva esperança”. Foi a constatação de que Deus havia vivificado aqueles que estavam mortos em pecados que moveu Pedro a bendizê-lO com tanto fervor. As palavras “nos gerou” referem-se à regeneração deles. Mais tarde, no capítulo, o apóstolo descreve-os como tendo sido “de novo gerados” (v. 23) e no próximo capítulo dirige-se a eles como “meninos novamente nascidos” (1 Pedro 2:2). Uma vida nova e espiritual, Divina em sua origem, foi dada a eles, forjada em suas almas pelo poder do Espírito Santo (João 3:6). Essa nova vida foi dada com o propósito de formar um novo caráter e para a transformação da conduta deles. Deus enviou o Espírito de Seu Filho aos seus corações, comunicando, assim, uma santa disposição, que, como o Espírito de adoção (Romanos 8:15), os inclinou a amá-lO. Isso é denominado: uma nova geração, não somente porque é nessa ocasião que a vida espiritual começa e que uma semente santa é implantada (1 João 3:9), mas também porque uma imagem ou semelhança do próprio Progenitor é transmitida (1 João 5:1). Como caído Adão “gerou um filho à sua semelhança, conforme a sua imagem” (Gênesis 5:3), assim acontece com o Cristão no novo nascimento: “E vos vestistes do novo [homem], que se renova para o conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou” (Colossenses 3:10).
Nas palavras “nos gerou de novo”, há uma dupla alusão: uma comparação e um contraste. Em primeiro lugar, tal como Deus é a causa eficaz de nossa existência, assim Ele é também de nosso bem-estar; nossa vida natural vem de Deus, e assim também acontece com a nossa vida espiritual. Em segundo lugar, o apóstolo Pedro tem a intenção de distinguir o nosso novo nascimento do antigo. Em nossa primeira geração e nascimento nós fomos concebidos em pecado e formados em iniquidade (Salmos 51:5); mas em nossa regeneração somos criados “em verdadeira justiça e santidade” (Efésios 4:24). Pelo novo nascimento somos libertos do poder reinante do pecado, pois somos, então, feitos “participantes da natureza divina” (2 Pedro 1:4). A partir de agora há um conflito perpétuo dentro do crente. Não somente a carne cobiça contra o espírito, mas o espírito cobiça contra a carne (Gálatas 5:17). Não é suficientemente reconhecido e compreendido que a nova natureza ou princípio da graça necessariamente faz guerra contra a velha natureza ou princípio do mal. Esta geração espiritual é atribuída à “grande misericórdia” de Deus, pois ela não foi induzida por nada em ou de nós. Nós não tivemos nem mesmo um desejo por Ele; em todos os casos Ele é capaz de declarar: “Fui achado daqueles que não me buscavam” (Isaías 65:1; cf. Romanos 3:11). Como crentes O amam porque Ele os amou primeiro (1 João 4:19), da mesma forma eles não se tornam buscadores de Cristo até que Ele primeiro os procure e eficazmente os chame (Lucas 15; João 6:44; 10:16).
Esta geração acontece de acordo com a grande misericórdia de Deus. A Misericórdia foi mais eminentemente demonstrada aqui. Pois a regeneração é a bênção fundamental de toda a graça e glória, sendo a primeira manifestação aberta de que os eleitos recebem do amor de Deus por eles. “Mas quando apareceu a benignidade e amor de Deus, nosso Salvador, para com os homens, não pelas obras de justiça que houvéssemos feito, mas segundo a sua misericórdia, nos salvou pela lavagem da regeneração e da renovação do Espírito Santo” (Tito 3:4-5). Como Thomas Goodwin tão bem expressou:
O amor de Deus é como um rio ou nascente, que corre no subsolo, e assim tem feito desde a eternidade. Quando ele rompe em primeiro lugar? Quando um homem é eficazmente chamado, então, este rio, que esteve subterrâneo desde a eternidade, e por meio de Cristo na cruz, irrompe no próprio coração de um homem também.
É então que somos, experimentalmente, feitos filhos de Deus, recebidos em Seu favor, e conformados à Sua imagem. Aí está uma notável demonstração de Sua benignidade. No novo nascimento o amor de Deus é derramado no coração, e este é a introdução, bem como o seguro penhor de todas as outras bênçãos espirituais, para o tempo e a eternidade. Como o amor de Deus, ao predestinar, garante nosso chamado eficaz ou regeneração, assim a regeneração garante a nossa justificação e glorificação (Romanos 8:29-30).
A Obra Divina da Regeneração Precede o Nosso Arrependimento e Fé
Refaçamos agora os nossos passos, seguindo novamente sobre o fundamento que abrangemos, mas na ordem inversa. Até que uma alma seja nascida de Deus não podemos ter qualquer apreensão espiritual da misericórdia Divina. Antes deste milagre da graça acontecer, ela está possuída, mais ou menos, de um espírito farisaico. Bendizer sinceramente a Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo por Sua grande misericórdia, é o reconhecimento sincero de alguém que se afastou com repugnância dos trapos imundos de sua justiça própria (Isaías 64:6) e que não coloca nenhuma confiança no carne (Filipenses 3:3). É igualmente verdade que nenhuma pessoa não-regenerada já tem a sua consciência aspergida com o sangue apaziguador de Cristo, pois até que a vida espiritual seja transmitida, arrependimento evangélico e fé salvadora são moralmente impossíveis. Portanto, não pode haver compreensão de nossa desesperada necessidade de um Salvador, ou qualquer confiança real nEle até que sejamos vivificados (feitos vivos) pelo Espírito Santo (Efésios 2:1), ou seja, nascermos de novo (João 3:3). Ainda mais evidente é que, desde que uma pessoa permanece morta em pecado, com sua mente posta em inimizade contra Deus (Romanos 8:7), não pode haver obediência aceitável a Ele; porque Ele nem se ilude nem é subornado por rebeldes. E certo é que ninguém que está apaixonado pelos enfeites coloridos deste mundo se conduzirá como “estrangeiros e peregrinos sobre a terra”; pois estão perfeitamente em casa aqui.
A Regeneração Produz uma Viva Esperança
“Nos gerou de novo para uma viva esperança”. Este é o imediato efeito e fruto do novo nascimento, e é uma das marcas características que distinguem os regenerados dos não-regenerados. Esperança sempre diz respeito a algo futuro (Romanos 8:24-25), sendo uma grande expectativa de algo desejável, uma antecipação de um bem prometido, seja real ou imaginário. O coração do homem natural é largamente flutuante, e seus espíritos mantidos, por contemplações de alguma melhoria em sua sorte que aumentará a sua felicidade neste mundo. Mas na maioria dos casos, as coisas sonhadas jamais se materializam, e mesmo quando o fazem, o resultado é sempre decepcionante. Pois nenhuma satisfação real da alma pode ser encontrada em qualquer coisa sob o sol. Se tais almas desiludidas têm estado sob a influência da religião feita pelo homem, então elas tentarão se convencer a olhar para a frente, esperando por algo muito melhor para eles mesmos no futuro. Mas tais expectativas provarão ser igualmente vãs, pois elas são apenas as fantasias carnais de homens carnais. A falsa esperança do ímpio (Jó 8:13), a esperança presunçosa de quem nem reverencia a santidade de Deus, nem teme a Sua ira, mas que conta com a Sua misericórdia, e a esperança morta de um professo sem graça, apenas zombarão de seus possuidores.
A Esperança do Cristão é Tanto Viva Quanto Vivificante
Em contraste com as expectativas ilusórias acarinhadas pelo não-regenerado, os eleitos de Deus são gerados de novo para uma esperança real e substancial. Esta esperança, que preenche suas mentes e age sobre suas vontades e afeições (assim alterando radicalmente a orientação de seus pensamentos, palavras e ações) é baseada nas promessas objetivas da Palavra de Deus (que são resumidas no v. 4). Na maior parte de suas ocorrências, o particípio adjetivo Grego za? (viver; Nº 2198, no Dicionário Grego de Strong) é traduzido como “vivificante”, embora em Atos 7:38 (como aqui em 1 Pedro 1:3) ele é traduzido por viva. Ambos os significados são precisos e apropriados neste contexto. A esperança do Cristão é segura e firme (Hebreus 6:19), pois repousa sobre a palavra e juramento dAquele que não pode mentir. É o dom da graça Divina (2 Tessalonicenses 2:16), um fruto do Espírito (Romanos 5:1-5), inseparavelmente ligado à fé e ao amor (1 Coríntios 13:13). É uma esperança viva porque ela é exercida por uma alma vivificada, sendo um exercício da nova natureza ou princípio da graça recebida na regeneração. É uma esperança vivificante porque ela tem a vida eterna como o seu objeto (Tito 1:2). Que gloriosa mudança ocorreu antes de sermos gerados de Deus, muitos de nós éramos cativos de “uma certa expectação horrível de juízo” (Hebreus 10:27), e, com medo da morte, éramos por “por toda a [nossa] vida sujeitos à servidão” (Hebreus 2:15). Ela também é chamada de “uma viva esperança”, porque é imperecível, uma que olha e dura para além do túmulo. Se a morte alcançar o seu possuidor, longe de frustração, a esperança, então, entra em sua fruição.
Esta esperança interior do crente não é apenas uma viva, mas vivificante, pois ela é como a fé e o amor, um princípio ativo em sua alma, animando-o à paciência, firmeza e perseverança no caminho do dever. Nisso ela difere radicalmente da esperança morta dos formalistas religiosos e professos vazios, porque a “fé” deles nunca os estimula à atividade espiritual ou não produz nada para distingui-los dos mundanos respeitáveis que não fazem nenhuma profissão de fé. É a posse e exercício desta viva esperança que dá demonstração de que temos sido “gerados de novo”. Por geração Divina uma vida espiritual é comunicada, e esta vida se manifesta por desejos pelas coisas espirituais, por uma busca de satisfação em objetos espirituais, e por um desempenho alegre dos deveres espirituais. A autenticidade e a realidade desta “viva esperança” são, por sua vez, é evidenciada por sua produção de uma prontidão para a negação de si mesmo e pelo suportar das aflições, assim agindo como “âncora da alma” (Hebreus 6:19) em meio às tempestades da vida. Esta esperança distingue-se ainda mais, ao purificar o seu possuidor. “E qualquer que nele tem esta esperança purifica-se a si mesmo, como também ele é puro” (1 João 3:3). É também uma “viva esperança” na medida em que anima e vivifica o seu possuidor; pois, enquanto ele vê o bendito alvo, a coragem é transmitida e a inspiração concedida, habilitando-o a perseverar até o fim de suas tribulações.
A Virtude Salvífica da Ressurreição de Cristo
Em sexto lugar, consideremos o reconhecimento desta oração, ou seja, “a ressurreição de Jesus Cristo”. A partir da posição ocupada por essas palavras, é claro que elas estão relacionadas e governam as palavras anteriores, bem como o versículo que se segue. Igualmente óbvio é que a ressurreição de Cristo implica a Sua vida e morte anteriores, embora cada uma possua seu próprio valor distintivo e virtude. A conexão entre a ressurreição de Cristo e o exercício da grande misericórdia de Deus o Pai, ao trazer-nos da morte para a vida, e por colocar em nossos corações uma viva esperança, e por nos trazer para uma herança gloriosa é algo mui real e profundo e como tal, exige a nossa atenção devota. O Salvador ressuscitando dentre os mortos foi a prova crítica da origem Divina de Sua missão e, portanto, uma ratificação do Seu Evangelho; foi o cumprimento das profecias do Antigo Testamento a respeito dEle, e, assim, foi provado que Ele é o Messias prometido; foi a realização de Suas próprias previsões, e, assim, foi certificado que Ele é um verdadeiro profeta. Isso determinou o contexto entre Ele e os líderes judeus. Eles O condenaram à morte como um impostor, mas pela restauração do templo do Seu corpo em três dias, Ele demonstrou que eles eram mentirosos. Ele testemunhou a aceitação pelo Pai de Sua obra redentora.
Há, no entanto, uma ligação muito mais estreita entre a ressurreição de Cristo dentre os mortos e a esperança da vida eterna que está estabelecida diante de Seu povo. Sua emersão em triunfo a partir do sepulcro forneceu indubitável prova da eficácia do Seu sacrifício propiciatório, pelo qual Ele havia retirado os pecados daqueles por quem ele foi oferecido. Isso sendo cumprido, pela Sua ressurreição, Cristo trouxe justiça eterna (Daniel 9:24), garantindo, assim, para o Seu povo a recompensa eterna, devida a Ele por Seu cumprimento da Lei de Deus, por Sua própria obediência perfeita. Ele, que foi entregue à morte por nossos pecados ressuscitou para nossa justificação (Romanos 4:25). Ouçam as palavras de John Brown (a quem, devido ao comentário sobre 1 Pedro, eu devo muito):
Quando Deus “tornou a trazer dentre os mortos a nosso Senhor Jesus, grande pastor das ovelhas, pelo sangue da eterna aliança”, Ele manifestou como sendo “o Deus da paz”, a Divindade pacificada. Ele “o ressuscitou dentre os mortos, e lhe deu glória, para que a vossa fé e esperança estivessem em Deus” (1 Pedro 1:21). Se Jesus não tivesse ressuscitado, a nossa fé seria vã, e permaneceríamos nos nossos pecados (1 Coríntios 15:17), e sem esperança. Mas agora que Ele ressuscitou,
Nosso Fiador libertado, nos declara livres,
Por cujas ofensas Ele foi apreendido;
Em Sua libertação, a nossa própria libertação vemos,
E nos alegramos em ver Jeová satisfeito.Mas mesmo isso não é tudo. A ressurreição de Nosso Senhor deve ser vista não apenas em conexão com Sua morte, mas com a glória que se seguiu. Ressurreto dentre os mortos, Ele recebeu “poder sobre toda a carne, para que dê a vida eterna a todos quantos lhe deste” [João 17:2]. Como isso é projetado para incentivar a esperança, pode ser facilmente apreendido: “Porque ele vive, nós também viveremos”. Tendo as chaves da morte e do mundo invisível, Ele pode e vai ressuscitar-nos da morte, e dar-nos a vida eterna. Ele está sentado à direita de Deus. “Porque já estais mortos, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então também vós vos manifestareis com ele em glória” [Colossenses 3:3-4]. Ainda não estamos na posse da herança; mas Ele, nossa cabeça e representante, está: “Mas agora ainda não vemos que todas as coisas lhe estejam sujeitas” [Hebreus 2:8]. Quanto ao Capitão de nossa salvação, “Vemos, porém, coroado de glória e de honra aquele Jesus… por causa da paixão da morte” [Hebreus 2:9]. A ressurreição de Cristo, quando considerada em referência à morte que a precedeu e a glória que a seguiu, é o grande meio de produção e fortalecimento da esperança da vida eterna.
Pela fé, contemple agora Cristo sentado à direita da Majestade nas alturas, de onde Ele está administrando todo o desenrolar daquela redenção que Ele consumou. “Deus com a sua destra o elevou a Príncipe e Salvador, para dar a Israel [espiritual] o arrependimento e a remissão dos pecados” [Atos 5:31).
Mais especificamente, a ressurreição de Cristo não é somente a base jurídica sobre a qual Deus o Pai imputa a justiça de Cristo aos pecadores crentes, mas também é o mandado legal sobre o qual o Espírito Santo passa a regenerar aqueles pecadores a fim de que eles possam inicialmente crer em Cristo, se converterem dos seus pecados e serem salvos. Infelizmente, como tantos outros pontos refinados da doutrina do Evangelho, isto é pouco compreendido hoje. O espírito de um homem deve ser trazido de sua morte no pecado antes que seu corpo seja o sujeito de uma ressurreição em glória no último dia. E enquanto o Espírito Santo é Aquele que vivifica espiritualmente os eleitos de Deus, deve ser lembrado que Ele é enviado, para fazer a Sua obra de salvação, pelo poder real de Cristo ressuscitado, a Quem a autoridade foi dada como recompensa de Sua obra consumada (Mateus 28:18, Atos 2:33; Apocalipse 3:1). Em Tiago 1:18, o novo nascimento é delineado até a soberana vontade do Pai. Em Efésios 1:19 e seguintes, o novo nascimento e suas graciosas consequências são atribuídos à operação graciosa do Espírito. Aqui em nosso texto, ao relatar a grande misericórdia do Pai, esta é atribuída à virtude do triunfo de Cristo sobre a morte. Deve ser observado que a própria ressurreição de Cristo é descrita como gerá-lO (Salmos 2:7; cf. Atos 13:33), enquanto que a nossa ressurreição espiritual é chamada de regeneração (Tito 3:5). Cristo é expressamente chamado de “o primogênito dentre os mortos” (Apocalipse 1:5). Assim Ele é chamado porque a Sua ressurreição marcou um novo começo para Ele e para o Seu povo.