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A Pecaminosidade do Homem em Seu Estado Natural, por Thomas Boston

DOUTRINA: O homem natural está agora completamente corrompido

 

Agora, confirmarei a doutrina da corrupção da natureza.

 

Levarei uma lente aos seus olhos, pela qual você possa ver a sua natureza pecaminosa; a qual, apesar de Deus tomar particular conhecimento sobre ela, muitos inteiramente a ignoram. Consultemos a Palavra de Deus e a experiência e observação dos homens. Como prova Escriturística, consideremos:

 

Como a Escritura toma particular conhecimento da Queda de Adão, comunicando a sua imagem à sua posteridade: “E Adão viveu cento e trinta anos, e gerou um filho à sua semelhança, conforme a sua imagem, e pôs-lhe o nome de Sete” [Gênesis 5:3]. Compare isto com o primeiro versículo do capítulo: “No dia em que Deus criou o homem, à semelhança de Deus o fez”. Eis aqui, como a imagem do homem depois da queda e a imagem em que ele foi originalmente criado são opostas. O homem foi criado à semelhança de Deus; isto é, o Deus santo e justo fez uma criatura santa e justa, mas o Adão caído gerou um filho, e não à semelhança de Deus, mas à sua própria semelhança; ou seja, o corrupto e pecaminoso Adão gerou um filho pecador e corrupto. Porque, assim como a imagem de Deus trazia consigo a justiça e a imortalidade, como foi mostrado antes; assim esta imagem do caído Adão trazia consigo a corrupção e morte (1 Coríntios 15:49-50; compare o versículo 22 do mesmo capitulo). Moisés, no quinto capítulo de Gênesis, dá-nos a primeira nota da mortalidade que já existiu no mundo, ele começa o capitulo com isso, que, antes morrer, Adão gerou mortais. Tendo pecado, se tornado mortal, de acordo com a ameaça [Gênesis 2:17]; e por isso ele gerou um filho à sua semelhança, pecaminoso e, portanto, mortal. Assim, o pecado e a morte passaram a todos. Sem dúvida ele gerou tanto Caim quanto Abel à sua semelhança, assim como Sete; mas isto não é registrado de Abel, porque ele não deixou nenhuma questão por trás dele, e sua queda gerou o primeiro sacrifício de morte no mundo, isto foi um relatório suficiente a seu respeito, nem isso é registrado de Caim, de quem poderia ter sido, embora peculiar, por causa da sua maldade monstruosa; e, além disso, a sua posteridade foi afogada no dilúvio, mas é registrado sobre Sete, porque ele era o pai da raça santa; e dele toda a humanidade desde o dilúvio descendeu, e a própria semelhança do caído Adão com eles.

 

Isto se infere a partir do texto da Escritura: “Quem do imundo tirará o puro? Ninguém” (Jó 14:4). Nossos primeiros pais eram impuros, como então podemos ser puros? Como poderiam nossos pais imediatos ser puros? Como nossos filhos podem ser? A impureza aqui referida é uma impureza pecaminosa; pois tal impureza é que enche os dias dos homens de problemas; e é natural, sendo derivada de pais impuros: “O homem, nascido da mulher” (Jó 14:1), “Como seria puro aquele que nasce de mulher?” (Jó 25:4). O Deus onipotente, cujo poder não é aqui desafiado, pode trazer uma coisa pura de uma impura, e fê-lo, no caso do homem Cristo, mas nenhum outro pode. Toda pessoa que nasce de acordo com o curso da natureza nasce impuro. Se a raiz é corrupta, assim devem ser os ramos. Nem é o caso reparado, embora os pais sejam santificados; pois eles são santos apenas em parte, e isto pela graça, não por natureza, mas eles geram seus filhos como homens, não como homens santos. Portanto, assim como o pai circuncidado gera um incircunciso, e depois que o grão mais puro é semeado, colhemos joio com o trigo; deste modo os pais mais santos geram filhos profanos, e não podem comunicar a sua graça a eles, como eles fazem com a sua natureza; isto muitos pais piedosos encontram ser verdadeiro em sua triste experiência.

 

Considere a confissão do salmista Davi (Salmos 51:5): “Eis que em iniquidade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe”. Aqui, ele sobe de seu pecado atual, até a fonte do mesmo, ou seja, a natureza corrupta. Ele era um homem segundo o coração de Deus, mas não foi assim com ele desde o princípio. Ele foi gerado em casamento legal, mas quando o embrião foi gerado no útero, era um embrião pecaminoso. Daí a corrupção da natureza ser chamada de “velho homem”; sendo tão antiga quanto nós mesmos somos, mais antiga do que a graça, mesmo naqueles que são santificados desde o ventre.

 

Ouça a constatação de nosso Senhor sobre este ponto em João 3:6: “O que é nascido da carne é carne”. Eis aqui a corrupção universal da humanidade — todos são carne! Não que todos são frágeis, embora, isto seja uma verdade triste demais; sim, a nossa fragilidade natural é uma evidência de nossa corrupção natural, mas esse não é o sentido do texto. O significado dele é: todos são corruptos e pecadores, e isto se dá de forma natural. Daí o nosso Senhor argumenta que porque eles são carne, portanto, eles devem nascer de novo, ou então eles não podem entrar no reino de Deus (vv. 3-5). E assim como a corrupção de nossa natureza mostra a necessidade absoluta de regeneração, assim a necessidade absoluta de regeneração claramente comprova a corrupção de nossa natureza; pois, por que um homem precisa de um segundo nascimento, se a sua natureza não fosse bastante prejudicada em seu primeiro nascimento?

 

O homem certamente está mais afundado agora, em comparação ao que ele já foi. Deus o fez, um “pouco menor que os anjos”, mas agora vamos encontrá-lo comparado aos animais que perecem. Ele foi obedecido pelos animais, e agora tornou-se como um deles. Como Nabucodonosor, sua porção em seu estado natural é com os animais, “que só pensam nas coisas terrenas” (Filipenses 3:19). Não, os brutos, em algum modo, possuem alguma vantagem sobre o homem natural, que está afundado um grau abaixo do deles. Ele é mais negligente do que lhe diz respeito, mais do que a cegonha, ou a tartaruga, ou o grou, ou a andorinha, no que é de seu interesse (Jeremias 8:7). Ele é mais tolo do que o boi ou jumento (Isaías 1:3). Ele é encontrado sendo enviado à escola da formiga, que não tem nenhum chefe ou líder para ir antes dela; nem superintendente ou dominador para obriga-la ou pressioná-la para o trabalho; nenhum governante, mas ela pode fazer o que enumera, não estando sob o domínio de ninguém; e ainda assim “prepara no verão o seu pão; na sega ajunta o seu mantimento” (Provérbios 6:6-8); enquanto o homem natural tem tudo isso, e ainda se expõe à fome eterna. Não, mais do que tudo isso, as Escrituras sustentam o homem natural, não só como carecendo das boas qualidades dessas criaturas, mas como um composto das más qualidades da pior das criaturas tais como: a ferocidade do leão, o ofício da raposa, a ignorância do jumento selvagem, a imundície do cão e do porco e o veneno da víbora. A própria Verdade os chama de “serpentes, raça de víboras!”; sim, e mais, até mesmo de filhos do diabo (Mateus 23:33; João 8:44). Certamente, então, a natureza do homem é miseravelmente corrompida.

 

Somos “por natureza filhos da ira” (Efésios 2:3). Somos dignos e susceptíveis da ira de Deus; e isto naturalmente, porquanto sem dúvida somos, por natureza, criaturas pecadoras. Estamos condenados antes mesmo de termos feito o bem ou o mal; sob a maldição, antes de sabermos o que ela é. Entretanto, “rugirá o leão no bosque, sem que tenha presa?” (Amós 3:4); ou seja, rugirá o Deus santo e justo, em Sua ira contra o homem, se este não tiver, por seu pecado, se tornado uma presa para a Sua ira? Não, Ele não o fará; Ele não pode. Isso nos leva a concluir, então, que, de acordo com a Palavra de Deus, a natureza do homem é corrupta.

 

Se consultarmos a experiência, e observarmos o caso do mundo, nas coisas que são óbvias para qualquer pessoa que não fechará os olhos contra a luz clara, perceberemos rapidamente tais frutos, bem como descobriremos esta raiz de amargura. Vou propor algumas coisas que podem servir para convencer-nos deste ponto.

 

Quem não vê uma enxurrada de misérias transbordando do mundo? Para onde um homem pode ir de maneira que não molhe seu pé, se, antes esta enxurrada passa a cobrir até mesmo sua cabeça e orelhas? Todos em casa e na rua, na cidade e no campo, em palácios e casas de campo, estão gemendo sob alguma uma coisa ou outra que lhes desagrada. Alguns são oprimidos pela pobreza, alguns castigados com doenças e dores, alguns estão lamentando por suas perdas, cada um tem uma cruz de um tipo ou de outro. A condição de nenhum homem é tão tranquila, antes há sempre algum espinho de mal-estar nela. Com a morte vem o salário do pecado e depois desses seus arautos, e varrem tudo. Agora, não foi o pecado que abriu as comportas da tristeza? Não é uma queixa, um suspiro ouvido no mundo, uma lágrima que cai de nossos olhos uma evidência de que o homem caiu como uma estrela do céu; pois “Deus na sua ira lhes reparte dores!” (Jó 21:17). Esta é uma prova clara da corrupção da natureza; pois aqueles que embora ainda não tenham realmente cometido pecado, têm sua parcela dessas tristezas; sim, e a sua primeira respiração no mundo é acompanhada de choro, como se soubessem de pronto que este mundo é um Boquim, o lugar das carpideiras. Há sepulturas pequenas e grandes no adro da igreja; nunca faltou alguém no mundo, que esteja, como Raquel, chorando por seus filhos, porque eles já não existem (Mateus 2:18).

 

Observe quão cedo esta corrupção da natureza começa a aparecer nos jovens. Salomão observa que “até a criança se dará a conhecer pelas suas ações, se a sua obra é pura e reta” (Provérbios 20:11). Isso pode em breve ser discernido pela inclinação que se encontra no coração. Os filhos do caído Adão não seguem os passos de seu pai antes mesmo que possam andar por conta própria? Não é grande a quantidade de orgulho, ambição, curiosidade pecaminosa, vaidade, teimosia e aversão ao bem que aparece neles? E quando eles saem da infância, há uma necessidade de usar a vara da correção, para afastar a loucura que está ligada aos seus corações (Provérbios 22:15), o que mostra que, se a graça não prevalecer, a criança será como Ismael: “homem feroz” (Gênesis 16:12).

 

Observe o surgimento grosseiro das múltiplas formas de pecado no mundo, a maldade do homem está ainda maior na terra. Eis os frutos amargos da corrupção de nossa natureza: “Só permanecem o perjurar, o mentir, o matar, o furtar e o adulterar; fazem violência, um ato sanguinário segue imediatamente a outro” (Oséias 4:2). O mundo está cheio de imundícia e de toda sorte de perversidade, maldade e palavrões. De onde vem o dilúvio do pecado sobre a terra, senão desde o rompimento das fontes do grande abismo, o coração do homem? dos quais procedem os maus pensamentos, os adultérios, as prostituições, os homicídios, os furtos, a avareza etc. (Marcos 7:21,22). Pode ser que você dê graças a Deus com todo o coração, pelo fato de pensar que você não é como esses outros homens; e deveras, você tem mais razões para isso do que, eu temo, você é consciente, pois “como na água o rosto corresponde ao rosto, assim o coração do homem ao homem” (Provérbios 27:19). Assim como ao olhar para a água clara, você vê o seu próprio rosto, olhando para o seu coração, você pode ver o dos outros homens ali; e, olhando para outros homens, neles você pode ver a si próprio. Pois os desgraçados mais vis e profanos que estão no mundo, devem servir-lhe como um espelho, no qual você deve discernir a corrupção de sua própria natureza, e se você fizesse isso, seu coração realmente seria tocado e você daria graças a Deus e não a si mesmo, pelo fato de você não ser como os outros homens em suas vidas; visto que a corrupção natural é a mesma em você assim como neles.

 

Lança o teu olho sobre aquelas terríveis convulsões nas quais o mundo está entregue pelas concupiscências dos homens! Leões não são presas de leões, nem lobos matam lobos, mas os homens são transformados em leões e lobos para seus semelhantes, assassinos devorando-se uns aos outros. Quão rápidos os homens são para desembainharem suas espadas uns contra os outros! O mundo é um deserto, onde o fogo mais claro que os homens podem trazer com eles não afugentará os animais selvagens que o habitam (e isto, porque são homens e não animais selvagens); antes de uma forma ou outra eles serão feridos. Desde que Caim derramou o sangue de Abel, a terra foi transformada em um matadouro; e a perseguição continuou desde que Ninrode começou sua caça; tanto sobre a terra como no mar, o maior ainda devora o menor. Quando vemos o mundo com uma tal efervescência, cada um atacando o outro com palavras ou espadas, podemos concluir que há um espírito maligno entre eles. Esta violência ardente entre filhos de Adão mostra que todo o corpo está corrompido, toda a cabeça está doente, e todo o coração está fraco. Estes certamente procedem de uma causa interior, “a saber, dos vossos deleites, que nos vossos membros guerreiam?” (Tiago 4:1).

 

Considere a necessidade de leis humanas, resguardada por terrores e gravidade; para que possamos aplicar o que diz o apóstolo: “a lei não é feita para o justo, mas para os injustos e obstinados, para os ímpios e pecadores, para os profanos e irreligiosos, para os parricidas e matricidas, para os homicidas” (1 Timóteo 1:9). O homem foi feito para a sociedade; e o próprio Deus disse sobre o primeiro homem, quando Ele o havia criado, que “não é bom que o homem esteja só” [Gênesis 2:18]; no entanto, o caso é de tal ordem que, agora, na sociedade ele deve ser coberto com espinhos. E a partir daí podemos ver melhor a corrupção da natureza do homem, consideremos: (1) Todo homem naturalmente gosta de estar em plena liberdade para agir segundo o que bem lhe parece; de ter sua própria vontade e sua própria lei e, se fosse para seguir as suas inclinações naturais, ele iria colocar-se fora do alcance de todas as leis, quer Divinas quer humanas. Por isso em alguns, o poder de cujas mãos têm respondido à sua inclinação natural, têm, de fato, feito a si mesmos soberanos e acima das lei; conformemente ao intento inicial e monstruoso dos homens, a saber, serem como deuses (Gênesis 3:5). (2) Não há um homem que estivesse disposto a aventurar-se viver em uma sociedade sem lei: portanto, até mesmo os piratas e ladrões têm leis entre si, apesar de toda a sociedade desrespeitar a lei e o direito. Assim, os homens se descobrem como tendo consciência da corrupção natural; não se atrevendo a confiar uns nos outros, senão quando estão assegurados. (3) Muito embora seja perigoso romper a sebe, ainda assim a violência das concupiscências faz com que muitos se aventurem diariamente a correr riscos. Eles não somente vão sacrificar seu crédito e sua consciência, o qual a última é desprezada no mundo, por um prazer de alguns momentos que são imediatamente sucedidos por terrores interiores, como eles vão expor-se a uma morte violenta pelas leis do país no qual vivem. (4) As leis são muitas vezes feitas para ceder à concupiscência dos homens. Às vezes, sociedades inteiras incorrem em tais extravagâncias, como um bando de prisioneiros, eles se desfazem de seus grilhões, e lançam fora seus grilhões; e assim a voz das leis não pode ser ouvida por causa do barulho das armas. E raramente há um tempo, no qual não há algumas pessoas tão grandes e ousadas, que as leis não se atrevem a encarar seus desejos na face; por isso Davi disse a Joabe que havia assassinado Abner: “Estes homens, filhos de Zeruia, são mais duros do que eu” (2 Samuel 3:39). As concupiscências, por vezes, tornam-se muito fortes para as leis, pelo que a lei torna-se frouxa, como o pulso de um moribundo (Habacuque 1:3-4). (5) Considere que muitas vezes surge a necessidade de alterar leis antigas, e fazer novas, por causa do surgimento de novos crimes, para os quais a natureza do homem é muito frutífera. Não haveria necessidade de concertar a sebe, se os homens não estivessem, como bestas incontroláveis, sempre quebrando-as. É atordoante ver o que os israelitas, que foram separados para Deus dentre todas as nações da terra, fizeram de sua história; confusões horríveis estavam entre eles, quando não havia rei em Israel, como você pode ver a partir do décimo oitavo ao vigésimo primeiro capítulo de Juízes: o quão difícil era reformá-los, mesmo quando eles tinham o melhor dos magistrados! E a rapidez com que se desviavam de novo, quando os governantes maus assumiam o poder! Não posso deixar de pensar, que um grande projeto da história sagrada, era descortinar a corrupção da natureza do homem e a necessidade absoluta do Messias e de Sua graça; e que devemos, ao lê-la, nos aprimorar para este fim. Quão cortante é a palavra que o Senhor deu para Samuel, sobre Saul: “Eis aqui o homem de quem eu te falei. Este dominará [ou, como a palavra é, restringirá] sobre o meu povo” (1 Samuel 9:17). Oh! A corrupção da natureza do homem! O temor e o pavor do Deus do céu não os restringem; antes eles devem ter deuses na terra para fazer isso, “para leva-los à vergonha” (Juízes 18:7).

 

Considere os remanescentes da corrupção natural nos santos. Apesar da graça ter sido infundida, ainda assim a corrupção não é totalmente expulsa; ainda que haja uma nova criatura, contudo grande parte da velha natureza corrupta permanece; e estas lutam entre si dentro deles, como os gêmeos no ventre de Rebeca (Gálatas 5:17). Eles encontram isto presente com eles em todos os momentos e em todos os lugares, mesmo nos lugares mais recônditos. Se um homem tem um vizinho problemático ele pode mudar-se; se ele tem um servo doente, ele pode afasta-lo até que melhore; se ele possui uma má companhia, ele pode, por vezes, sair de casa, e estar livre de ser incomodado por ela, mas se o santo for para um deserto, ou montar a sua tenda em alguma rocha remota no mar, onde jamais pisou homem, nem besta ou ave houvesse tocado, ali a sua corrupção natural estaria com ele. Ele poderia ser como Paulo, arrebatado ao terceiro céu, e ainda assim ele voltaria com ela (2 Coríntios 12:7). A corrupção natural lhe segue como a sombra faz com o corpo; faz uma mancha na linha mais fina que se possa desenhar. É como a figueira na parede, que, embora, tenha sido bem cortada, ainda assim cresceu, até que o muro foi derrubado, assim, pois as raízes da corrupção natural estão fixadas no coração, enquanto o santo está no mundo, como raízes de ferro e bronze. É especialmente ativa quando ele deseja fazer o bem (Romanos 7:21), então as aves descem sobre os cadáveres. Por isso, muitas vezes, nos deveres sagrados, o espírito de um santo, por assim dizer, se evapora; e ele os deixa antes que ele esteja ciente, como Mical, com uma imagem na cama em vez de um marido. Eu não preciso permanecer por mais tempo neste assunto para provar aos piedosos a corrupção natural que neles há, pois eles sofrem com ele; e tentar provar isto a eles é como tomar uma vela e ir mostra-la ao sol, assim como para os ímpios, eles estão prontos a atribuir pilhas de defeitos aos santos tão grandes como montanhas, se não considerar a todos como hipócritas. Mas considere estas poucas coisas sobre este assunto: “Se ao madeiro verde fizeram isto, que se fará ao seco?” [Lucas 23:31]. Os santos não nascem santos, mas são feitos assim pelo poder da graça regeneradora. (1) Eles têm uma nova natureza, e ainda a velha permanece neles? Quão grande deve ser a corrupção nos outros, em quem não há graça! (2) Os santos gemem sob isso, como que sob um fardo pesado. Ouça o apóstolo: “Miserável homem que eu sou! Quem me livrará do corpo desta morte?” (Romanos 7:24). Porque o homem carnal vive sossegado e tranquilo, e a corrupção natural não é o seu fardo, ele está, portanto, livre dela? Não, não; é porque ele está morto que ele não sente o seu peso lhe pressionando para baixo. Muitos gemidos são ouvidos da cama de um enfermo, mas jamais algum foi ouvido de uma sepultura. No santo, como no homem doente, há uma grande luta; a vida e a morte lutando pelo domínio, mas no homem natural, como no cadáver, não há um só ruído, porque a morte tem pleno domínio. (3) O homem de Deus resiste à sua velha natureza corrupta; ele se esforça para mortificá-la, no entanto, ela permanece; ele esforça-se por matá-la de fome, e por estes meios enfraquece-la, ainda assim, ela está ativa. Como deve se espalhar, então, e se fortalecer naquela alma, onde não passa fome, mas antes é alimentada! E este é o caso de todos os não-regenerados, que “cuidam da carne em suas concupiscências” [Romanos 13:14]. Se o jardim do diligente aguarda um novo dia de trabalho para poda e limpeza, com certeza o jardim do preguiçoso deve necessariamente estar “todo cheio de cardos” [Provérbios 24:31].

 

Acrescentarei apenas mais uma observação, e esta é que, em cada homem, naturalmente, a imagem de Adão caído se manifesta. Algumas crianças, pelas características e traços de seu rosto, são por assim dizer, como seus pais: e, assim, nos assemelhamos aos nossos primeiros pais. Cada um de nós carrega a imagem e impressão da queda sobre si, e para evidenciar a verdade sobre isso, eu faço um apelo às consciências de todos, nestas seguintes particularidades:

 

Não é a curiosidade pecaminosa natural para nós? E isso não é uma cópia da imagem de Adão (Gênesis 3:6). Não é o homem, naturalmente, muito mais ávido para saber coisas novas, do que para praticar as antigas verdades já conhecidas? Como o velho Adão, nós não andamos nesta ânsia por novidades, e perdemos o gosto pelas sólidas doutrinas antigas? Nós buscamos o conhecimento mais do que a santidade, e estudamos mais para conhecer aquelas coisas que são menos edificantes. Nossas fantasias selvagens e errantes precisam de um freio para contê-las, ao mesmo tempo em que os afetos bons e sólidos precisam ser vivificados e estimulados.

 

Se o Senhor, por Sua santa lei e sábia providência, coloca uma restrição sobre nós, para nos resguardar de qualquer coisa, a restrição não nos afia o gume de nossas inclinações naturais, e nos faz mais ávidos em nossos desejos? E nisto não somos claramente denunciados, pela verdade de que somos filhos de Adão? (Genesis 3:2-6). Eu acho que isso não pode ser negado, pois a observação diária evidencia que este princípio natural, que, “as águas roubadas são doces, e o pão tomado às escondidas é agradável” (Provérbios 9:17). Os próprios pagãos estavam convencidos de que o homem estava possuído com este espírito de contradição, embora eles não conhecessem a raiz dele. Quantas vezes os homens se perderam naquelas coisas, das quais havendo Deus lhes posto em liberdade, eles desejaram tê-las ligadas a si mesmos! Mas a natureza corrupta tem prazer no próprio ato de saltar por cima da cerca. E não é uma repetição da loucura do nosso pai, o fato dos homens desejarem mais o fruto proibido, do que sacudir a árvore da boa providência para eles, embora eles tenham permissão expressa de Deus para isto?

 

Qual de todos os filhos de Adão não é, naturalmente, mais disposto a ouvir a instrução que causa o erro? E não foi essa a pedra sobre a qual nossos primeiros pais se espatifaram (Gênesis 3:4-6)? Quão apto é o homem fraco, desde aquela época, para negociar com as tentações! “Antes Deus fala uma e duas vezes; porém ninguém atenta para isso” (Jó 33:14), mas ele prontamente ouve a Satanás. Os homens podem, muitas vezes parecer justos exteriormente, como se pudessem desprezar as tentações com horror, quando elas primeiramente aparecem; se eles pudessem esmaga-las no broto, eles logo as dissipariam, mas, ai de mim! Ainda que víssemos um trem em chamas vindo em nossa direção permaneceríamos inertes até que ele visse e nos esmagasse com a sua força.

 

Os olhos de nossas mentes não estão muitas vezes como que cegos? E não era esse o caso de nossos primeiros pais (Gênesis 3:6)? O homem nunca é mais cego do que quando ele está olhando sobre os objetos que lhe são mais agradáveis ??ao sentido. Uma vez que os olhos dos nossos primeiros pais foram abertos para o fruto proibido, os olhos dos homens se tornaram as portas para a destruição de suas almas; pelos quais imaginações impuras e desejos pecaminosos entraram no coração, ferindo a alma, prejudicando a consciência e trazendo efeitos funestos, por vezes, a sociedades inteiras, como no caso de Acã (Josué 7:21). O santo Jó estava ciente do perigo destes dois pequenos corpos redondos, que podem ser arruinados por uma pequena lasca de madeira; de modo que, assim como o rei que não ousou, com seus dez mil, sair àquele que vinha contra ele com vinte mil (Lucas 14:31-32), e mandou pedir condições de paz, assim Jó diz: “Fiz aliança com os meus olhos” (Jó 31:1).

 

Não é natural para nós cuidarmos do corpo, mesmo em detrimento da alma? Este foi um ingrediente no pecado de nossos primeiros pais (Gênesis 3:6). Quão felizes poderíamos ser se tivéssemos metade das dores de nossos corpos sobre as nossas almas! Se essa pergunta: “Senhores, que é necessário que eu faça para me salvar?” (Atos 16:30), apenas passasse tão frequentemente em nossas mentes quanto esta: “Que comeremos, ou que beberemos, ou com que nos vestiremos?” (Mateus 6:31), então, em muitos casos o pedido se tornaria esperançoso. Mas a verdade é que a maioria dos homens vive como se fosse nada mais do que um pedaço de carne; ou como se a sua alma não servisse para nenhum outro uso, senão atuar como sal para guardar seu corpo da corrupção. “Eles são carne” (João 3:6); Eles “são segundo a carne e inclinam-se para as coisas da carne” (Romanos 8:5); “e vivem segundo a carne” (v. 13). Se a carne obtiver consentimento para agir, o consentimento da consciência raramente é esperado, por isso o corpo é muitas vezes servido mesmo quando a consciência entra em protesto contra ele.

 

Não está cada um, por natureza, descontente com a sua presente sorte no mundo, ou com alguma coisa ou outra nele? Este também foi o caso de Adão (Gênesis 3:5-6). Alguns estão sempre querendo alguma coisa; pois o homem é uma criatura dada às mudanças. Se alguma dúvida os permite olhar para todos os seus prazeres; e, após uma averiguação sobre eles, ouvem os seus próprios corações, eles ouvirão um murmúrio secreto sobre a falta de alguma coisa; embora, talvez, se o assunto fosse considerado corretamente, veriam que é melhor para eles carecerem do que terem aquela coisa. Desde que no coração de nossos primeiros pais voou por meio de seus olhos em direção ao fruto proibido, uma noite de escuridão foi assim trazida para o mundo, os seus descendentes têm uma doença natural que Salomão chama de, “vaguear da cobiça”, ou, como a palavra é: “o passeio da alma” (Eclesiastes 6:9). Esta é uma espécie de transe diabólico, no qual a alma percorre o mundo; alimenta-se com mil novas futilidades; arrebata a sua e as outras excelências criadas em sua imaginação e desejo; vai aqui e ali, e em todos os lugares, exceto onde ela deveria ir. E a alma nunca se cura desta doença, até a graça conquistadora a traga de volta ao seu descanso eterno em Deus por meio de Cristo. Entretanto até que isso aconteça, se o homem fosse criado novamente no paraíso, o jardim do Senhor, todos os prazeres de lá não o impediriam de cobiças, sim, e ele saltaria sobre a sebe uma segunda vez.

 

Não somos muito mais facilmente impressionados e influenciados por maus conselhos e exemplos, do que por aqueles que são bons!? Veja que está foi a ruína de Adão (Gênesis 3:6). O mau exemplo, até hoje, é um dos principais ardis de Satanás para arruinar os homens. Embora tenhamos, por natureza, mais a ver com a raposa do que com o cordeiro; ainda assim, aquela péssima característica desta criatura pode ser observada em alguns, a saber, que se um cordeiro pular na água, os outros que estiverem próximos logo o seguem, tal característica pode ser observada também na disposição dos filhos dos homens; aos quais é muito natural aderirem a um mau caminho, porque veem os outros andando nele. Um exemplo frequentemente possui a força de uma correnteza violenta, para levar-nos para longe do dever claro, mas especialmente se o exemplo for dado por aqueles por quem temos uma grande afeição; neste caso a nossa afeição cega nosso julgamento; e o que devemos abominar em outros, é consentido com bom humor neles. Nada é mais claro do que o fato de que os homens geralmente escolhem fazer o que a maioria faz, em vez de fazer aquilo que deve ser feito.

 

Quem de todos os filhos de Adão precisa ser ensinado na arte de coser folhas de figueira, para cobrir sua nudez (Gênesis 3:7)? Quando nós nos arruinamos, e nos tornamos nus para nossa vergonha, nós naturalmente procuramos ajudar a nós mesmos: mui fracos artifícios são empregados, tão tolos e insignificantes quanto as folhas de figueira de Adão. Que dores os homens não experimentaram para cobrir seu pecado de sua própria consciência, e desenhar sobre ela todas as cores justas que podem! E quando uma vez as convicções são estabelecidas sobre eles, para que eles não consigam deixar de ver a sua nudez, é muito natural para eles que tentem encobri-la por autoengano, tão naturalmente quanto os peixes nadam na água ou pássaros voam no ar. Portanto, a primeira questão do convencido é: “Que faremos?” (Atos 2:37). Como vamos nos qualificar? O que devemos realizar? Não considerando que a nova criatura é a própria obra de Deus (Efésios 2:10), mais do que Adão ponderamos e pensamos em sermos vestidos com peles de sacrifícios (Gênesis 3:21).

 

Os filhos de Adão não seguem naturalmente os seus passos em esconder-se da presença do Senhor? (Gênesis 3:8). Somos tão cegos nesta matéria quanto ele foi quando pensou em esconder-se da presença de Deus, entre as árvores frondosas do jardim. Estamos muito provavelmente nos prometendo mais segurança em um pecado secreto, do que em um que esteja abertamente exposto. “Assim como o olho do adúltero aguarda o crepúsculo, dizendo: Não me verá olho nenhum” (Jó 24:15). Os homens vão livremente fazer em segredo aquilo que teriam vergonha de fazer na presença de uma criança; como se a escuridão pudesse escondê-los do Deus que tudo vê. Não somos naturalmente descuidados da comunhão com Deus; sim, e até mesmo avessos a ela? Nunca houve qualquer comunhão entre Deus e os filhos de Adão, onde o próprio Senhor não teve a primeira palavra. Se Ele os deixasse em paz estes nunca O buscariam; “escondi-me” (Isaías 57:17). Será que ele buscaria a Deus escondendo-se? Muito longe disso: “seguiu o caminho do seu coração”.

 

Quão relutantes os homens são para confessar o pecado e para tomar a culpa e a vergonha sobre si mesmos? Não foi assim no caso diante nós? (Gênesis 3:10). Adão confessa a sua nudez, pois não poderia ser negada; mas não diz uma palavra a respeito de seu pecado; a razão disso era que ele de bom grado teria escondido, se pudesse. É tão natural para nós escondermos o pecado quanto o cometermos. Muitos exemplos tristes disto temos neste mundo, mas uma prova muito mais clara disto será no dia do Julgamento, o dia em que “Deus há de julgar os segredos dos homens” (Romanos 2:16). Muitas bocas sujas, serão então vistas, embora agora estes “limpem a sua boca e digam: Não fizemos nada de mal!” (Provérbios 30:20).

 

Não é natural para nós atenuarmos o nosso pecado e transferirmos a nossa culpa para outros? Quando Deus examinou nossos primeiros pais culpados, Adão não colocou a culpa na mulher? E a mulher não colocou a culpa sobre a serpente? (Gênesis 3:12-13). Agora os filhos de Adão não precisam ser ensinados nesta política infernal; pois antes que possam falar bem, se eles não podem negar o fato, eles engenhosamente dirão alguma coisa para diminuir a culpa deles, e colocar a culpa sobre outro. Não, tão natural isto é para os homens, que nos maiores pecados, eles colocarão a culpa sobre o próprio Deus; eles blasfemarão de Sua santa providência sob o nome equivocado de infortúnio ou duro golpe, e, assim, colocarão a culpa de seu pecado à porta do céu. E não foi este um dos truques de Adão depois de sua queda? “Então disse Adão: A mulher que me deste por companheira, ela me deu da árvore, e comi” (Gênesis 3:12). Observe a ordem do discurso. Ele faz o seu pedido de desculpas, em primeiro lugar, e em seguida, vem a confissão: o seu pedido de desculpas é longo, mas a sua confissão muito curta; tudo é compreendido em uma palavra: “e comi”. Quão enfático e distinto é seu pedido de desculpas, como se ele estivesse temeroso de dizer que ele havia sido enganado! “A mulher”, diz ele, ou “aquela mulher”, como se ele tivesse apontado para o Juiz de suas próprias obras, das quais lemos (Gênesis 2:22). Havia, então, apenas uma mulher no mundo, de modo que se poderia pensar que ele não precisava ter sido tão refinado e exato em apontar para ela; mas “ela” é tão cuidadosamente acentuada em sua defesa, como se houvesse dez mil: “A mulher que me deste”. Aqui ele fala, como se ele tivesse sido arruinado pelo dom de Deus. E, para fazer o dom mais sombrio, ele é adicionou: “me deste por companheira”, como minha companheira constante, para ficar ao meu lado como uma auxiliadora. Isso parece como se Adão tivesse insinuado um mau desígnio sobre Senhor, dando-lhe esta dádiva. E, afinal, há uma nova demonstração aqui, antes que a sentença seja completada; ele não diz: “A mulher me deu”, mas “a mulher, ela me deu”, enfaticamente; como se ele se referisse diretamente a ela, ela mesma, me deu da árvore. Isto é muito para seu pedido de desculpas. Mas sua confissão é rapidamente feita em uma palavra, quando ele falou isso: “e comi”. Não há nada aqui a apontar para si mesmo e tão pouco para mostrar que ele tinha comido. Quão natural é esta arte negra para a posteridade de Adão! Aquele que corre pode lê-lo. Então, universalmente a observação de Salomão se mantém verdadeiras: “A estultícia do homem perverterá o seu caminho, e o seu coração se irará contra o Senhor” (Provérbios 19:3). Vamos, então, chamar o caído Adão de nosso pai; não neguemos a nossa relação, posto que trazemos conosco a sua imagem.

 

Para encerrar este ponto, suficientemente confirmado por concordância da evidência da Palavra do Senhor, e da nossa própria experiência e observação; sejamos convencidos a acreditar na doutrina da corrupção de nossa natureza; e olhemos para o segundo Adão, o bendito Jesus, para a aplicação de Seu precioso sangue, para remover a culpa do nosso pecado; e para a eficácia do Seu Espírito Santo, para nos fazer novas criaturas; sabendo que “aquele que não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus” [João 3:3].