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Na Casa do Oleiro, por A. W. Pink

“A palavra do SENHOR, que veio a Jeremias, dizendo: Levanta-te, e desce à casa do oleiro, e lá te farei ouvir as minhas palavras. E desci à casa do oleiro, e eis que ele estava fazendo a sua obra sobre as rodas, como o vaso, que ele fazia de barro, quebrou-se na mão do oleiro, tornou a fazer dele outro vaso, conforme o que pareceu bem aos olhos do oleiro fazer.” (Jeremias 18:1-4)

 

Esta é uma passagem que tem apresentado dificuldade para muitos, ou, provavelmente, seria mais correto dizer que (na maioria dos casos, pelo menos) se tem encontrado dificuldade para apresentá-la. Inimigos da verdade têm gravemente “arrancado” estes versos e até mesmo as interpretações de seus amigos nem sempre conseguiram retirar as brumas que obscurecem as mentes daqueles que são influenciados pelo erro. Devido a isso e também por esperarmos escrever adiante sobre mais algumas porções neste capítulo, um comentário ou dois em seus versos de abertura são necessários.

 

Arminianos têm apelado para esta passagem em apoio da sua doutrina horrível e desonradora a Deus, de que o Criador pode ser frustrado pela criatura, que o fraco homem é capaz de reduzir a nada os desígnios do Altíssimo. Se uma calamidade tão terrível fosse possível, então, para ser coerente, eles devem realizar tal premissa à sua conclusão lógica, e confessar:

 

“O universo, Ele, de bom grado salvaria,

Mas anseia por aquilo que Ele não pode ter!

Nós, portanto, adoramos, louvamos e bendizemos,

A um Deus impotente e frustrado!”

 

Tal caricatura blasfema da Divindade é repugnante e repelente até o último grau a todo coração renovado, ainda isto encontra mais ou menos aceitação hoje em dia nos autodenominados círculos “cristãos”. Os nativos da tenebrosa África fabricam ídolos com suas mãos, mas as nações da Cristandade moldam um “deus” extraído de suas mentes cegadas por Satanás.

 

Um Deus desapontado e derrotado! que conceito! que contradição! Como Ele pode ser o grande Ser Supremo se o homem é capaz de colocá-lO em xeque? Como ele pode ser o todo-poderoso se Lhe falta de capacidade para realizar a Sua vontade? Quem iria prestar homenagem Àquele que está frustrado por Suas criaturas? Quão mui diferente é o Deus da Sagrada Escritura, que tem apenas que falar e isto é feito, quem manda e isto permanece firme (Salmo 33:9)!

 

Jeová não é um monarca de papelão. Não, “mas o nosso Deus está nos céus; fez tudo o que lhe agradou” (Salmo 115:3). “Tudo o que o Senhor quis, fez, nos céus e na terra, nos mares e em todos os abismos” (Salmo 135:6). “Este é o propósito que foi determinado sobre toda a terra; e esta é a mão que está estendida sobre todas as nações. Porque o Senhor dos Exércitos o determinou; quem o invalidará? E a sua mão está estendida; quem pois a fará voltar atrás?” (Isaías 14:26-27). “Lembrai-vos das coisas passadas desde a antiguidade; que eu sou Deus, e não há outro Deus, não há outro semelhante a mim. Que anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade” (Isaías 46:9-10).

 

Mas não há outras passagens que falam de Deus em quase outra estirpe? Suponha que tal seja o caso, então o que aconteceria? Isto nos obriga a modificar nossa concepção do caráter absoluto da supremacia de Deus como predicado nos versos citados acima? Certamente que não. As Sagradas Escrituras não são um “nariz de cera” (como papistas têm perversamente afirmado) que o homem pode torcer o que lhe agrada. Elas são a Palavra inspirada de Deus, sem falha ou contradição; embora precisemos da sabedoria do Espírito Santo, se as quisermos interpretar corretamente. “Deus é Espírito” (João 4:24), incorpóreo, e, portanto, “invisível” (Colossenses 1:15), “a quem nenhum dos homens viu nem pode ver” (1 Timóteo 6:16). Devemos, em verdade, modificar esta representação do Seu Ser inefável porque lemos sobre os Seus “olhos” (2 Crônicas 16:9), Suas “mãos” (Salmos 95:5) e “pés” (Êxodo 24:10)? “Eis que não tosquenejará nem dormirá o guarda de Israel” (Salmo 121:4); isto é negado pela afirmação: “Então o Senhor despertou, como quem acaba de dormir” (Salmo 78:65), ou porque Ele representa a Si mesmo como “madrugando” (Jeremias 7:13)?

 

Quando a Escritura afirma que o domínio de Deus “é um domínio sempiterno, e cujo reino é de geração em geração. E todos os moradores da terra são reputados em nada, e segundo a sua vontade ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem possa estorvar a sua mão, e lhe diga: Que fazes?” (Daniel 4:34-35), somos obrigados a colocar limitações sobre tal supremacia, quando o ouvimos dizer em outro lugar: “Entretanto, porque eu clamei e recusastes; e estendi a minha mão e não houve quem desse atenção, antes rejeitastes todo o meu conselho, e não quisestes a minha repreensão” (Provérbios 1:24-25)? Claro que não.

 

Então, como evitaremos tal expediente? Ao distinguir entre coisas que diferem, discriminemos entre a vontade secreta de Deus e Sua vontade revelada, entre Seu decreto eterno e a Lei que Ele nos deu para andar. A última passagem fala de homens desprezando a Palavra de Deus, que é sua responsabilidade obedecer. A primeira passagem afirma a supremacia soberana de Deus sobre todos, cujo propósito eterno é realizado nos e pelos homens, não por causa da sua vontade complacente, mas, apesar de sua inimizade e rebeldia, como foi o caso de Faraó.

 

Acomode isto em sua mente de uma vez por todas, meu leitor, que o Deus vivo e verdadeiro é o Rei dos reis e Senhor dos senhores, o todo-poderoso, a quem nem homem nem Diabo podem derrotar ou resistir, pois tal é o claro e positivo ensinamento de Sua Palavra. As igrejas já não podem proclamar um Deus assim. A grande maioria daqueles que ainda se colocam como Seu povo não podem mais acreditar em tal Ser, mas isso não altera o fato de que Ele é assim: “sempre seja Deus verdadeiro, e todo o homem mentiroso” (Romanos 3:4).

 

Acomode isto em sua mente: a Sagrada Escritura não pode contradizer a si mesma, e, portanto, se os significados de algumas passagens não são claros para você, humildemente olhe para o seu Autor para iluminá-lo, pois a obscuridade está em sua mente e não na Palavra de Deus.

 

Quando Cristo afirmou: “Eu e o Pai somos um” (João 10:30), Ele falou de acordo com a Sua Divindade absoluta. Mas quando Ele declarou: “Meu Pai é maior do que eu” (João 14:28), Ele falou como o Deus-homem Mediador. O perfeito acordo destas duas passagens é evidente quando percebemos a dupla relação de Cristo com o Pai: como Filho e como Deus-homem. Da mesma forma, devemos aprender a distinguir entre Deus falando como soberano absoluto e como o Requerente da responsabilidade humana, como Aquele que lida com homens de acordo com a sua condição.

 

Agora nos versos no início deste artigo não existe nem mesmo uma dificuldade aparente: os homens devem ler nele o que não está lá antes que eles encontrem uma pedra de tropeço. O Senhor não afirma ali que Ele é representado pelo “oleiro” (vv. 5-10 são considerados a seguir), e se supusermos que Ele é, então seremos justamente confundidos. Jeremias foi enviado para a “casa do oleiro” na qual pôde receber as instruções a partir do que ele viu. Lá, ele testemunhou um vaso de barro “quebrado” na mão do oleiro. Em verdade disto não se pode imaginar a queda do homem, pois Seu Criador pronunciou “muito bom”, quando ele deixou Suas mãos. Também não se pode imaginar a experiência de alguém depois da Queda, porque a mão de Deus é o lugar de segurança e não de dano. Além disso, é-nos dito deste oleiro “fez (do vaso quebrado) outro vaso”, mas Deus nunca conserta o que o homem arruinou, antes faz disto algo completamente novo: o antigo pacto foi abolido pelo Novo (Hebreus 8:8), a velha criação pela nova (2 Coríntios 5:17), o presente céu e a terra por outros novos (Isaías 65:17). Preferivelmente é “conforme o que pareceu bem aos olhos do oleiro fazer” à particular similaridade fixada (v. 6).

 

“Então veio a mim a palavra do Senhor, dizendo: Não poderei eu fazer de vós como fez este oleiro, ó casa de Israel? diz o Senhor. Eis que, como o barro na mão do oleiro, assim sois vós na minha mão, ó casa de Israel. No momento em que falar contra uma nação, e contra um reino para arrancar, e para derrubar, e para destruir, se a tal nação, porém, contra a qual falar se converter da sua maldade, também eu me arrependerei do mal que pensava fazer-lhe. No momento em que falar de uma nação e de um reino, para edificar e para plantar, se fizer o mal diante dos meus olhos, não dando ouvidos à minha voz, então me arrependerei do bem que tinha falado que lhe faria” (Jeremias 18:5-10).

 

Uma leitura superficial desses versos pode sugerir que eles contêm o que apoiam a concepção de Deus do Arminiano, porém uma ponderação mais cuidadosa deve mostrar que não há nada neles que milita contra a “imutabilidade do seu conselho” (Hebreus 6:17). O Senhor não diz aqui a Israel: “vocês quebraram-se na Minha mão, vocês frustraram Meu propósito para convosco”, nem Ele declara: “Eu vou reparar e fazer um outro vaso de vocês” — revejam a Minha intenção e tentem novamente. Em vez disso o que Ele afirma é a Sua soberania e supremacia sobre eles: “Eis que, como o barro na mão do oleiro, assim sois vós na minha mão”, novamente, deve ser cuidadosamente observado que Deus não está aqui falando do destino espiritual e eterno de indivíduos, mas das venturas e desventuras de reinos (Jeremias 18:7) terrenos e temporais, nesta passagem o Altíssimo é visto como o Governador das nações, como o Dispensador ou Detentor de bênçãos eternas, e não como o Predestinador de Sua Igreja para a glória eterna. Deus lida com reinos em estância muito diferente do que Ele faz com Seus queridos filhos, e, a menos que isto seja claramente reconhecido estaremos sem a chave-mestra que abre dezenas de passagens.

 

O favor que o Senhor mostra a uma nação é uma coisa completamente diferente do amor que Ele dispensa aos Seus eleitos, e aquele que é cego para tal distinção é totalmente incompetente para expor a Sagrada Escritura. O favor de Deus por uma nação é apenas a distribuição externa de coisas boas, este favor é confiscado quando eles viram as costas para Ele. Mas o Seu amor pelos eleitos é um propósito eterno e imutável de graça que efetivamente opera neles, não deixando de fazer-lhes o bem e garantir a sua felicidade eterna, em consideração ao precedente. Ele pode arrancar e ceifar o que Sua providência plantou e estabeleceu, mas para os eleitos, Sua garantia é: “que aquele que em vós começou a boa obra a aperfeiçoará” (Filipenses 1:6). A princípio Ele pode retirar o que Ele tem concedido, mas por fim, “os dons e a vocação de Deus são sem arrependimento” (Romanos 11:29). As variações das dispensações Divinas com um reino não servem para argumentar qualquer inconstância em Seu caráter, antes eles são quem demonstram sua estabilidade, enquanto os caminhos do país agradá-lO Ele dá mostras de Sua aprovação. Quando o desagradar Ele evidencia sua desaprovação.

 

Deus pode agir em misericórdia com uma nação, hoje e em ira amanhã sem “sombra de variação” ou mudança de caráter, e está longe de haver qualquer alteração do Seu decreto eterno através dessas dispensações múltiplas realizadas, pois Ele predestinou tudo o que venha a acontecer. Assim, não há proporção alguma entre as flutuações de Seus dons temporais concedidos a um reino e o amor peculiar e graça especial do Pacto eterno que Deus assegura aos Seus santos de sua segurança eterna baseada em Sua imutabilidade. Os decretos de Deus, bem como a sua execução não são suspensos por nenhuma condição no homem. Se assim fosse, isto destruiria a Sua sabedoria, independência e fidelidade. Por outro lado, quando Ele declara: “aos que me honram honrarei, porém os que me desprezam serão desprezados” (1 Samuel 2:30), Deus está enunciando uma lei moral, segundo a qual Ele governa a humanidade. Seus decretos são Suas determinações irresistíveis. Suas leis revelam o dever dos homens e as questões dela de acordo com a responsabilidade deles.

 

O Senhor aprova a obediência e a justiça onde quer que seja encontrada e a recompensa com bênçãos temporais à parte da graça salvífica. Por outro lado, ele desaprova o pecado e a injustiça e, mais cedo ou mais tarde, visita os mesmos com a Sua ira neste mundo. Mas, mesmo quando as nuvens escuras de Seus juízos pairam sobre um reino, a calamidade pode ser evitada pela humilhação nacional diante de Deus e pela reforma de conduta. Mas isso não implica mais inconstância no caráter Divino do que nega Sua presciência. A história do julgamento de Deus sobre o Egito é um exemplo: cada vez que seu monarca se humilhou em qualquer medida, a vara Divina foi suspensa. No entanto, Deus havia preordenado a destruição de Faraó e arranjado Suas dispensações em grande variedade e com muitas mudanças. Ele enviou pragas e o livrou delas, enviou pragas e os livrou delas novamente, ainda assim não houve a menor alteração de Deus, todos sendo muitos efeitos de Seu poder combinados para a realização de Seu propósito inalterável.

 

Os tratamentos governamentais de Deus se fazem mais ou menos evidentes para os homens na proporção que existe entre a conduta deles e Sua atitude para com eles, a correspondência é moldada de modo a transmitir impressões de Sua bondade, justiça e misericórdia. O caráter dominante de Deus é visto como tal onde a justiça e a moralidade obtêm Sua bênção “na cesta e no celeiro”, mas onde a maldade é obstinadamente indulgente isto inevitavelmente implica numa condenação do mal. No entanto, se o pecado é abandonado esta desgraça é evitada e uma herança de prosperidade é concedida. Mas tais alterações como estas na administração Divina, estão longe de fazer de Deus ser caprichoso em Seus caminhos ou instável nos princípios de Seu governo, antes demonstram que Ele é invariavelmente o mesmo. É por que Seu procedimento é caracterizado por inabalável justiça que Ele deve mudar o Seu trato para com os homens quando sua relação ou atitude para com Ele envolve uma mudança. Consequentemente, quando é dito que Deus se “arrependeu” isso não denota nenhuma mudança em Seu propósito ou mente, mas apenas diz respeito ao seu tratamento para com os homens.

 

Jeremias 18:7-8 significa simplesmente que muitos dos juízos que Deus pronuncia contra reinos não são declarações absolutas ou previsões infalíveis do que está prestes acontecer certamente, mas sim intimações éticas de Seu sensível desagrado por causa do pecado e solenes ameaças do que deve inevitavelmente suceder se não houver mudança para melhor naqueles que foram intimados. Se os julgamentos iminentes se tornarão eventos históricos ou não, é contingente à recusa deles em atentar ao alerta. Semelhantemente Jeremias 18:9 não faz referência a nenhuma promessa absoluta de Deus: não há nenhuma declaração invalidada do que Ele certamente faria, mas sim um sinal de Sua prontidão para abençoar e prosperar, acompanhado por um aviso de que tal bênção será perdida se a obediência der lugar à desobediência. Deus nunca pretendeu em qualquer promessa de bênção nacional que esta boa promessa fosse mantida sob todas as circunstâncias. Veja Deuteronômio 28:2 e 15! Deus sempre pressiona os homens à distinção fundamental entre o pecado e a santidade. O erro fatal da nação de Israel foi considerar as promessas de Deus para ele como absolutas, supondo que o cumprimento delas foi determinado independentemente de sua degeneração.

 

Devemos, portanto, distinguir nitidamente entre os decretos de Deus e Suas denúncias, entre o Seu propósito absoluto e Suas promessas condicionais, entre Sua concessão de dons espirituais e misericórdias temporais, entre a administração do Pacto da Graça e as dispensações de Sua providência. Devemos distinguir entre a estância em que o Senhor lida com Sua Igreja e com uma nação, pois o primeiro é em Cristo e este último fora de Cristo. Houve uma diferença radical e vital entre Cristo derramando lágrimas sobre Jerusalém, porque os judeus teimosamente se recusavam a entrar nos benefícios de uma aliança temporal (Mateus 23:37) e o derramamento de Seu sangue por Seus irmãos para que eles pudessem receber as bênçãos do Aliança Eterna (Hebreus 13:20-21). Mudanças nos favores materiais de Deus em relação a uma nação não implica que o propósito eterno de graça espiritual é susceptível de alteração, mais do que a remoção de um “castiçal” de seu local (Apocalipse 2:5) argumenta que Ele pode tirar o Seu Espírito de qualquer alma regenerada. Os “serão” e “irão” da imutabilidade e fidelidade Divina nunca são postos em perigo pelos “ses” da responsabilidade humana.