Tem sido apontado em relação a todos os Mandamentos que o significado literal das palavras utilizadas em todos os casos em absoluto não esgota a implicação do propósito de Deus. O estado não pode esperar nada mais do que a obediência exterior. Mas Deus não é satisfeito com isso. Ele demanda perfeição interna antes de tudo.
Neste Décimo Mandamento Deus chama especial atenção a este fato, uma vez mais. A peculiaridade deste Mandamento não deve ser encontrada nos objetos em relação ao qual desejo é proibido. Estes objetos são abrangidos pelo Oitavo Mandamento. A peculiaridade deste mandamento deve ser mui encontrada em sua ênfase específica sobre a necessidade de perfeição interior.
Deus criou o homem internamente perfeito. Por qualquer nome que possamos buscar designar aquilo que é mais íntimo e, portanto, no comando da vida humana, esse aspecto mais íntimo da personalidade humana foi criado bom. É bom notar que o pensamento antiteísta deve negar este fato. Por isso, não pode haver bondade ética até depois que a vontade operou. Somente a operação da vontade pode produzir “natureza” ou personagem. Agora, pode-se afirmar seguramente que em tal caso nenhum caráter ou natureza jamais seria capaz de desenvolver-se na medida em que o sujeito da ação seria definido em um vácuo, que não lhe conferia nenhuma força propulsora. Cada objeto de uma ação deve ter uma “natureza”, segundo a qual ele age ou ele morrerá de fome como o burro proverbial entre duas caixas de feno, incapaz de escolher o que comer. Em suma, uma criatura sem um caráter seria nenhuma criatura; ela já seria metafisicamente desprendida de Deus, em Quem somente, ela pode viver e se mover e a ter a sua existência.
Não é inconsistente com isto dizer que a própria Bíblia reconhece o valor e a necessidade da escolha humana, a fim que o caráter seja desenvolvido. Nós consentimos com isso prontamente. O ponto é, no entanto, que se alguma coisa deve ser desenvolvida, deve estar lá desde o início. A moral não pode se desenvolver a partir da não-moral. A evolução fala muito de “forças inerentes” por que visa manter a continuidade entre a moral e a não-moral, entre o homem e o animal. Por outro lado, ela ressalta a escolha do indivíduo separada da sua natureza como a fonte da diferença entre a moral e a não-moral. Esta é uma manifestação da autocontradição na base do pensamento não-teísta. O teísmo evita esta dificuldade. Ele apenas dá à vontade do homem um significado genuíno porque somente ele dá a essa vontade um campo de operação. Seria bom para os Arminianos ortodoxos perceberem que eles estão rapidamente jogando ao lado dos antiteístas pela sua posição a meio caminho neste ponto. Não há poder mordaz contra o inimigo em uma posição que consente metade do caminho.
Dizemos, portanto, que a lei de Deus foi escrita no coração do homem na criação. Em seus desejos mais profundos, nas forças controladoras de sua personalidade, o homem foi estabelecido para operar em relação a Deus. A prioridade relativa do intelecto, da vontade e dos sentimentos não é de grande importância neste contexto. Será que o subconsciente em grande parte controla o consciente? Está bem. Você enfatizaria juntamente com a psicologia moderna a importância dos instintos? Está bem. Você enfatizaria alguma coisa mais? Está bem. Seja o que for que você considere a maior profundidade da personalidade humana, é ali onde Deus quer que você seja puro. E a menos que Ele tenha criado o homem puro exatamente nesse ponto, ou seja, a menos que Deus escrevesse a Sua lei no “coração” do homem para que ele espontaneamente cumprisse essa lei, o homem não poderia sequer começar a entender o que um mandamento moral seria. Não haveria ponto de referência moral no homem a que os Mandamentos pudessem ser endereçados. Não seria a imoralidade, mas não a não-moralidade que levaria o cachorro a rejeitar o seu sinal: Não furtarás.
O pecado estabeleceu este âmago interior da personalidade do homem em oposição a Deus. O homem tem procurado ser a fonte da lei em vez de satisfazer-se em estar sujeito à lei. Ele tem impulsionado esta questão até o ponto dele ainda não saber mais ser ele mesmo um transgressor da lei. Sem a lei (que é a lei promulgada no Sinai), não há conhecimento do pecado. O homem pensa que a carne é verdadeiramente natural. E tudo o que é “natural” é dito ser bom. Rousseau fez deste o fundamento da sua teoria da educação. Por isso, é necessário para nós que ensinamos que (a) o natural como criado a partir das mãos de Deus era realmente bom, (b) que o presente “natural” é não-natural e, portanto, não é bom.
Cristo veio restaurar o original natural ou verdadeiro. Ele exigiu perfeita obediência. Ele enfatizou isso especialmente no Antigo Testamento, enviando a lei promulgada diante dEle. Este era o único padrão pelo qual os homens poderiam realmente conhecer a si mesmos. Sua exigência absoluta foi calculada para conduzir os homens a Cristo como o Único a cumprir as Suas exigências. Assim, a lei era o aio para conduzir a Cristo. Aqueles que estão em Cristo são perfeitos. Eles são santos. Eles estão “livres da lei”. Eles amam a Deus de novo. O núcleo do seu ser é verdade novamente. “Oh, como amo a tua lei”, é o refrão de sua canção. Daí o seu esforço constante para rastrear todas as suas motivações até o seu covil mais profundo. A partir daí, são expurgados os últimos vestígios de idolatria; do culto a imagens; da quebra do Sabath; do desrespeito à autoridade, à vida humana, à pureza, à propriedade e honestidade. Nenhuma leve satisfação exterior vai levá-los a dizer: “todas essas coisas tenho observado desde a minha mocidade”. Eles sabem que não têm guardado nenhuma das leis de Deus, em princípio. Nem eles alguma vez dividirão a lei de Deus mecanicamente como se um mandamento fosse quebrado e os outros permanecessem intocados. Especialmente este é o caso em relação à primeira e a segunda tábuas da lei. Nenhum homem pode amar o próximo, a menos que ele também ame verdadeiramente a Deus.
Uma saudade do céu será encontrada no coração do Cristão, quando ele olha para o Décimo Mandamento. Quando todos os motivos realmente serão puros como meu Senhor espera que eles sejam e como eu fervorosamente gostaria que eles fossem? Não até que eu seja reunido com os vinte e quatro anciãos ao redor do trono, vestindo as vestes brancas da justiça de Cristo, sem mancha nem ruga, nem coisa semelhante. Essas vestes não mais tocaram na lama do pecado; elas permaneceram perfeitas para sempre naquela atmosfera de justiça.
Enquanto isso, eu não esqueço a minha tarefa como um pregador da justiça na terra. Eu busco pelos meios de graça para desenvolver retidão e obediência à lei de Deus em geral, dentro de mim, e também dentro do meu companheiro Cristão. E quanto a meu semelhante que não é Cristão, eu sei que ele está “morto em delitos e pecados” [Efésios 2:1], e odeia a Deus e ao próximo em seu coração. No entanto, também sei que Deus tem refreado esse ódio, a tal ponto de que, enquanto na terra, é possível para ele fazer o “bem natural”. Ele tem um certo senso da necessidade da lei. Ele, com certeza, pensa que a lei realmente existia à parte de Deus, e, portanto, serve a um Deus desconhecido, mas por este serviço ele é guardado de transformar a terra no Inferno. Consequentemente eu ainda vejo nele algo da imagem de Deus, e respeito a justiça exterior que ele pratica. Eu até colaboro com ele para procurar desenvolver um respeito geral pela lei e ordem, a nível local, nacional e internacional. Por essa justiça geral exterior, Deus providenciou uma atmosfera na qual o verdadeiro povo de Deus não foi imediatamente destruído, mas na qual eles poderiam praticar a justiça, pela graça. Assim, a antítese entre os justos e os injustos não aparece de forma tão clara quanto poderíamos pensar que seria. Mas, conforme o tempo passa e até o final da história deste mundo, Deus permite que princípio fique contra princípio, o exteriormente justo aparecerá cada vez mais injusto. Então, aquele “sem lei”, “o homem da injustiça” que se exaltará acima da lei de Deus aparecerá e os injustos vão adorá-lo e obrigar o justo a adorá-lo. Mas, então, também Aquele que foi achado digno de abrir o livro com os sete selos, porque Ele tinha sido morto como o Justo, para trazer a vitória e promover a justiça, aparecerá para lançar a injustiça e os injustos no abismo que é sem fundo porque ali não há nenhuma lei, nenhuma ordem, e para receber aqueles que obedecem a lei de Deus no reino onde a lei e a ordem estão, e, portanto, descansam.[1]
[1] Van Til, C., & Sigward, E. H. (1997). The works of Cornelius Van Til [As Obras de Cornelius Van Til], 1895-1987 (ed. eletrônica). New York: Labels Army Co.