Capítulo III, Sobre os Decretos de Deus, parágrafo 7:
A doutrina deste elevado mistério da predestinação deve ser tratada com especial prudência e cuidado, para que os homens, atendendo à vontade de Deus revelada em Sua Palavra, e prestando obediência a esta, possam, a partir da certeza do seu chamado eficaz, certificar-se de sua eleição eterna.18 Portanto, esta doutrina deve motivar louvor,19 reverência e admiração a Deus; e humildade,20 diligência e consolação abundante para todos os que sinceramente obedecem ao Evangelho.21
18 1Tessalonicenses 1:4-5; 2Pedro 1:10
19 Efésios 1:6; Romanos 11:33
20 Romanos 11:5,6,20
21 Lucas 10:20
Nosso Senhor Jesus Cristo possuía um perfeito conhecimento da verdade de Deus, bem como um entendimento perfeito dos corações a quem Ele falou (João 16:30, João 2:25). No caminho para a cruz, Ele disse a Seus discípulos que ainda tinha muitas coisas para ensiná-los que não podiam suportar naquele tempo (João 16:12). É preciso considerar a condição do ouvinte ao ensinar a verdade de Deus (2 Timóteo 2: 23-25). Jesus sempre foi o pastor que ensinou a verdade ao considerar o entendimento e a condição espiritual dos outros.
Da mesma forma, nossos antepassados acrescentaram o sétimo parágrafo pastoral ao Capítulo III: Sobre os Decretos de Deus. Ele adverte que é preciso ter “prudência e cuidado” em como se ensina o grande mistério da predestinação.
A exposição seguinte deste parágrafo incluirá: (1) a consideração sobre o ensino da predestinação); (2) o raciocínio para tal consideração; e (3) o efeito esperado naquele que crê na predestinação.
A Consideração Sobre o Ensino da Predestinação
Este parágrafo enumera o ensino real do “elevado mistério da predestinação”. Esse ensino deve ser feito, não pode ser ignorado por aqueles ordenados a ensinar a Palavra de Deus e deve ser ensinado da maneira que a Escritura ordena. A quem se deve ensinar? Como deve ser aplicado? Qual deve ser o efeito dele sobre o crente? Como deve ser tratado com “prudência e cuidado especial”?
Aqueles que usam de cautela, “prudência e cuidado especial”, para evitar ensinar a doutrina bíblica da predestinação não encontram refúgio aqui. Os pastores são chamados a ensinar todo o conselho de Deus (Atos 20:17; Judas 3; 2 Timóteo 2:1-2). Evitar ensinar esta doutrina importante nas Escrituras é violar a responsabilidade pastoral. Ensiná-la erroneamente prejudica as ovelhas de Cristo. A Predestinação deve, portanto, ser ensinada.
Contudo, o ensino da predestinação não deve ser inserido sem prévia “prudência e cuidados especiais”. Alguns ensinaram a outros com um espírito impetuoso e argumentativo; isso mina o próprio conceito de uma predestinação movida pela graça e bondade imerecida de Deus (Efésios 1:4-6).
No entanto, é verdade que este “elevado mistério” é difícil de entender para muitos, mesmo com a obra iluminadora do Espírito Santo (2 Pedro 3:16). Não é uma doutrina secreta apenas para os inteligentes, pois é exposta abertamente para todos, tanto no Antigo como no Novo Testamento. Na verdade, a predestinação é o próprio fundamento de toda profecia e realização. No entanto, existem algumas questões misteriosas sobre esta doutrina que desafiam plenamente a razão humana.
Por exemplo, como se pode explicar o mistério da soberania absoluta de Deus sobre todas as coisas em Seu decreto (Daniel 4:34-35; Efésios 1:11; Romanos 8:28), mas harmonizá-lo com a verdade bíblica da vontade não forçada de homens espiritualmente mortos para responder livremente ao Evangelho quando são regenerados (Gênesis 50:20; Efésios 2:4-5)? Harmonizar a soberania de Deus e a plena responsabilidade humana de arrepender-se e crer, é como tentar explicar a inspiração e inerrância da Escritura. Ela é inteiramente inspirada por Deus, mas escrita através da mente de homens falíveis. Esses mistérios nos humilham e chamam os professos a usarem a prudência (sabedoria aplicada) e o cuidado (ensino cuidadoso para o ouvinte) em seu ensino do “elevado mistério da predestinação”. Não devemos ignorar nem especular sobre a revelação de Deus para torná-la mais palatável para nós mesmos, ou para os outros.
O capítulo III descreve a eleição como o decreto eterno de Deus para escolher os pecadores como presentes dados a Cristo que realiza a salvação deles, incluindo dá-lhes a habilidade perdida de entender e crer no Evangelho (João 6:37-39, 17:1-3; Efésios 2:8-9). Tendo predestinado todas as coisas para salvar Seus eleitos, incluindo o envio de Seu Evangelho a eles, Deus os regenera pelo Espírito Santo “ao qual o pecador responde em arrependimento a Deus e fé em nosso Senhor Jesus Cristo”.[1] Essa fé dos eleitos de Deus é a consequência da regeneração, não seu antecessor… que alguns erroneamente ensinam como a condição de eleição eterna (Efésios 2:8-9).
Portanto, Deus predestina a vida de Seus eleitos desde a eternidade passada até a sua eternidade futura em glória (Romanos 8:29-30). O chamado eficaz interno dos eleitos de Deus vem através do chamado externo do Evangelho de Cristo a todos os povos sem exceção (Lucas 24:47). No entanto, por causa de sua morte espiritual natural, os eleitos devem nascer de novo pelo Espírito Santo para receber essa Palavra e responder em arrependimento e fé. Se Deus, em Sua graça soberana, não predestinasse a sua regeneração, criando fé neles, ninguém seria salvo.
Assim, o “elevado mistério da predestinação” de modo algum impede a evangelização, ou as missões, ou o chamado a todos os homens, em todos os lugares a se arrependerem e crerem no Evangelho. Como Paulo disse aos filósofos gentios no Areópago:
“Portanto, tendo negligenciado os tempos de ignorância, Deus agora está declarando aos homens que todas as pessoas em todos os lugares devem se arrepender…” (Atos 17:30).
O fato é que a predestinação torna certo a evangelização por duas razões. Primeiro, ele garante ao pregador que Deus salvará os pecadores de toda língua, raça, tribo e nação através da proclamação do Evangelho a todos os homens (Apocalipse 5:9-10). Se alguém continuar pregando, alguém será salvo. E, em segundo lugar, a predestinação promete ao pregador que ele pode justamente chamar todos os homens para se arrepender e crer porque o Deus que elege sempre cumpre a Sua Palavra: “PORQUE TODO AQUELE QUE INVOCAR O NOME DO SENHOR SERÁ SALVO” (Romanos 10:13).
Essas duas grandes verdades da predestinação de Deus aos Seus eleitos, e o justo comando de Deus a todos os homens para responder ao Evangelho de Cristo, são perfeitamente reconciliados na mente de Deus, mas ainda são um “elevado mistério” para nossas mentes insignificantes. Ainda assim, esse “elevado mistério de predestinação” deve ser ensinado porque está nas Escrituras, contudo, com prudência e cuidado.
O Raciocínio Explicado para o Ensino da Predestinação
Depois de introduzir a necessidade e a maneira de ensinar a predestinação, nossos antepassados explicaram o raciocínio para ensinar a predestinação com estas palavras:
“…para que os homens, atendendo à vontade de Deus revelada em Sua Palavra, e prestando obediência a esta, possam, a partir da certeza do seu chamado eficaz, certificar-se de sua eleição eterna.”
Algumas objeções ao ensino da predestinação são: (1) pode-se pensar que, se eles foram eleitos por Deus antes da fundação do mundo, eles nunca poderão obter a garantia de salvação; (2) que se alguém crê somente que os eleitos são predestinados à salvação, então eles não podem responder ao chamado à salvação e (3) que os crentes não podem seguir obedecendo aos mandamentos de Deus em sua vida porque eles são eternamente eleitos e não podem ser perdidos, não importa o que eles fizerem.
Entretanto, observe que quem deve ser assegurado pelo ensino da predestinação não são aqueles que presumem a graça de Deus e deixam o seu pecado abundar (Romanos 6:1-2), mas aqueles que “atendem” à Palavra de Deus e “obedecem” a ela em suas vidas (2 Tessalonicenses 2:13- 14, veja também Mateus 7:31-23). Estes devem ter uma certeza sobre a sua eleição eterna (Efésios 1:4, 2 Timóteo 1:9, João 6:37-39), porque eles trazem a evidência do chamado eficaz em seu coração e vida (1 João 2:3-6). Aqueles que entendem corretamente a predestinação bíblica, nunca a usarão como desculpa para recusar a promessa de salvação de Deus pela fé somente em Cristo, nem a usariam para recusar uma vida obediente ao seu Deus da graça.
De fato, Jesus e Seus apóstolos ensinaram que a eleição traz maior segurança aos crentes e os estimula a perseguir a santidade com maior zelo (Colossenses 3:12). Eles não têm mais que olhar para o seu próprio poder e perfeições para convencer-se de que são salvos. Sob a eleição da graça, eles podem continuar olhando para o amor imutável de Cristo e Seu poder para “vos guardar de tropeçar, e apresentar-vos irrepreensíveis, com alegria, perante a sua glória” (Judas 24).
Mesmo para aqueles crentes que passam por grandes provações e guerra espiritual com o pecado, a doutrina da eleição e da predestinação traz consolo e perseverança:
Providência, Capítulo V, Parágrafo 5:
O Deus mui sábio, justo e gracioso, frequentemente deixa, por algum tempo, Seus próprios filhos em diversas tentações e na corrupção dos seus próprios corações, para castigá-los pelos seus pecados anteriores ou fazer-lhes conhecer o poder oculto da corrupção e engano de seus corações, para que eles sejam humilhados; e para elevá-los a uma dependência mais íntima e constante de Seu próprio auxílio, e para torná-los mais vigilantes contra todas as futuras ocasiões de pecado, e para outros santos e justos fins.15 De forma que seja o que for que ocorra com todos os Seus eleitos é por Sua designação, para a Sua glória e para o bem deles.16
15 2Crônicas 32:25,26,31; 2Coríntios 12:7-9
16 Romanos 8:28
Aqueles crentes que atendem à vontade de Deus e se submetem a Ele podem saber que seu chamado eficaz é verdadeiro e também que eles são os objetos imerecidos da eterna eleição e predestinação de Deus. Isso motiva a adoração e a vida obediente, não importando as suas circunstâncias terrenas (Romanos 8:28-39).
O Efeito Resultante da Predestinação Sobre o Crente
A declaração final descreve o efeito que um correto ensino acerca da predestinação terá sobre quem crê por si mesmo:
“Portanto, esta doutrina deve motivar louvor, reverência e admiração a Deus; e humildade, diligência e consolação abundante para todos os que sinceramente obedecem ao Evangelho”.
Quando Pedro e João foram libertados da prisão pelo poder de Deus, os discípulos atribuíram a sua libertação à predestinação de Deus que tão claramente vista na traição e morte de Cristo. Isso estimula o seu louvor:
“Porque verdadeiramente contra o teu santo Filho Jesus, que tu ungiste, se ajuntaram, não só Herodes, mas Pôncio Pilatos, com os gentios e os povos de Israel; para fazerem tudo o que a tua mão e o teu conselho tinham anteriormente determinado que se havia de fazer” (Atos 4:27-28).
Este foi o louvor e adoração dos crentes que entenderam a predestinação.
Entretanto, é preciso lembrar que a eleição e a predestinação não foram pregadas aos inconversos nas mensagens evangelísticas de Atos. Isso não era parte da mensagem do Evangelho aos pecadores.[2] A soberania de Deus sobre todas as coisas e no mundo foi pregada aos pecadores para estabelecer A Sua autoridade para julgá-los por seus pecados, chamando assim todos ao arrependimento e fé em Cristo:
“Mas Deus, não tendo em conta os tempos da ignorância, anuncia agora a todos os homens, e em todo o lugar, que se arrependam; porquanto tem determinado um dia em que com justiça há de julgar o mundo, por meio do homem que destinou; e disso deu certeza a todos, ressuscitando-o dentre os mortos” (Atos 17:30-31).
No plano horizontal, Deus chama todos os homens em todos os lugares a se arrependerem porque eles já são culpados, condenados e estão sob necessidade de serem reconciliados com seu Soberano Criador e Juiz (João 3:18, 36). A eleição e a predestinação não entram nessa parte da apresentação da mensagem do Evangelho.
Contudo, no plano vertical, Cristo e Seus apóstolos ensinam que os crentes conhecem a Deus somente porque Deus o Pai os escolheu em Cristo antes da fundação do mundo, para que eles fossem santos e irrepreensíveis diante dEle (Efésios 1:4, 2:1-10). A predestinação dos crentes é o fundamento de muitas verdades reconfortantes que resultam em louvor e admiração do próprio Deus. Pensar que um Deus tão grande e santo decretou estabelecer o Seu amor sobre “mim” em Cristo antes da fundação do mundo, cria uma humildade inspirada por um temor que deseja obedecer a este Deus da graça por toda a vida. Este não é um “pagamento” baseado em obras pelo dom da vida eterna. É a sincera gratidão do amor devolvido Àquele que primeiro me amou.
Esta atitude é um verdadeiro avivamento. Ela só pode vir através do ensino da predestinação com prudência e cuidado.
Resumo
O Parágrafo 7 sobre o Decreto de Deus é a aplicação pastoral àqueles que são chamados a ensinar “todo o conselho de Deus” ao povo de Deus (2 Timóteo 2:1-2). Tal “elevado mistério da predestinação” deve ser ensinado ao povo de Deus em sua totalidade e tratado com prudência e cuidado. Esta doutrina não se destina a ser parte da pregação do Evangelho que Deus projetou para chamar todos os homens em todos os lugares a se arrependerem e obedecê-Lo e sim, saber, como um crente, que Deus estava buscando você quando você estava buscando-O; saber que não foi você quem encontrou a Cristo, mas que Cristo o encontrou; saber que Deus sempre planejou salvá-lo e vencer a sua natureza caída e espiritualmente morta para lhe dar vida espiritual, para que você desejasse vir a Cristo para a salvação; saber que o Pai sempre lhe amou, que Cristo veio para salvá-lo para Si mesmo na cruz, e saber que o desejo do seu coração para buscar a vida eterna foi dado pelo Espírito Santo, quem o ressuscitou da morte espiritual para sair do túmulo na luz do amor de Cristo, do perdão e das bênçãos imerecidas; saber todas essas coisas, e muitas outras, impulsiona o pecador salvo a crer no amor que Deus tem por nós (1 João 4:19). Acreditando em tal amor eterno e incondicional aos culpados, os perdoados encontram-se “olhando para Jesus” todos os dias, com ações de graças que resistem à tentação e eles são cheios de tal amor por tal amor, de modo que a obediência torna-se algo pequeno a ser dado a fim de agradar ao Único que é muito bom.
[1] The Baptist Faith and Message [A Fé e Mensagem Batista] (Nashville, TN: Conselho da Escola Dominical da Convenção Batista do Sul, 2000), IV-A. “Regeneração… é uma mudança de coração operada pelo Espírito Santo através da convicção de pecado, à qual o pecador responde em arrependimento a Deus e fé no Senhor Jesus Cristo”.
[2] J. I. Packer, Evangelização e a Soberania de Deus (Editora Cultura Cristã).