O Quarto Mandamento — O Sabath, por Cornelius Van Til

1. Observações

O Quarto e o Quinto Mandamentos têm um caráter religioso-ético e, como tal, formam uma transição entre a Primeira e a Segunda tábuas da lei. O Sabath e a obediência aos pais são de grande importância para a verdadeira religião e também para a verdadeira moralidade.

Em segundo lugar, descobrimos que o Quarto Mandamento é o único que não encontra ao menos alguma resposta espontânea no coração do pecador. Achamos pouquíssimo traço de uma semana em sete dias entre os povos fora do âmbito da revelação especial. Os Babilônios e os Assírios tinham uma semana de sete dias, mas é significativo que o “Sabatu” dos Babilônios era considerado um “dies ater”, ou seja, um dia sombrio. É verdade, o dia é chamado de “um nuh libbi”, ou seja, um dia de descanso para o coração, mas Delitzsch interpretou isso como referindo-se aos deuses, ou seja, era um dia em que os corações dos deuses tinham que ser colocados em repouso por meio de sacrifício.

É esta circunstância que levou muitos intérpretes a encontrarem no Sabath exclusivamente uma ordenança da teocracia e não uma ordenança para a humanidade em geral. Por isso, é importante olhar para esta questão da origem do Sabath, antes de tudo. Mesmo se nos limitarmos ao Domingo Cristão a questão da origem ainda é importante uma vez que é, então, parte da questão maior saber se o Cristianismo está introduzindo algo inteiramente novo ou se ele está restaurando uma ordenança da Criação.

Alguns têm defendido que o Sabath foi instituído pela primeira vez no deserto do Sim (Êxodo 16:22-30). Mas toda a história como aqui relatada pressupõe um conhecimento do Sabath. “Até quando recusareis guardar os meus mandamentos e as minhas leis?” [Êxodo 16:28]. Isto aponta para uma lei conhecida anteriormente. Em segundo lugar, as pessoas parecem reunir uma porção dupla de maná sem que seja dito. Em terceiro lugar, quando alguns desejam procurar o maná no Sabath, Moisés fica irado com deles porque ele sugere que eles deveriam ter conhecido melhor. Assim, o conhecimento do Sabath é muito mais anterior às ordenanças específicas dadas para o Sabath judaico.

Assim, de acordo com isso, podemos citar ainda (a) o fato mencionado acima que os babilônios já tinham um Sabath muito anterior ao exílio, (b) a evidência positiva encontrada em Êxodo 20:8: “Lembra-te”, mas especialmente em Êxodo 20:11: “Porque em seis dias fez o Senhor os céus e a terra” (Êxodo 20:8, 11). Esta última afirmação parece apontar para Gênesis 2:3-4: “E havendo Deus acabado no dia sétimo a obra que fizera, descansou no sétimo dia de toda a sua obra, que tinha feito. E abençoou Deus o dia sétimo, e o santificou; porque nele descansou de toda a sua obra que Deus criara e fizera”. Em Êxodo 31:17 ainda diz que Deus “restaurou-se”.

2. O que é Comandado

O Sabath da Criação

Se, então, o Sabath é uma ordenança da criação, isto por si só lança luz sobre o modo de observância do Sabath. O homem como uma criatura deve imitar a Deus, seu Criador. Isso é regra geral e aplica-se ao Sabath também. O próprio Deus não deixou de trabalhar por completo,2 mas deixou o trabalho específico da criação. Ele Se voltou para o gozo e a bênção do que Ele havia criado.

Se isso fosse sempre cuidadosamente observado dois extremos teriam sido evitados. Há o extremo do legalismo que superestima o exterior, fazendo dele um fim em vez de um meio. Contra esse extremo legalista, é bom lembrar que o homem — porque ele consiste de corpo bem como de alma — é certamente chamado a dar expressão exterior de sua religião, contudo, a relação interna do homem com Deus é sempre a mais importante. A tentação para o legalismo sempre foi grande desde que o pecador atribui motivos falsos para seus próprios atos. Ele pensa muito facilmente que se ele fizer apenas o que parece externamente ser a coisa certa a fazer, aquela relação interna é de menor importância. Por outro lado, há o extremo de um hiper-espiritualismo que deprecia o valor do exterior completamente. Este hiper-espiritualismo pensa que tem a autoridade de Paulo ao seu lado quando ele afirma que todos os dias são iguais e é preciso apenas guardar o Sabath em nossos corações. A tentação em direção a esse hiper-espiritualismo é maior agora do que nunca antes, desde que uma civilização superior, mas não-Cristã, sempre troca a qualidade ética da espiritualidade pelo status metafísico mais elevado do espírito sobre a matéria. O Modernismo tem aqui adotado, como em outros lugares, o princípio pagão em vez do princípio Cristão, substituindo um status metafísico mais elevado por um contraste ético.

Originalmente não havia nenhuma razão para tais extremos. O homem de Deus era equilibrado. Como um profeta, ele via e enfatizava o interior; como sacerdote, ele trabalhava e destacava o exterior; e como um rei, ele mantinha os dois em equilíbrio. Desde a entrada do pecado, os homens tentam ser ou profetas ou sacerdotes e, portanto, não têm sucesso em ser nenhum dos dois.

O Sabath Redentivo

Nós agora vimos que, para uma compreensão correta do Sabath, devemos vê-lo antes de tudo como uma ordenação da criação. Isso é fundamental. A redenção intenciona restaurar a criação. Portanto, nenhuma ordenança da redenção pode ser entendida corretamente, a menos que esteja relacionada com a sua equivalente ordenação da criação. Por outro lado, a redenção também é suplementar à criação. Por isso, é bem possível que haja uma ênfase especial no sentido redentor de várias ordenanças dadas por Deus. Agora, nas razões dadas a Israel porque o Sabath deveria ser observado, menção é feita não somente para imitar o exemplo de Deus (ordenação de criação), mas também sobre a libertação de Israel da casa da escravidão do Egito. “Porque te lembrarás que foste servo na terra do Egito, e que o Senhor teu Deus te tirou dali com mão forte e braço estendido; por isso o Senhor teu Deus te ordenou que guardasses o dia de sábado” (Deuteronômio 5:15). Isso introduz o elemento de redenção na medida em que a libertação do Egito é a primeira expressão típica completa de todo o processo de redenção do homem. Como consequência, a verdadeira observância do Sabath sempre será caracterizada por referências à obra redentora que se centra em Cristo. Consequentemente, apenas aqueles que estão em Cristo, ou seja, os crentes da Antiga e da Nova dispensação, podem realmente observar a ordenança da criação de Deus. Aqui, como em outros lugares, o verdadeiro Cristianismo é o teísmo vindo a si mesmo. Para que o homem realmente imite a Deus, ele deve estar em vivo contato com Deus. Assim, o pecador deve reflexivamente virar para o Paraíso passado e prolepticamente ao Paraíso recuperado, a fim de ver como o Sabath deve ser celebrado. E isso o pecador pode e fará apenas se ele estiver unido a Cristo. Daí o Sabath também é chamado de sinal entre Yahwéh e Seu povo. Seu povo deve observar o Sabath “por aliança perpétua” (Êxodo 31:16).

O Sabath Judaico

Tendo primeiro estudado o Sabath como uma ordenação da criação e, logo após conectá-lo com o princípio de redenção, em geral, agora nos voltamos para as várias formas de observância do Sabath. Nós esperamos que deva haver fases sob a forma de observância do Sabath, porque existem fases sob a forma do próprio princípio da redenção. Além disso, também esperamos que — desde que o próprio Cristo é o centro de todo o processo da redenção — isso mude o modo como a observância do Sabath terá lugar em conformidade com as mudanças da revelação de Cristo de Si mesmo para o Seu povo.

Quanto ao Sabath judaico, nós conformemente esperamos que haja uma forte ênfase sobre a observância exterior das ordenanças do Sabath. Havia muitas ordenanças a respeito de exatamente como o Sabath deveria ser observado. Agora, esta ênfase no exterior não é, como vimos, contra as ordenações da criação, como tal, ainda assim, há muito mais ênfase no exterior neste estado precoce da redenção do que havia na ordenação de criação. A razão para isso é, sem dúvida, pedagógica. A redenção entrou a princípio num momento em que a raça humana na presunção de sua juventude rebelou-se contra o Criador. Devia, portanto, ser domada com freios e rédeas. O poder de discernimento espiritual — mesmo quando aqui em princípio — era tão pequeno e objetivo que a revelação se ajustou em conformidade.

Em consonância com uma ênfase no exterior, encontramos uma igual ênfase no negativo. Os pais mais frequentemente dizem “não” às crianças do que “façam isso”, porque a perversidade de uma criança manifesta-se diretamente em uma direção destrutiva.

Havia, portanto, um perigo muito grande de tendência ao legalismo nesta fase inicial. Moisés diz aos filhos de Israel que eles não conseguiram ver o objetivo final das relações religiosas em que eles estavam envolvidos. Ou seja, eles não compreendiam que o sangue de touros e de bodes não tinham o menor valor em si, mas apenas apontavam para o sangue do Calvário. No entanto, as pessoas persistiam em pensar que se eles somente vivessem de acordo com os preceitos da teocracia (e neste caso os preceitos com relação ao Sabath), em um sentido exterior, tudo estaria bem. Quando esse processo continuou e as pessoas, com o passar do tempo, em vez de obterem conhecimento espiritual mais profundo fixaram os olhos cada vez mais sobre o exterior, é que surgiu aquele estranho conglomerado de equívoca seriedade moral e espiritual, que chamamos de farisaísmo.

Finalmente, há um ponto de importância específica a ser observado em relação ao Sabath judaico. Ele é muitas vezes apresentado apenas como típico do Sabath do Novo Testamento. No entanto, este não é o caso. O período do Antigo Testamento é uma subdivisão de toda a história da redenção. Assim, as características comuns de toda a história da redenção vêm à expressão aqui. Ora, é uma característica comum de todo Sabath redentivo que seja uma reminiscência do Sabath do Paraíso perdido e também que seja profético do Paraíso restaurado. Conclui-se, então, que o Sabath judaico prenuncia, mesmo que indiretamente, o Sabath eterno que resta para todo “o povo de Deus”. A diferença entre o Sabath do Antigo e Novo Testamentos a este respeito é que o Sabath do Antigo Testamento prefigura ambos, o Novo Testamento e Sabath eterno, enquanto o Novo Testamento prenuncia apenas o Sabath eterno. Além disso, o elemento típico, por ser mais abundante e por que aparece numa fase mais precoce da revelação, será expresso mais exteriormente. E esses princípios nós encontraremos ser importantes para a determinação do significado de Sabath do Novo Testamento também.

Jesus e o Sabath

Já observamos que desde que Cristo é o centro de todo o processo de redenção, o modo de observância do Sabath, naturalmente, será determinado por Seus atos e por Suas palavras.

Visto que Cristo assumiu a verdadeira natureza humana, Ele também observou o Sabath como uma ordenança da Criação. Além disso, dado que, segundo a carne, Ele nasceu da nação judaica, Ele observou o Sabath judaico. No entanto, Ele procurou restaurar e desenvolver uma compreensão espiritual no meio da dispensação exterior do Antigo Testamento. Contra os fariseus, portanto, Ele afirmou que o Sabath era para o homem e não o homem para o Sabath.

Enquanto isso, Ele tinha consigo a consciência de Seu lugar único no que diz respeito ao Sabath, bem como o Seu lugar único no que diz respeito a todas as ordenanças redentivas. Ele sabia que Sua obra consumada inauguraria uma nova era na história da redenção e, portanto, no modo da observância do Sabath. Assim sendo, Ele começou a dar vislumbres deste Seu lugar único no que diz respeito ao Sabath. Jesus curou muito no sábado. Às vezes, Ele parece desnecessariamente ofender os fariseus. Não se pode dizer no caso de todas as curas sabáticas realizadas por Jesus que elas não poderiam ter esperado até o dia seguinte. Não é somente a prioridade do homem sobre o Sabath, mas a superioridade do Filho do homem com relação ao Sabath, que devem ser consideradas para explicar essas curas como podendo facilmente ter esperado um dia. “Porque o Filho do homem até do sábado é Senhor” (Mateus 12:8; Marcos 2:28, Lucas 6:5).

Jesus, com certeza, não deu instruções para uma mudança em relação ao dia a ser observado. Mas isso é de pouca importância. Jesus não deu instruções sobre muitas coisas que, no entanto, intencionou que os Seus seguidores fizessem. É o fato de Sua obra consumada que é de importância. Quanto à instrução sobre o significado dos fatos, esta seria dada pelo Espírito Santo prometido por Cristo à Sua Igreja.

O Dia do Senhor Cristão

Com a ressurreição de Cristo, Ele mesmo e o Seu povo entraram na realidade do descanso prefigurado no Antigo Testamento. Não que a plenitude do grau daquele descanso já esteja inaugurada. Isso não acontecerá até depois do Dia do Julgamento. Disso segue-se o Cristão Dia do Senhor ainda continua típico. Mas o típico é menos exterior, menos futurista, mais interno. A realidade já está conosco desde que já estamos “nos lugares celestiais” (Efésios 2:6).

A transição a partir do último para o primeiro dia da semana foi realizada gradualmente. Jesus aparentemente desejava que Seus seguidores, momentaneamente, ainda observassem o Sabath judaico: “Orai para que vossa fuga não se dê no inverno, nem no sábado” (Mateus 24:20). Ainda assim, nós poderíamos hoje agir de forma contrária ao espírito de Cristo se procurássemos reintroduzir o Sabath judaico na questão do tempo e na questão do modo de observância. Fazê-lo seria negar que pela ressurreição de Cristo, Ele inaugurou a verdadeira redenção da obra do pecado.

O último dia da semana foi substituído pelo primeiro conforme o significado espiritual da ressurreição começava a ser mais plenamente compreendido. O primeiro dia da semana foi o dia da ressurreição. Uma compreensão mais espiritual da obra de Cristo permitiu aos apóstolos verem o significado da ressurreição. A próprias aparições de Jesus no “primeiro dia da semana” ajudaram a fixar a atenção neste dia. Os primeiros crentes começaram a se reunir no primeiro dia da semana (Atos 20:7). Em 1 Coríntios 16:2, Paulo ordena que os Cristãos pusessem de parte o que pudessem ajuntar, conforme a sua prosperidade, em todo primeiro dia da semana. Novamente em Apocalipse 1:10, João diz que ele estava em Espírito no dia do Senhor (Apocalipse 1:10). Thelop. Brabourne é citado como dizendo: “Ai dos pastores que tentam provar a partir destes textos”. Agora, não temos nenhum desejo de provar todo o assunto a partir desses textos, mas apenas nos referimos a eles como comprovando o significado da ressurreição. O verdadeiro argumento para a mudança do dia é o fato da ressurreição no seu significado redentivo.

Em corroboração podemos apontar para o argumento de Paulo contra os judaizantes.[1] Alguns tentaram deduzir a partir de tais passagens em que Paulo queria dizer que não havia nenhuma distinção entre quaisquer dias. Isto seria contrário ao seu ensino geral e prático, em que ele constantemente separou o primeiro dia da semana como o “Dia do Senhor”. Além disso, o apóstolo está, definitivamente, argumentando contra judaizantes. Se os judaizantes prosseguissem, eles reintroduziriam todo o esquema do Antigo Testamento. Não fazer isso não seria um inocente descompasso com a atualidade, um obscurantismo inofensivo. Seria impossível restabelecer o judaísmo. O judaísmo reestabelecido seria paganismo. Isso implicava em uma negação do significado redentor dos fatos mais centrais da obra de Cristo. Assim, o descanso sabático não é uma fantasia inofensiva. É inofensiva na medida em que é inconsistente. Se consistente, ele substitui o todo do judaísmo por Cristianismo. Agora, no tempo de transição, a consistência desse princípio ainda não era totalmente compreendida. Consequentemente, descobrimos que Paulo não milita contra o Sabath[2] em vez da observância do Domingo, sendo que isso não levasse a mais nada. Somente quando junto com a observância do Sabath é que o conjunto do judaísmo procurava reestabelecer-se, e ele o atacava duramente.

Lentamente, ao longo dos séculos, o princípio espiritual foi entendido. Em Tomás de Aquino, temos talvez um ponto alto do desenvolvimento. Os reformadores em seu zelo contra o externalismo de Roma muitas vezes desviaram-se para o outro extremo. Entre eles, os Anabatistas consideravam desnecessário observar o Sabath, em qualquer sentido especial. Em reação a isso, Bound publicou um tratado sobre o Sabath em 1595, que inaugurou a Sabath Puritano com a sua grande ênfase na guarda exterior do Sabath. Assim, a história das controvérsias sobre o Sabath mais uma vez provou que é fácil cair em extremos. O perigo do Anabatismo por um lado, e o perigo do farisaísmo, do outro, sempre cercaram a igreja. A partir desses perigos, nós podemos, em grande medida, ser mantidos livres se reconhecermos em primeiro lugar que o Sabath é uma instituição baseada em uma ordenação da criação. Deste modo, estamos sendo “imitadores de Deus” e como Ele, “descansamos” de nossos labores. Em segundo lugar, a guarda interna do Sabath é de importância primordial.

Devemos nos retirar de todo o tipo de trabalho e distração que nos impediria de fixar os nossos corações em Deus e Cristo, em privado ou em culto público. Nenhuma quantidade de detalhada observância exterior pode alguma vez substituir este Sabath da guarda interior. Daí, também, uma vez que Deus fez a alma e o corpo do homem, e corpo e a alma têm as suas necessidades, é bom notar que o Sabath “Puritano” não é necessariamente o melhor Sabath. Devemos participar de exercícios espirituais no dia de Sabath, mas não podemos nos envolver em exercícios espirituais a menos que estejamos fisicamente aptos. Em terceiro lugar, a guarda exterior do Sabath não é uma questão de indiferença. Participar em exercícios espirituais pressupõe uma atmosfera livre de perturbações. Se perturbamos a atmosfera do Sabath pecamos contra nós mesmos e talvez contra os nossos próximos.[3]


[1] “Guardais dias, e meses, e tempos, e anos” (Gálatas 4:9-11). “Portanto, ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa dos dias de festa, ou da lua nova, ou dos sábados” (Colossenses 2:16).

[2] Muitas vezes ele pregou no dia de Sabath.

[3] Não discutiremos separadamente o que é proibido no Quarto Mandamento, uma vez que isso foi abordado constantemente na discussão sobre o que é ordenado.

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