Se nós não limitarmos o significado deste Mandamento por um falso literalismo, mas buscarmos compreender seu significado espiritual, podemos dizer que o que é ordenado é respeitar, preservar e desenvolver a vida humana. Matar, ou como diz o original, interromper a vida humana, nada é senão a forma mais extrema de um curso oposto àquele que respeita, preserva e desenvolve a vida humana. Podemos subdividir a discussão naquela que lida com o respeito, preservação e desenvolvimento do indivíduo, e naquela que trata com o respeito, a preservação e o desenvolvimento da sociedade, ou melhor, o que fala sobre nós mesmos e a que fala sobre nossos próximos.
A. A Que é Comandado Para o Eu
O mandamento refere-se à vida humana. Não é admissível lidar rudemente com a vida das plantas e especialmente animais. No entanto, as plantas e os animais são indicados para o uso do homem. Daí a sua vida deve ser tomada. Mesmo a vivissecção nem sempre precisa ser errada. Se isso for feito no interesse de aliviar o sofrimento do homem, pode ser desejável. Mas isso de passagem.
É mais importante notar que o Mandamento não tem limite quando aplicado à vida humana. É, por vezes, pensado que somos, no mínimo, os mestres de nossa própria vida, se não da de outros. Mas este não é exatamente o caso. Nós não temos mais direito de lidar com a nossa própria vida como queremos, do que temos de lidar com a vida dos outros como quisermos. A vida humana pertence a Deus. Ele é o seu criador. Quando alguém dispõe da vida humana de alguém, tal ato rouba a propriedade de Deus.
Além disso, tal ato roubaria a propriedade mais valiosa de Deus. Deus criou o homem à Sua imagem. Ele tem ricamente dotado o homem com capacidades para que renda louvor a Deus. Seja o que for que o mundo diga com relação ao valor do homem, é nada em comparação a simples declaração “criado à imagem de Deus”. É impossível vestir o homem com alguma dignidade superior. Aqueles que não defendem a criação deste universo por Deus, têm alternado na sua acusação contra a teologia ortodoxa, entre dizer que isso injustificavelmente eleva o homem a uma posição de privilégio, ou indevidamente o diminui à posição de um pecador sem valor. E, claramente, não é de admirar que o pensamento antiteísta seja tão inconsistente. Ele sempre embaralha metafísica e ética. Estamos falando aqui da metafísica principalmente. Sustentando que o homem é criado à imagem de Deus, o teísmo tem uma concepção mais elevada da dignidade inerente do homem do que antiteísmo jamais poderia ter.
Muitas vezes, é admitido, mesmo por aqueles avessos à doutrina da criação, que o Cristianismo introduziu a ideia do valor inerente da personalidade humana. Agora, na medida em que é verdade que o Cristianismo representa o valor da personalidade como tal, ele não introduziu, mas reintroduziu. Aqui, como em outros lugares, o Cristianismo tem sido restaurador de um teísmo original. A doutrina da criação é o próprio pressuposto da obra de Cristo. Ele veio para devolver ao homem a imagem de Deus em plenitude (Colossenses 3:10; Efésios 4:24).
Enquanto isso, devemos observar que até mesmo o pecado não apaga a imagem de Deus no homem inteiramente.[1] O homem permanece, mesmo como um pecador, portador da imagem de Deus no sentido mais amplo do termo. Por cauda disso permanece o fato de que o homem, sempre que o encontramos, é o portador da imagem de Deus que torna a vida humana por si sacrossanta.
É este fato que nos permite respeitar a vida humana em geral. É este fato que nos permite respeitar-nos. É este fato que faz do autorrespeito um direito humano. Devemos respeitar a nós mesmos, porque não somos de nós mesmos.
Mas o fato de que a imagem de Deus no homem é o único objeto possível de respeito por ele, envolve o fato de que somente um Cristão pode realmente respeitar a vida humana, de modo geral, e apenas um Cristão entende perfeitamente o que significa ter autorrespeito. O autorrespeito Cristão é o único verdadeiro autorrespeito humano. Apenas um Cristão realmente reconhece a imagem de Deus no homem. Ele, além disso, se alegra com o fato de que por meio de Cristo aquela imagem de Deus foi restaurada para ele no sentido mais estrito, ou seja, que mais uma vez ele tem verdadeiro conhecimento, justiça e santidade. Todo Cristão, mesmo aquele da menor posição social possível carrega em seu seio a consciência de ser um real portador da imagem de Deus.
Assim, o instinto natural de autopreservação é moralizado. Paulo reconhece que “nenhum homem jamais odiou a própria carne”, como algo que é verdadeiramente humano. No entanto, ele logo acrescenta: “antes a alimenta e sustenta, como também Cristo à Igreja” (Efésios 5:29). Assim, até mesmo a vida corpórea é trazida em conexão direta com a obra de Cristo. E isso é compatível com o ensino geral de Paulo de que o corpo é o templo do Espírito Santo. Encontramos, então, que o autorrespeito Cristão é o único verdadeiro autorrespeito humano e que esse autorrespeito é o reconhecimento da imagem de Deus em nós mesmos. Nós amamos a nós mesmos por causa de Deus.
Um ponto de importância, neste contexto, é notar que o genuíno autorrespeito não pode existir, exceto que uma verdadeira humildade também esteja presente. E esta verdadeira humildade não é tanto um reconhecimento do fato de que o homem é um pequeno pontinho em um grande universo. O materialismo grosseiro tem defendido uma tal falsa humildade. Mas um verdadeiro teísmo reconhece a prioridade do Espírito sobre a matéria. A verdadeira humildade é o reconhecimento do fato de que o homem maculou a imagem de Deus e que ele é, portanto, eticamente indigno do amor de Deus. É esta consideração que faz com que o profeta Isaías diga: “Deixai-vos do homem cujo fôlego está nas suas narinas; pois em que se deve ele estimar?” (Isaías 2:22). É isso que o faz anunciar as palavras de Yahwéh: “Num alto e santo lugar habito; como também com o contrito e abatido de espírito, para vivificar o espírito dos abatidos, e para vivificar o coração dos contritos” (Isaías 57:15). Assim, vemos que para uma concepção verdadeiramente bíblica sobre o homem, devemos ter em mente estes fatores: a sua dignidade original como uma criatura de Deus, a sua deflexão ética de Deus, e sua restauração para Deus em Cristo.
Quando um Cristão reconhece plenamente esses elementos, ele é salvo dos dois extremos: da autoglorificação e da auto-humilhação. Não que o verdadeiro autorrespeito seja uma posição a meio caminho entre eles. O verdadeiro autorrespeito, como vimos, se baseia em um fundamento teísta. Por outro lado, a autoglorificação e a auto-humilhação são construídos sobre uma base antiteísta. Quando o homem não reconhece a Deus como seu Criador, ele naturalmente entrará em orgulho quando as circunstâncias são favoráveis ou ele voltar-se-á para um pessimismo cósmico e individual se as circunstâncias são desfavoráveis. A forma mais extrema de um é a autodeificação, e a forma mais extrema do outro é o suicídio.
Naturalmente, a loucura absoluta de ambos é patente, ainda que admitíssemos que não-teísmo é verdade. O homem, certamente, não trouxe a si mesmo ou o universo à existência. Ele não é derivado de nada mais, senão de Deus. Daí, que a sua autodeificação nunca pode ser mais do que autoengano e por seu suicídio o homem não pode remover o que ele não produziu. Mas de qualquer forma, o homem não se sente responsável diante de Deus quando se torna um antiteísta e, portanto, pode livremente fazer a tentativa de remover sua vida. Não é estarrecedor, então, que haja tantos suicídios, mas é de se maravilhar que haja tão poucos. A única maneira pela qual podemos explicar o fato de que há tão poucos suicídios é que Deus tem, pela Sua graça comum, suficientemente restringido a loucura do pecado no homem a ponto de fazê-lo sentir algo de suas limitações e deveres enquanto está na terra. Sócrates disse que não temos o direito de procurar escapar da posição aonde os deuses nos colocaram.
Um cuidado deve ser inserido aqui no que diz respeito à questão do suicídio. Temos dito que um Cristão se absterá do suicídio. Ao dizer isso nós assumimos, no entanto, que o Cristão sabia o que estava fazendo. Mas pode haver momentos de insanidade temporária. Por isso, nós não podemos julgar, mas deixar o julgamento para Deus. Estamos interessados no princípio da questão e este princípio é bastante claro. Há cinco casos registrados de suicídio no Antigo Testamento: Abimeleque tirou a sua vida para evitar a vergonha de ter sido morto por uma mulher (Juízes 9:54); Saul e seu escudeiro cometeram suicídio para escapar de serem mortos pelos filisteus (1 Samuel 31:4); Aitofel fez a mesma coisa quando seu conselho foi rejeitado (2 Samuel 17:23) e Zinri queimou o palácio em que vivia e morreu quando Onri capturou a cidade de Tirza (1 Reis 16:18). Agora, as Escrituras não condenam em tantas palavras estes atos. Elas simplesmente as registram como fatos, assim como eles fizeram muitas obras que eram más. Por conseguinte, os suicídios registrados da Escritura não afetam o seu ensinamento claro que o homem pertence a Deus e, portanto, não pode tirar a sua própria vida. Os pagãos viram vagamente que o homem é colocado numa posição de responsabilidade neste mundo. Eles sentiram que seria covardia procurar fugir disso. No entanto, eles conceberam situações em que o vitae taedium justificaria o suicídio. O Cristianismo não pode encontrar tal situação. A vida pode ser extremamente cansativa para um Cristão, às vezes. Mas tudo o que lhe é enviado, ele está seguro de que é enviado por Deus e Deus aumentará a sua graça juntamente com seus fardos. O Cristão buscará ser paciente na tribulação. E esta paciência não é uma mera submissão estoica às circunstâncias irrevogáveis. O bom homem estoico e o bom Cristão não têm nada em comum a este respeito. O Cristão está profunda e espiritualmente alerta para as circunstâncias que o rodeiam. Ele não lançará sobre os ombros uma couraça de insensibilidade quando os outros o desprezam e o insultam. Ele é, antes, um mártir de Cristo, suportando tudo por Ele, como Estevão orando mesmo para o perdão daqueles que o apedrejavam. “Porque, se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. De sorte que, ou vivamos ou morramos, somos do Senhor” (Romanos 14:8).
Mas, o suicídio é a forma mais extrema de violação contra o real autorrespeito de alguém. Existem muitas formas menos extremas que devemos evitar. Dentre estas, podemos mencionar a indulgência imoderada dos próprios apetites legítimos, tais como: comida, bebida e sexo. Deve-se ressaltar que nenhum dom de Deus é errado em si. O Cristianismo não tem nada em comum com o princípio maniqueísta do mal inerente da matéria. Cada dom de Deus pode ser usado com ações de graças. A igreja de Roma esqueceu isso com seu celibato do clero. A proibição propagandista muitas vezes esquece isso em seu zelo contra o álcool. É o abuso ou mau uso dos dons de Deus que são pecaminosos. Nenhum Cristão que preze a si mesmo pode deixar-se escravizar por qualquer apetite.
Pelo contrário, todo Cristão deve procurar preservar e desenvolver seu corpo e sua alma. Qualquer organismo procura desenvolver-se. Assim também o organismo da alma e do corpo deve desenvolver-se. A alma deve fazer isso por implicação na interpretação da realidade de Deus, ou seja, por uma verdadeira educação. Mas, infelizmente, o pecado efetuou uma separação entre Deus e o homem. Portanto, o homem busca a sua educação à parte de Deus. Consequentemente sua “educação” leva-o constantemente para mais para longe de Deus. Somente uma verdadeira educação Cristã é realmente o desenvolvimento da personalidade finita. Apenas um Cristão exercita-se no que é realmente verdadeiro, belo e bom. O termo educação não é um termo neutro ou um termo que possui sempre a mesma conotação. A educação antiteísta opera em um vácuo, uma vez que separou os fatos de Deus. Por isso, ela não desenvolve a personalidade. Seu desenvolvimento aparente é legítimo e aconselhável. Por outro lado, o desenvolvimento corporal nunca é um fim em si mesmo. A recente ênfase na cultura física e a mania sobre esporte parece esquecer que o homem é mais do que um corpo. Sua alma é muitas vezes negligenciada em favor do corpo.
B. O que é Comandado Quanto ao Próximo de Alguém
Podemos agora voltar-nos para o significado social do Sexto Mandamento. E aqui está o nosso dever positivo de respeitar, preservar e desenvolver a vida do nosso próximo, e nossa tarefa negativa de nos opormos a qualquer coisa que possa interferir em tal propósito. Em suma, devemos amar o nosso próximo como a nós mesmos. Fazer isso só é possível com base no fundamento teísta. Apenas um Cristão conserva e desenvolve sua própria vida por causa de Deus. Consequentemente, apenas um Cristão pode realmente amar o próximo, uma vez que o seu próximo também deve ser amado por causa de Deus. Os não-Cristãos ou não-teístas não têm nenhum centro para o seu pensamento ou para o seu amor que possa promover a união entre os homens. Cada um é concebido como existente por si mesmo. Disso segue-se que o autodesenvolvimento acontece em detrimento do próximo, em vez de, como acontece no fundamento teísta, em benefício do próximo. Não pode haver verdadeira comunidade de interesses entre aqueles que não são unidos a Deus por meio de Cristo. No máximo, eles cooperam para o bem de utilidade momentânea. O homem rico não estava realmente preocupado com seus cinco irmãos na terra. Aquele que não se ligou a nenhum laço de amor a Deus ou ao homem enquanto esteve na terra não foi subitamente aquecido com um amor para com os seus próximos depois de morto. Nessa triste situação, os homens tornaram-se semelhante ao seu líder, Satanás. É uma guerra onde cada um está contra todos. Se Adão pensou, como Milton apresenta-o pensando, que pelo menos ele desfrutaria da companhia de Eva quando ele comesse do fruto proibido, ele estava completamente enganado. Foi somente devido à graça comum de Deus que o homem sentiu algo disso. B. Bosanquet nos diz, em terminologia que parece Cristã, que o indivíduo deve perder-se a fim de encontrar-se de novo em Deus e com o próximo. No entanto, nenhum verdadeiro altruísmo pode alguma vez existir se Deus não é mais que um correlativo do homem. Nesse caso, Ele não pode mais ser o centro e o alvo do pensamento e amor. Podemos ter amor desinteressado pelos nossos semelhantes, mas o temos apenas se primeiro amarmos a Deus. 1 Coríntios 13 enumera várias das características do verdadeiro amor para com os próximos. Não nos é possível, agora, falar delas em detalhe. Podemos resumi-las, dizendo que Paulo concebe o seu próximo como criado à imagem de Deus e, portanto, ama-o por causa de Deus
Diz-se frequentemente que a contribuição do Cristianismo para a questão do altruísmo é que ele pôs de lado as barreiras nacionais de modo que o homem foi ensinado a reconhecer, respeitar, preservar e desenvolver o homem, seja ele um bárbaro ou um companheiro patriota. Esta afirmação é apenas parcialmente verdadeira. Em primeiro lugar, não pode ser suficientemente ressaltado que o altruísmo do Cristianismo é completamente diferente em termos de qualidade do altruísmo, por exemplo, de estoicismo. O Cristianismo introduziu algo diferente do que era conhecido em vez de apenas propagar de forma mais ampla o que já era praticado em esferas limitadas. Em segundo lugar, o Cristianismo realmente não introduz este amor genuíno ao próximo, mas o reintroduz, porque ele reintroduz o teísmo. E isso explica o terceiro lugar, porque havia prenúncios de um verdadeiro altruísmo em Israel, e em nenhum outro lugar (Levítico 9:24).
A partir do que foi citado antes, segue-se que o nosso amor a Deus é anterior ao amor aos nossos próximos. Muitos hoje afirmam que a primeira tábua da lei não tem nenhuma significância para a moralidade. A crença de alguém em Deus é considerada um passatempo sem efeito sobre a atitude para com o próximo. Mas o oposto é verdadeiro. Se Deus é o que o teísmo diz que Ele é, então devemos amá-lO em primeiro lugar e acima de tudo, e se não o fizermos, não podemos sequer amar os nossos próximos. É verdade que a falta de amor aos seus próximos é um sinal de falta de verdadeiro amor a Deus, mas é igualmente verdade que a falta de verdadeiro amor a Deus é uma garantia certa da falta do verdadeiro amor para com o seu próximo. Ainda mais, amar o nosso próximo como a nós mesmos de modo algum entra em conflito com o nosso dever de cuidarmos de nós mesmos em primeiro lugar. Assim, também de alguns próximos, digo, parentes, etc., mais próximos a nós do que outros. Tudo isso é devido à providência de Deus. Não reconhecer este fato seria contradizer a providência de Deus.
E isto leva-nos a fazer uma outra distinção. Todos os homens são nossos próximos. Devemos amar todos os homens como a nós mesmos, ou seja, por causa de Deus. Mas nem todos os homens são Cristãos. E os Cristãos devem se amar em um sentido singular. Jesus ama os Seus próprios com um amor único (João 13:1). Ele lhes deu um novo mandamento: que se amassem uns aos outros (João 13:34). O amor aos irmãos é constantemente distinto do amor a todos os homens, especialmente por João (1 João 3:23). O modernismo está muito interessado em remover esta distinção, uma vez que, em sua suposição naturalista, deve-se ensinar a paternidade universal de Deus e a fraternidade universal do homem. O amor aos irmãos é o que dura eternamente. Por outro lado, o amor por aqueles que não estão em Cristo terminará quando o seu ódio a Deus for evidenciado no dia do julgamento.
Finalmente, nós devemos notar, neste contexto, o que significa que devemos amar nossos inimigos. Quem são os nossos inimigos? Todos os que não amam o Senhor Jesus Cristo. Eles são nossos inimigos, porque eles são inimigos de Deus. Vimos que o dever sagrado da imprecação é baseado neste fato: “Não odeio eu, ó SENHOR, aqueles que te odeiam”? No entanto, enquanto nesta terra, devemos amá-los como criaturas, como portadores da imagem de Deus. Neste mundo o princípio da antítese ética não pode e não deve ser cumprido absolutamente. Cristo orou por aqueles que O crucificaram. Mas isso não deve nos fazer pensar que Cristo ou Seus apóstolos reduziram o amor aos nossos próximos ao nível prosaico do modernismo quando Aquele sustenta, apontando para o incidente da mulher apanhada em adultério, que há muito bem no pior de nós e muito mal no melhor de nós, para que qualquer um de nós pense ser realmente melhor do que outros. Cristo não reduziu o ódio e o amor a uma mistura incolor dos dois, mas mandou-nos mantê-los à parte rigidamente e ainda assim atribui ambos ao mesmo indivíduo. E se for dito que aqui um milagre muito grande é exigido de nós, a única resposta é que todas as outras possibilidades são impossíveis. Se o amor e o ódio fossem colocados juntos para formar uma mistura, eles anulariam um ao outro e se reduziriam a absolutamente nada; aqui está a absoluta impotência do modernismo. O amor do modernismo inclui o Diabo e, portanto, não significa nada quando dirigido a Deus.
Se agora este princípio de amor verdadeiro para com o próximo for cumprido, nós buscaremos desenvolver o bem-estar geral do nosso próximo em pensamento, palavras e ações. Mas isso nos leva a um outro ponto. Até agora, temos discutido o dever do indivíduo para consigo mesmo e para com o seu próximo. Agora chegamos ao dever da sociedade com relação ao indivíduo. Mas, a sociedade tem dever no que diz respeito à proteção da vida humana? Numa base antiteísta isso não pode ser sustentado. Uma sociedade com base antiteísta é organizada apenas por causa da utilidade. Compreende-se facilmente como Nietzsche poderia negar o direito da sociedade no que diz respeito a reprimir qualquer ambição do indivíduo. Nietzsche teve a coragem de em sua convicção ridicularizar a moral Cristã como uma moral de escravos. Mas Nietzsche viveu à frente do seu tempo. Seus ideais serão realizados no Inferno. Deus graciosamente conteve a ira do homem suficientemente para dar à sociedade um certo senso de responsabilidade. A partir disso, temos visto que o estado foi organizado na base da graça comum de Deus.
Foi ao estado que Deus delegou o poder e o dever de proteger a vida humana. A vida humana é sagrada. Todo aquele que derramar o sangue do homem, o seu sangue deve ser derramado (Gênesis 9:6). Esta é uma lei sagrada de todos os tempos, uma vez que é baseada no fundamento de que o homem é feito à imagem de Deus. A justiça de Deus exige a pena capital. Nenhuma quantidade de sentimentalismo pode remover esta ordem Divina. Nem mesmo as razões de utilidade ou a consideração de que algum tempo para o arrependimento deva ser dado. Deus cuidará de todas essas questões como Lhe aprouver se nós somente obedecermos ao Seu comando. É uma indicação de que a “consciência Cristã” não é genuinamente Cristã — ou seja, pronta para testar seus padrões pelos padrões da Escritura — quando em seus argumentos ela não pergunta o que a Escritura ensina, mas o que as Escrituras deveriam ensinar. É um falso humanitarismo que visa substituir a ideia de melhoria pela de punição. A punição deve permanecer sempre como a concepção primária, uma vez que a justiça de Deus foi ultrajada quando a vida humana é ceifada ou as leis de Deus têm sido quebradas de outras maneiras.
Nós encontramos outra manifestação de um falso humanitarismo em grande parte do atual pacifismo. A guerra é certamente um dos maiores dos maus resultados do pecado. Diremos, pois, que, desde que o coração humano é pecaminoso é inútil realizar qualquer esforço para obter a paz universal? Tal atitude é certamente muito mais próxima da verdade do que o otimismo superficial que não lida com o pecado. No entanto, tal atitude não é bíblica. Como Cristãos, devemos fazer todo que estiver ao nosso alcance para remover o máximo possível, por todos os meios legítimos, das consequências do pecado. Neste sentido, os Cristãos devem ser pacifistas na política. Mas dizer que toda guerra é errada e recusar-se a servir em qualquer guerra é falso pacifismo. O fato de que as nações, compostas como elas são de pecadores, muitas vezes se voltarão para políticas de engrandecimento torna necessário e justo que aqueles que são atacados defendam-se.
Mas aqui o argumento final aparecerá com base em um apelo ao Sermão do Monte. A alegação é que os Cristãos não devem contra-atacar qualquer ataque sobre o qual eles estejam, como indivíduos ou como nações. O verdadeiro espírito Cristão é dito nunca se opor à violência com violência, não apenas isso, mas nunca exigir reparação em qualquer forma: “Eu, porém, vos digo que não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra” (Mateus 5:39). Nós teremos que examinar, então, se as palavras ditas por Jesus suportam a interpretação dada a elas. Em primeiro lugar, devemos fazer a concessão de que as palavras de Jesus sejam consideradas literalmente. Não podemos leve e vagamente passar por elas e pensar que Jesus não poderia ter intencionado dizer exatamente o que Ele disse. Jesus proíbe expressamente o Seu povo de oferecer resistência. Mais do que isso, Jesus vai além e diz aos Seus discípulos que em vez de resistir à violência, eles devem oferecer oportunidade e, aparentemente, provocação para mais violência. Eles devem “oferecer a outra face”. Eles devem oferecer a capa quando a túnica for tomada, e andar duas milhas quando for forçado a andar apenas uma (Mateus 5:38-41). Mesmo os Menonitas e Quakers nunca afirmaram que Jesus ensina dessa forma. Eles muitas vezes se atreveram a ir apenas até a metade.
Esta interpretação está de acordo com o que temos visto ser o verdadeiro significado do amor àqueles que são nossos inimigos. Somente a graça de Deus nos capacita para não pagar o mal com o mal (Romanos 12:17), mas a “vencer o mal com o bem” (Romanos 12:21).
O objetivo desta atitude nós, portanto, vemos ser a conquista de outros para o mesmo espírito. Por ajuntar “brasas de fogo” sobre as suas cabeças, nós devemos envergonhar tão completamente nossos inimigos por seus atos de violência e ter tão genuína tristeza por isso que eles aceitem a nossa posição.
Nós notamos agora que uma tremenda atividade espiritual está envolvida na atitude de não-resistência. Pois, isso não é, de modo algum, semelhante à passividade por vezes defendida na literatura pagã. Na verdade, é o oposto polar do princípio budista ou estoico tantas vezes comparados com ela. O princípio antiteísta sob qualquer forma em que se manifesta apresenta uma falsa imitação do princípio do ius talionis de Deus. Deus é um Deus de justiça. Por conseguinte, deve haver punição equivalente na medida em que a lei de Deus é quebrada por pecadores. Foi este princípio que foi falsificado pelas nações quando cada indivíduo pensou ser ele mesmo a fonte do direito. Nesse fundamento, ele procurou recompensar toda a violência feita a ele causando vingança contra seu adversário. Assim, Lameque cantou a “canção da espada”: “porque eu matei um homem por me ferir, e um jovem por me pisar. Porque sete vezes Caim será castigado; mas Lameque setenta vezes sete” [Gênesis 4:23-24]. Assim, Habacuque também fala das nações que fazem de seu poder o seu deus. Esta era a lógica desta posição. Mas um método tão extremo logo destruiria a terra. Deste modo, Deus por Sua graça comum conteve a ira do homem, para que os “homens sábios” começassem a ver uma certa proporção em matéria moral e defendessem um “olho por olho”, o assim chamado atual ius talionis, vigente especialmente no império dos Césares.
Mas, assim, o universo não poderia continuar a existir. Deve ser feita uma compensação permanente a Deus. A ofensa à justiça de Deus deve ser punida. Cristo suportou esta punição por todos os Seus próprios. Assim, aqueles em Cristo não devem e não precisam dar lugar à ira. A vingança pertence ao Senhor. Toda a violência que é feita é realmente feita contra o Senhor. Cristo identifica os Seus discípulos consigo mesmo, e Ele mesmo com Deus.
Ainda assim, este princípio não pode ser imediatamente posto em funcionamento em sua plenitude em um mundo que tanto havia se extraviado como o relato que nos é dado em Romanos 1. Por isso, Deus gradualmente introduziu o princípio. Em Israel, o verdadeiro princípio foi restaurado. O ius talionis como vigente em Israel não tem o mesmo significado que do ius talionis vigente entre as nações e nem isto poderia ser assim, pois entre Israel isso pressupõe o teísmo, enquanto entre as nações pressupõe antiteísmo. Em Israel, conformemente, temos o verdadeiro ius talionis e entre as nações, o falso. Ainda assim, Israel não era mais que uma prefiguração da punição a ser sofrida por Cristo. Devido ao externalismo geral da dispensação do Antigo Testamento, a lei tinha que ser cumprida externamente por indivíduos ou governo. Em Cristo, esse externalismo foi aniquilado. Daí o ius talionis não foi revogado, mas cumprido por Cristo. E é com base neste cumprido ius talionis que aqueles que estão em Cristo devem manifestar seu perdão aos seus inimigos. Somente eles o podem fazê-lo. Mas, eles podem sempre, em todas as circunstâncias, fazê-lo?
Eles não podem! Eles podem tanto quanto as consequências para si mesmos estão envolvidas porque, mesmo se eles morrerem eles são do Senhor e serão recebidos por Ele. Mas eles não podem se pela sua não-resistência eles destruírem o propósito para o qual eles devem exercer a não-resistência. O propósito da não-resistência é realizar o verdadeiro ius talionis de Deus. Ou seja, pela nossa não-resistência, queremos que os homens aceitem “a justiça de Deus” que está em Cristo. Mas, assim como era impossível — devido ao baixo estado das nações — introduzir completamente este princípio de uma vez, assim ainda é impossível e permanecerá impossível introduzir este princípio plenamente. O coração do homem não mudou. A civilização tem avançado muito devido à graça comum de Deus. E isso torna possível para o Cristianismo evidenciar-se sem ser ao mesmo tempo aniquilado. Isso também permitiu que o Cristianismo desenvolvesse algum impulso. Todavia, mesmo assim, nem todo indivíduo está no mesmo nível do progresso geral da civilização. E acima de tudo, se alguém deve realmente ser vencido pela não-resistência de um Cristão, ele mesmo deve tornar-se um Cristão. E uma vez que aquele que está no mais alto degrau da escada da graça comum ainda não colocou o seu pé no primeiro degrau da escada da graça salvífica, a política de não-resistência pode ainda ser derrotada quando for praticada em relação ao indivíduo mais culto.
Conclui-se, então que quando a prática da não-resistência mais provavelmente puder derrotar o seu próprio propósito, não deve ser aplicada. Isso não é o enfraquecimento das palavras de Cristo ou de Seus apóstolos no interesse de supostas consequências. Mas neste caso, a ação seria autocontraditória uma vez que o propósito da não-resistência é ganhar outros. Temos aqui um exemplo semelhante ao da pregação do Evangelho e do testemunhar a Cristo. Pregar o Evangelho é uma ordem ilimitada e literal, mas também é dito que não devemos lançar pérolas aos porcos para que não se voltem contra nós e nos despedacem.
O próprio exemplo de Cristo confirma esta interpretação. Ele não dá a outra face quando um dos oficiais do sinédrio bateu em Jesus. “Respondeu-lhe Jesus: Se falei mal, dá testemunho do mal; e, se bem, por que me feres?” (João 18:23). Este exemplo prova definitivamente que Jesus não quer dizer que o Seu preceito da não-resistência deve sempre, sob qualquer circunstância, ser aplicado. Paulo seguiu uma prática semelhante quando ele também protestou contra ser injustamente ferido (Atos 23:3) e quando ele exigiu que os agentes dos Filipo soltassem Silas e ele da prisão em que estavam indevidamente presos. Agora, se nós perguntarmos por que Cristo não aplicou o Seu próprio princípio, a resposta está de fácil acesso. Se Jesus tivesse seguido o Seu princípio, Ele apenas fortaleceria os Seus adversários em sua maldade. Eles eram muito insensíveis a qualquer justiça para reagir da maneira pretendida.
Em segundo lugar, na instância do exemplo de Cristo e casos semelhantes, a sociedade em si seria destruída pelo completo controle dos homens maus se o princípio da não-resistência fosse cumprido. Se, então, o objetivo da não-resistência é salvar a sociedade, a não-resistência seria não-Cristã em tais casos.
Finalmente, o princípio da não-resistência deve ser aplicado em consonância com aquele outro princípio já discutido, a saber, o princípio da autodefesa. Nós não podemos permitir que outros a tirem a nossa vida. Se o fizéssemos, nós lhes permitiríamos fazer injustiça a Deus.
Certamente, quando este mandamento for colocado diante do povo de Deus em seu rico significado, uma grande bênção para a sociedade pode ser esperada em resposta à oração.