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A Interpretação das Escrituras, por A. W. Pink • Caps 1 e 2

 

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Traduzido do original em Inglês

Interpretation of the Scriptures
By A. W. Pink

 

Via: PBMinistries.org

(Providence Baptist Ministries)

 

OEstandarteDeCristo.com © 2016

 

Tradução por William Teixeira, Camila Rebeca Almeida e Cesare Turazzi

Revisão por William Teixeira e Camila Almeida

Edição e Capa por William Teixeira

 

1ª Edição em Português: Setembro de 2016

 

As citações bíblicas nesta tradução são da versão Almeida Corrigida Fiel | ACF Copyright © 1994, 1995, 2007, 2011 Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil.

 

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Agradecimentos

Nós editores do EC, William e Camila, queremos aproveitar a ocasião para externar os nossos mais sinceros agradecimentos a…

 

 

Silas e Andrea Croce, um casal abençoado, que por seu amor e generosidade, tem aberto a sua casa e seus corações para nós e nos ajudado em tudo nas horas que mais precisamos.

Victor Corradi, generoso apoiador de nosso trabalho de traduções, cuja ajuda em tempo oportuno manifestou o inefável amor e cuidado de Deus por nós.

Josué Sakurai, um homem bíblico, cujo temor a Deus e notória reverência à Sua Palavra nos encorajam a estudar a sã doutrina e viver piedosamente.

Cesare Turazzi, abnegado irmão em Cristo, que de boa vontade foi nosso cooperador nesta tradução e em outros trabalhos para nosso Deus.

 

Louvamos e glorificamos ao nosso Deus por todos vocês, amados irmãos, e oramos que vocês cresçam, cada vez mais, na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Amém!

 


 

Sumário

 

Prefácio

 

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14

Capítulo 15

Capítulo 16

Capítulo 17

Capítulo 18

Capítulo 19

Capítulo 20

Capítulo 21

Capítulo 22

 


 

Prefácio

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“As Sagradas Escrituras são a única, suficiente, correta e infalível regra de todo conhecimento, fé e obediência salvíficos”.[1] Esta frase é o grande prefácio e fundamento de toda a Confissão Batista. Uma compressão correta desta gloriosa afirmação determinará a piedade e veracidade da nossa fé e vida Cristãs.

 

Deus nos deu um Livro de Livros, obviamente Ele queria que o lêssemos, entendêssemos e praticássemos o que entendemos. Devido a isso os Cristãos deveriam amar a leitura e estar entre os melhores leitores. Mas quão diferente é a nossa realidade! O “Cristão comum” dos nossos dias entende pouco ou quase nada de Bíblia, não gosta de ler, frequentemente não consegue compreender o que lê, é um péssimo leitor. Irmãos, não convém que isso seja assim! Precisamos nos arrepender e mudar. Urgentemente!

 

Há em nossa geração, como houve em todas as outras passadas, uma ignorância geral a respeito do verdadeiro ensino das Escrituras, de sua verdadeira interpretação. Isso é explicado, pelo menos em parte, pelo grande desinteresse e negligência, mesmo daqueles que se dizem Cristãos, em saber a interpretação correta daquilo que “está escrito”. Porque levaríamos a Palavra de Deus a sério se não levamos o próprio Deus a sério? A nossa atitude para com a Palavra de Deus revela muito da nossa atitude para com o próprio Deus.

 

Assim como a doutrina é segundo a piedade, a piedade é segundo a doutrina bíblica. Sem um conhecimento bíblico verdadeiro é impossível sermos Cristãos verdadeiros. Eu não posso ser Cristão, se não conheço as “sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Timóteo 6:3).

 

Por outro lado, “muitos podem ter um conhecimento geral da Bíblia, porém há uma grande falta no que diz respeito à capacidade de raciocinar a partir das Escrituras de uma forma doutrinariamente consistente. Nós devemos conhecer a Bíblia doutrinariamente e devemos conhecer nossa doutrina biblicamente. A menos que cheguemos a um conhecimento doutrinário consistente das Escrituras, o nosso conhecimento da Palavra de Deus é tanto deficiente quanto defeituoso”.[2]

 

Diante deste triste cenário nada podemos fazer senão nos juntarmos ao profeta Isaías em seu clamor: “À lei e ao testemunho!” (8:20), voltemos às Escrituras Sagradas, voltemos à pura Palavra de Deus! Mas somente ter as Escrituras nas mãos não é suficiente, é preciso saber interpretá-las, e corretamente! E para isto esta obra magistral será de grande utilidade para o leitor ávido por saber o real significado do que “está escrito”, para aquele que diante das Escrituras abertas diz sinceramente em seu coração: “Fala, Senhor, porque o teu servo ouve!” (1 Samuel 3:9). O autor dispensa apresentações, é provavelmente o melhor exegeta do século XX. Quem está familiarizado com seus escritos sabe que as obras do amado A. W. Pink são marcadas por profundo apego à Palavra de Deus e fidelidade às Sagradas Letras. O autor é um exemplo vivo da doutrina que aqui ensina de forma maravilhosamente bíblica.

 

Havendo traduzido, revisado, lido e meditando sobre a obra, considero-me capaz de afirmar que dificilmente encontraremos debaixo do céu — para usar as palavras do autor — um “tratado sobre hermenêutica”, tão bíblico e completo, tão profundo e ao mesmo tempo tão prático. Deixemos que o próprio autor fale sobre sua obra:

 

Nestes capítulos temos nos esforçado para colocar diante de nossos leitores quais as regras que temos usado há muito tempo em nosso próprio estudo da Palavra. Elas foram projetadas mais especialmente para os jovens pregadores, nós não poupamos esforços para torná-los tão lúcidos e completos quanto possível, colocando em suas mãos esses princípios de exegese que nos eram de grande proveito.

 

Se você é um pregador jovem, como eu, certamente receberá uma valiosíssima ajuda para desenvolver seu ministério de pregação da Palavra; visto que se requer dos despenseiros que cada um se ache fiel, as regras de Interpretação das Escrituras aqui propostas lhe ajudarão a apresentar-te a Deus aprovado, como obreiro que não tem de que se envergonhar, que maneja bem a palavra da verdade (1 Coríntios 4:2; 2 Timóteo 2:15).

 

Finalmente permitam-me compartilhar com vocês um conselho que recebi de um senhor norte-irlandês muito sábio cujo falar inspira temor reverente. Estávamos falando sobre pregação e pregadores, ele me disse: “William, o grande pregador não é aquele que conhece a Bíblia de capa a capa. O grande pregador não é aquele que domina a Palavra de Deus, mas aquele que é dominado pela Palavra de Deus!”.

 

Que sejamos dominados pela Palavra de nosso Deus! Para a glória de Deus! Amém!

 

 

Ora, ao Rei dos séculos, imortal, invisível,

Ao único Deus sábio, Salvador nosso — Pai, Filho e Espírito,

Seja glória e majestade, domínio e poder,

Agora, e para todo o sempre. Amém e Amém!

 

 

William Teixeira,

11 de setembro de 2016.

 

 


 

Capítulo 1

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O homem é notoriamente uma criatura de extremos, e em nenhum lugar esse fato se faz mais evidente do que na atitude tomada por aqueles que diferem quanto a esse assunto. Considerando que alguns têm afirmado que a Bíblia está escrita em uma linguagem tão simples que não exige nenhuma explicação, um número muito maior suportou os papistas buscando persuadi-los de que seu conteúdo é tão acima do alcance do intelecto natural, que seus assuntos são profundos e elevados, que a sua linguagem é tão obscura e ambígua que o homem comum é totalmente incapaz de compreendê-la por seus próprios esforços, e, portanto, é um ato de sabedoria de sua parte trazer suas conclusões ao julgamento da “santa mãe igreja”, que descaradamente afirma ser o único intérprete divinamente autorizado e qualificado dos oráculos de Deus. É assim que o Papado retém a Palavra de Deus dos leigos e impõe seus próprios dogmas e superstições aos mesmos. A maior parte dos leigos está muito contente que isto seja assim, pois dessa forma eles sentem-se livres da obrigação de examinarem as Escrituras por si mesmos. O caso também não é muito melhor com muitos protestantes, pois na maioria dos casos são muito indolentes por eles mesmos, e apenas acreditam no que ouvem nos púlpitos.

 

A principal passagem invocada pelos Romanistas, em uma tentativa de reforçar a sua argumentação perniciosa de que a Bíblia é um livro perigoso — por causa de sua suposta obscuridade — se posto nas mãos das pessoas comuns é 2 Pedro 3:15-16. É nessa passagem que o Espírito Santo nos disse que o apóstolo Paulo, de acordo com a sabedoria dada a ele, falou em suas epístolas de “pontos difíceis de entender, que os indoutos e inconstantes torcem, e igualmente as outras Escrituras, para sua própria perdição” (2 Pedro 3:16). Mas, como Calvino há muito tempo apontou, “não somos proibidos de ler as epístolas de Paulo, pelo fato delas conterem algumas coisas difíceis de entender, pelo contrário, elas são recomendadas para nós, pois podem nos proporcionar uma mente serena e ensinável”. Deve-se notar também nesse verso que há “pontos” e não que há “muitos pontos”, e que eles são “difíceis de entender” e não “impossíveis de serem entendidos”! Além disso, a obscuridade não está neles, mas na depravação da nossa natureza que resiste às exigências da parte de Deus e no orgulho de nossos corações, que despreza a busca da iluminação provinda de Deus. O termo “indoutos” aqui se refere não ao analfabetismo, mas ao ser ignorante a respeito de Deus; e “inconstantes” são aqueles que não possuem nenhuma convicção, os quais, como cata-ventos, viram-se à medida que um vento de doutrina sopra sobre eles.

 

Por outro lado, existem algumas almas mal orientadas que suportam que o pêndulo seja movido para o extremo oposto, negando que as Escrituras precisam de qualquer interpretação. Eles asseveram que elas foram escritas para as almas simples, e que elas dizem o que significam e significam o que elas dizem. Eles insistem que é necessário crer na Bíblia, e não a explicar. Todavia, é errado colocar essas coisas em oposição uma à outra: ambas são necessárias. Deus não requer de nós uma fé cega, mas uma fé inteligente, e por isso três coisas são indispensáveis: que a Sua Palavra deva ser lida (ou ouvida), compreendida e que nos apropriemos dela pessoalmente. Ninguém menos que o próprio Cristo exortou: “Quem lê, entenda” (Mateus 24:15) — a mente deve ser exercitada sobre o que é lido. Que uma certa quantidade de compreensão é imperativa é mais claramente mostrado na parábola de nosso Senhor acerca do semeador e da semente: “Ouvindo alguém a palavra do reino, e não a entendendo, vem o maligno, e arrebata o que foi semeado no seu coração… Mas, o que foi semeado em boa terra é o que ouve e compreende a palavra” (Mateus 13:19,23). Então não poupemos nenhum esforço para chegarmos ao significado do que lemos, pois que uso podemos fazer do que é ininteligível para nós?

 

Outros tomam a posição de que o único intérprete que eles precisam, o único que é adequado para essa tarefa, é o Espírito Santo. Eles citam: “E vós tendes a unção do Santo, e sabeis todas as coisas… E a unção que vós recebestes dele, fica em vós, e não tendes necessidade de que alguém vos ensine” (1 João 2:20,27). Declarar que eu não preciso de ninguém, senão do Espírito Santo para me ensinar pode soar muito honroso a Ele, mas isso é de fato verdade? Todas as afirmações humanas devem ser testadas, pois nada deve ser dado como certo à medida que as coisas espirituais estão em causa. Nós respondemos que essa posição não é honrosa ao Espírito Santo, caso contrário, Cristo teria agido inutilmente ao dar “pastores e doutores, querendo o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério” (Efésios 4:11-12). Devemos sempre ter em mente que há um passo muito curto entre confiar em Deus e tentá-lO, entre a fé e a presunção (Mateus 4:6-7). Também não devemos esquecer qual é o método comum e usual que Deus usa para suprir as necessidades de Suas criaturas, a saber, de forma mediada e não imediatamente, por causas secundárias e por agentes humanos. Isso diz respeito tanto ao reino espiritual quanto ao natural. Aprouve a Deus dar a Seu povo instrutores capacitados, e em vez de ignorá-los com altivez devemos (após testarmos o seu ensino – Atos 17:11) aceitar com gratidão qualquer auxílio que eles possam nos conceder.

 

Longe de nós escrevermos qualquer coisa que venha a desencorajar o jovem crente de reconhecer e perceber sua dependência de Deus, e sua necessidade de estar constantemente voltando-se para Ele em busca de sabedoria do alto, e isso particularmente quando estiver engajado na leitura ou na meditação sobre a Sua Santa Palavra. No entanto, ele deve ter em mente que o Altíssimo não obriga a Si mesmo a responder às nossas orações de qualquer maneira ou forma particular. Em alguns casos, Ele tem o prazer de iluminar nosso entendimento direta e imediatamente, porém mais frequentemente Ele nos ilumina através da instrumentalidade de outros. Assim, Ele não somente nos afasta individualmente do orgulho, mas também honra aquilo que Ele mesmo institui, pois Ele nomeou homens qualificados para “alimentar o rebanho” (1 Pedro 5:2), e para “lhes falar a palavra de Deus”; a fé dos quais somos convidados a imitar (Hebreus 13:7). É verdade que, por um lado, Deus tem escrito Sua Palavra como um caminho santo, de modo que aquele que nele caminha, mesmo que seja um tolo, não errará (Isaías 35:8); e ainda assim, por outro lado, há “mistérios” e “as profundezas de Deus” (1 Coríntios 2:10); e enquanto há “leite” adequado aos pequeninos há também “alimento sólido”, que pertence apenas àqueles que são experientes (Hebreus 5:13-14).

 

Retornemos agora do geral para o particular; permita-nos evidenciar que existe uma real necessidade de interpretação.

 

Em primeiro lugar, a fim de explicar as aparentes contradições, tais como: “Tentou[3] Deus a Abraão, e disse-lhe… Toma agora o teu filho, o teu único filho… e oferece-o ali em holocausto” (Gênesis 22:1-2 – tradução literal). Agora coloque ao lado dessa declaração o testemunho de Tiago 1:13: “Ninguém, sendo tentado, diga: De Deus sou tentado; porque Deus não pode ser tentado pelo mal, e a ninguém tenta”. Esses versos parecem claramente contradizerem um ao outro, mas o crente sabe que esse não é o caso, embora ele possa falhar em demonstrar que não há inconsistência nas mesmas. É, portanto, o significado desses versos que deve ser verificado. E isso não é muito difícil. Claramente a palavra “tentar” não é usada no mesmo sentido em ambas as passagens. A palavra “tentar” tem tanto um significado primário quanto um secundário. Primariamente essa palavra significa experimentar, provar, fazer teste. Em segundo lugar, significa desencaminhar, seduzir ou incitar ao que é mal. Sem sombra de dúvida, o termo é usado em Gênesis 22:1 em seu sentido primário, pois mesmo que não houvesse ocorrido a intervenção divina no último momento, Abraão não haveria cometido nenhum pecado em matar Isaque, uma vez que Deus o havia ordenada a fazê-lo.

 

Pela tentação do Senhor a Abraão nessa ocasião devemos entender que Ele não buscava incitá-lo a fazer o que é mal como Satanás faz, mas sim que Ele provou a lealdade do patriarca, dando-lhe a oportunidade de mostrar o seu temor, sua fé e seu amor para com Ele. Quando Satanás tenta, ele coloca uma sedução diante de nós com o objetivo de nos levar à ruína; mas quando Deus nos tenta ou prova, Ele tem Seu coração o nosso bem-estar. Toda provação é, portanto, uma tentação, pois ela serve para manifestar a disposição predominante do coração — seja sagrada ou profana. Cristo foi “em tudo foi tentado, mas sem (habitação) pecado” (Hebreus 4:15). Sua tentação era real, mas não houve conflito dentro dEle (como há em nós) entre o bem e o mal — Sua santidade inerente repeliu as ímpias sugestões de Satanás como a água repele fogo. Devemos “tende grande gozo quando cairdes em várias tentações” ou “em várias provações” [Cf. Tiago 1:2], uma vez que essas são meios para mortificar nossas concupiscências, testes de nossa obediência e oportunidades para provar a suficiência da graça de Deus. Obviamente que não somos chamados a ter grande gozo nos estímulos ao pecado em si!

 

Outrossim, “O Senhor está longe dos ímpios” (Provérbios 15:29), e ainda em Atos 17:27, somos informados de que Ele “não está longe de cada um de nós” — essas palavras foram dirigidas a um público pagão! Essas duas declarações parecem se contradizer, sim, e a menos que elas sejam interpretadas, de fato elas se contradizem. Deve-se, então, verificar em que sentido Deus “está longe” e em que sentido Ele “não está longe” dos ímpios — isto é o que quero dizer por “interpretação”. Uma distinção deve ser feita entre a presença poderosa ou providencial de Deus e Sua presença favorável. No que diz respeito à Sua essência espiritual ou onipresença Deus está sempre perto de todas as Suas criaturas (pois Ele “enche os céus e a terra” – Jeremias 23:24) sustentando as suas existências, conservando suas almas em vida (Salmos 64:9), concedendo-lhes as misericórdias de Sua providência. Mas desde que os maus estão longe de Deus em suas afeições (Salmos 73:27), dizendo em seus corações: “Retira-te de nós; porque não desejamos ter conhecimento dos teus caminhos” (Jó 21:14), desse modo a Sua presença graciosa está longe deles: Ele não Se manifestará a eles, nem tem comunhão com eles, nem ouve suas orações (“ao soberbo conhece-o de longe” – Salmos 138:6), nem lhes socorrerá no momento da sua necessidade, e ainda vai ordenar-lhes: “Apartai-vos de mim, malditos” (Mateus 25:41). Em relação àqueles a quem o justo Deus está graciosamente perto, está escrito: “Perto está o Senhor dos que têm o coração quebrantado, e salva os contritos de espírito. Perto está o Senhor de todos os que o invocam, de todos os que o invocam em verdade” (Salmos 34:18, 145:18).

 

Vejamos mais um exemplo: “Se eu testifico de mim mesmo, o meu testemunho não é verdadeiro” e “Ainda que eu testifico de mim mesmo, o meu testemunho é verdadeiro” (João 5:31, 8:14). Outro par de opostos! No entanto, não há nenhum conflito entre essas passagens quando corretamente interpretadas. Em João 5:17-31, Cristo estava declarando sete vezes Sua igualdade com o Pai: pela primeira vez em serviço, em seguida, na vontade. O verso 19 significa que Ele não poderia fazer nada que fosse contrário ao Pai, pois Eles eram de perfeito acordo (veja v. 30). Da mesma forma, Ele não podia dar testemunho de Si mesmo independentemente do Pai, pois isso seria um ato de insubordinação. Em vez disso, Seu próprio testemunho estava em perfeito acordo com isso — o próprio Pai (v. 37) e as Escrituras (v. 39), davam testemunho de Sua Divindade absoluta. Mas em João 8:13-14, Cristo estava dando uma resposta direta aos fariseus, os quais disseram que seu testemunho era falso. Isso Ele negou enfaticamente, e apelou novamente para o testemunho do Pai (v. 18). Agora, vemos um último exemplo: “Eu e o Pai somos um” e “Meu Pai é maior do que eu” (João 10:30, 14:28). Na primeira passagem, Cristo estava falando de Si mesmo de acordo com o Seu ser essencial; na última, Cristo se referia ao Seu caráter de mediação ou posição oficial.

 

Em segundo lugar, a interpretação é necessária para evitar sermos enganados pelo mero som das palavras. Muitíssimos têm formado concepções erradas da língua utilizada em diferentes versos por causa de sua incapacidade de compreender seu sentido. Para muitos, parece algo ímpio dar um significado diferente a um termo além daquele que parece ser seu significado óbvio; e mais, uma advertência suficiente contra isso deve ser dada no caso daqueles que tão fanática e teimosamente se apegam às Palavras de Cristo: “este [pão ázimo] é o meu corpo”, a ponto de recusarem-se a permitir que essa expressão deva significar: “isto representa o meu corpo” — Caso semelhante aparece em: “os sete castiçais, que viste, são [ou seja, simbolizar] as sete igrejas” (Apocalipse 1:20). Essa advertência estende-se ainda ao erro do Universalismo, o qual se baseia em termos indefinidos e lhes dar um significado ilimitado. O Arminianismo erra no mesmo sentido. “Para que, pela graça de Deus, provasse a morte por todos” (Hebreus 2:9), aqui Caim, Faraó e Judas não devem ser incluídos na expressão “todo homem”. Essa expressão deve ser entendida à luz de Lucas 16:16; Romanos 12:3 e 1 Coríntios 4:5; e a expressão “todos os homens” que aparece em 1 Timóteo 2:4-6, não deve ser entendida no sentido de todos sem exceção, mais do que quando expressões semelhantes aparecem em Lucas 3:15; João 3:26 e Atos 22:15.

 

“Noé era homem justo e perfeito em suas gerações” (Gênesis 6:9). De Jó, também, diz-se que ele era “perfeito e reto” (1:1 – trad. lit.). Quantos se deixaram ser enganados pelo som dessas palavras. Quantos conceitos falsos têm sido formados acerca de seu próprio significado! Aqueles que acreditam no que eles denominam “a segunda bênção” ou a “inteira santificação” consideram que essas passagens confirmam a sua afirmação de que a perfeição e a completa ausência de pecado é atingível nessa vida. No entanto, um erro tal como esse é muito indesculpável, pelo fato de que o que está escrito em seguida mostra claramente que esses homens estavam muito longe de serem sem defeito moral: um embriagou-se e o outro amaldiçoou o dia do seu nascimento. A palavra “perfeito” na passagem em questão e em passagens semelhantes significa “honesto, sincero”, que se opõe à hipocrisia. “Todavia falamos sabedoria entre os perfeitos” (1 Coríntios 2:6). Em Filipenses 3:15, a palavra “perfeito significa “maduro” como distinto de infantil — o mesmo acontece com outra ocorrência de “perfeitos” em Hebreus 5:14.

 

“Eu vou fazer bebido seus príncipes, e os seus sábios… e dormirão um sono perpétuo, e jamais acordarão, diz o Rei, cujo nome é o Senhor dos Exércitos” (Jeremias 51:57). Essas palavras são citadas por materialistas grosseiros, que acreditam na aniquilação das almas dos ímpios. Eles não precisam que nos detenhamos por muito tempo, pois a linguagem é claramente figurativa. Deus estava prestes a executar o juízo sobre o orgulho da Babilônia, e como um fato histórico a cidade forte foi capturada enquanto o seu rei e seus cortesãos estavam bêbados, sendo mortos, de modo que eles não mais acordaram na Terra. Que “sono eterno” não pode ser entendido literalmente é absolutamente evidente a partir de outras passagens que anunciam expressamente a ressurreição dos ímpios – Daniel 12:2; João 6:29.

 

“Não viu iniquidade em Israel, nem contemplou maldade em Jacó” (Números 23:21). Muitas vezes essas palavras têm sido consideradas separadamente, sem qualquer relação com o seu contexto. Elas constituíam uma parte da explicação de Balaão a Balaque, do motivo pelo qual ele não podia amaldiçoar a Israel para que esse fosse exterminado pelos midianitas. Tal linguagem não significa que Israel estava em um estado sem pecado, mas que até então eram livres de qualquer rebelião aberta ou apostasia contra Yahwéh. Eles não haviam sido culpados de qualquer crime hediondo como idolatria. Eles haviam se portado de modo a não serem considerados merecedores de maldições e extermínio. Mas depois, o Senhor viu “perversidade” em Israel, e entregou a Babilônia para executar Seu julgamento sobre ele (Isaías 10). É injustificável aplicar essa declaração em relação à Igreja de modo absoluto, pois Deus “vê iniquidade” em Seus filhos, como Sua vara de correção demonstra; embora Ele não o impute para condenação penal.

 

Em terceiro lugar, a interpretação é necessária para a inserção de uma palavra explicativa em algumas passagens. Assim: “Tu és tão puro de olhos, que não podes ver [aprovar] o mal, e a opressão não podes [indulgentemente] contemplar” (Habacuque 1:13). Alguns termos de qualificação como esses são necessários, caso contrário, devemos considerá-los como contradizendo passagens como: “Os olhos do Senhor estão em todo lugar, contemplando os maus e os bons” (Provérbios 15:3). Deus nunca contempla o mal com indulgência, mas Ele o faz para castigá-lo. Mais uma vez. “Quem tem resistido à sua vontade [segredo ou decretiva]?” (Romanos 9:19); “nem fez conforme a sua vontade [revelada ou preceptiva]” (Lucas 12:47) — a menos que sejam feitas essas distinções a Escritura iria contradizer a si mesma. Novamente: “Bem-aventurados os que [evangelicamente, isto é, com desejo e esforço genuínos] guardam os seus testemunhos” (Salmos 119:2), pois ninguém é capaz guardar os testemunhos de Deus de acordo com o estrito rigor da Sua Lei.

 

Para concluir nossos exemplos acerca da necessidade de interpretação vamos citar um verso muito familiar e simples: “Jesus Cristo é o mesmo, ontem, e hoje, e eternamente” (Hebreus 13:8). Será que isso “quer dizer o que significa?”. Certamente, diz o leitor; e o escritor concorda de coração. Mas você tem certeza de que realmente entende o significado do que é dito? Cristo não sofreu nenhuma mudança desde os dias da Sua carne? Ele é absolutamente o mesmo que foi ontem? Ele ainda experimenta fome, sede e cansaço corporais? Ele ainda está na “forma de servo”, em um estado de humilhação, ainda é “o homem das dores”? Obviamente, a interpretação torna-se aqui necessária, pois deve haver um sentido em que Ele ainda permanece “o mesmo”. Ele é imutável em Sua pessoa essencial, no exercício de Seu ofício de Mediador, em Sua relação e atitude para com Sua Igreja — Ele a ama com um amor eterno. Contudo, Ele mudou em Sua humanidade, por que essa foi glorificada; e também mudou em relação à posição que Ele ocupa agora (Mateus 28:18; Atos 2:36).

 

Assim, os versos mais conhecidos e mais elementares exigem um exame cuidadoso e meditação com oração, a fim de que cheguemos ao verdadeiro significado de seus termos.

 

 

Capítulo 2

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No capítulo anterior procuramos mostrar a necessidade da interpretação, nesse buscaremos determinar a importância do que se entende por cada frase da Sagrada Escritura. O que Deus disse para nós é de inestimável importância e valor, contudo, que proveito podemos tirar disso, a menos que o seu significado seja claro para nós? O Espírito Santo nos deu mais do que uma sugestão disto quando Ele explicou o significado de certas palavras. Assim, no primeiro capítulo do Novo Testamento se diz de Cristo: “E chamá-lo-ão pelo nome de EMANUEL, que traduzido é: Deus conosco” (Mateus 1:23). E, novamente: “Achamos o Messias (que, traduzido, é o Cristo)” (João 1:41). Outrossim: “E levaram-no ao lugar do Gólgota, que se traduz por lugar da Caveira” (Marcos 15:22). Mais uma vez: “Porque este Melquisedeque, que era rei de Salém primeiramente é, por interpretação, rei de justiça, e depois também rei de Salém, que é rei de paz” (Hebreus 7:1-2). Essas expressões deixam claro que é essencial que devemos compreender o sentido de cada palavra usada nas Escrituras. A Palavra de Deus é composta de palavras, ainda que essas não transmitam nada para nós enquanto permanecem ininteligíveis. Assim, determinar precisamente a importância do que lemos deve ser a nossa primeira preocupação.

 

Antes de estabelecermos algumas das regras a serem observadas e os princípios a serem utilizados na interpretação da Escritura, gostaríamos de salientar várias coisas que necessitam ser encontradas naqueles que desejam ser intérpretes das Escrituras. Boas ferramentas são realmente indispensáveis para um bom trabalho, mas mesmo as melhores ferramentas possuem pouco proveito nas mãos de alguém que não é qualificado para usá-las. Métodos de estudo da Bíblia possuem apenas uma importância relativa; mas o espírito com que se estuda as Escrituras é totalmente importante. Não precisamos fazer nenhuma argumentação para provar que um livro espiritual exige um leitor de mente espiritual, pois “o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente” (1 Coríntios 2:14). A Palavra de Deus é uma revelação de coisas que dizem respeito aos nossos mais altos interesses e bem-estar eterno, e ela exige uma aceitação implícita e cordial. Algo mais do que a formação intelectual é necessária: o coração e a cabeça devem ser retificados. Somente onde há honestidade de alma e espiritualidade de coração haverá clareza de visão para perceber a Verdade; só então a mente será capaz de discernir a importância completa do que é lido, e entender não somente o significado literal de suas palavras, mas também os sentimentos que elas foram projetadas para transmitir, e qual é a maneira adequada de reagir a essas percepções.

 

Vamos repetir aqui o que escrevi em Studies in the Scriptures há vinte anos atrás: “Há uma séria razão para acreditar que muito da leitura e do estudo da Bíblia dos últimos anos tem sido espiritualmente inútil para as pessoas envolvidas nele. Sim, nós vamos mais longe: tememos muito que, em muitos casos, isso tem se mostrado mais uma maldição do que uma bênção. Essa é uma linguagem forte, estamos bem conscientes disso, mas não é mais forte do que aquela que o caso exige. Os dons de Deus podem ser usados ​​indevidamente e misericórdias divinas podem ser abusadas. Que isto tem acontecido assim no presente caso é evidenciado pelos frutos produzidos. Mesmo o homem natural pode se dedicar (e muitas vezes se dedica) ao estudo das Escrituras com o mesmo entusiasmo e prazer com que se dedicaria a um estudo das ciências. Quando este for o caso, a quantidade de conhecimento que obtém é maior, e assim também é o seu orgulho. Como um químico envolvido na realização de experiências interessantes, o pesquisador intelectual da Palavra fica muito eufórico quando ele faz uma nova descoberta, mas a alegria deste último não é mais espiritual do que a do primeiro. Assim como o sucesso do químico geralmente aumenta seu senso de autoestima e faz com que ele menospreze aqueles que são mais ignorantes do que ele próprio, como, infelizmente, tem sido o caso daqueles que estudam os números, as tipologias e as profecias encontrados na Bíblia…”.

 

Uma vez que a imaginação do homem, como todas as outras faculdades do seu ser moral, é permeada e viciada pelo pecado, as ideias que ela sugere, mesmo quando ponderando sobre os oráculos divinos, são propensas a serem enganosas e corruptas. O fato de sermos incapazes, por nós mesmos, de interpretar a Palavra de Deus corretamente revela parte da enfermidade que nosso pecado trouxe sobre nós; mas é parte do ofício gracioso do Espírito Santo guiar os crentes à verdade, e lhes permitir apreender as Escrituras. Essa é uma operação distinta e especial do Espírito nas mentes do povo de Deus, na qual Ele comunica sabedoria espiritual e luz a eles, pois essas coisas são necessárias para um correto entendimento da mente de Deus em Sua Palavra, e também para que haja um apropriar-se das coisas celestiais que nela se encontram. Pela expressão “uma operação distinta”, queremos dizer algo ab extra ou para além de Seu trabalho inicial de vivificação; porquanto é um fato abençoado que na regeneração Ele “nos deu entendimento para que conheçamos ao Verdadeiro” (1 João 5:20), mas é preciso mais para que possamos “conhecer o que nos é dado gratuitamente por Deus” (1 Coríntios 2:12). Isto é evidente a partir do caso dos apóstolos, pois acompanharam e conversaram com Cristo pelo período de três anos, no entanto, somos informados que em uma data posterior: “Então abriu-lhes o entendimento para compreenderem as Escrituras” (Lucas 24:45).

 

Como o que já foi aludido deve impressionar o Cristão a respeito da necessidade de santo cuidado ao ler a Palavra, para que ele não extraia conteúdos para o seu próprio prejuízo! Como isso deve humilhá-lo diante do autor das Escrituras e fazê-lo perceber sua total dependência dEle! Se o novo nascimento fosse suficiente por si só para capacitar o crente a compreender as coisas divinas, o apóstolo nunca pediria, em relação aos santos de Colossos, para que eles fossem “cheios do conhecimento da sua vontade [de Deus], em toda a sabedoria e inteligência espiritual” (1:9), nem que ele teria dito a seu filho na fé, “Considera o que digo, e o Senhor te dê entendimento em tudo” (2 Timóteo 2:7). Nunca houve uma noção mais tola nem uma ideia mais perniciosa foi entretida do que aquelas que sustentam que os santos mistérios do Evangelho de certo modo encontram-se dentro dos limites da razão humana e que podem ser conhecidos de forma proveitoso e prática sem a ajuda eficaz do bendito Espírito da Verdade. Não estou dizendo que o Espírito Santo nos instrui de qualquer outra forma que não por e através de nossa razão e compreensão, pois de outro modo seríamos reduzidos ao nível de criaturas irracionais; mas me refiro ao fato de que Ele deve iluminar as nossas mentes, elevar e guiar os nossos pensamentos, aquecer nossas afeições e mover as nossas vontades, a fim de, assim, capacitar os nossos entendimentos para apreendermos as coisas espirituais.

 

O Espírito Santo não ensina individualmente o Cristão e nem por qualquer meio o torna independente ou lhe impede de fazer uso diligente e consciente do ministério do púlpito, pois esse é um importante meio designado por Deus para a edificação de Seu povo. Existe um meio termo entre a atitude do eunuco etíope que, quando indagado: “Entendes tu o que lês?”, respondeu: “Como poderei entender, se alguém não me ensinar?” (Atos 8:30-31) e o uso errado feito de “não tendes necessidade de que alguém vos ensine” (1 João 2:27). Existe um meio termo entre uma dependência servil mediante instrumentos humanos e uma independência arrogante daqueles a quem Cristo chamou e qualificou para apascentar Suas ovelhas. “Não obstante, a sua compreensão da Verdade, a sua apreensão disto e a fé nela, não são coisas sobre as quais se deve descansar nem em que se deve atribuir sua autoridade, eles não são designados por Deus para seres ‘dominadores da vossa fé’, mas ‘cooperadores de vosso gozo’ (2 Coríntios 1:24). E é aí que depende todo o nosso interesse naquela grande promessa de que seremos 'todos ensinados por Deus', pois não somos assim, a menos que aprendemos com Ele as coisas que Ele revelou em Sua Palavra” (John Owen).

 

“E todos os teus filhos serão ensinados do Senhor” (Isaías 54:13, e cf. João 6:45). Essa é uma das grandes marcas que distinguem o regenerado. Há multidões de religiosos não-regenerados que são bem versados na letra da Escritura, e familiarizados com a história e as doutrinas do Cristianismo, mas seu conhecimento só veio a partir de meios humanos de informação — pais, professores de escola dominical, ou a sua leitura pessoal. Há dezenas de milhares de professos que não possuem a graça divina, embora possuam um conhecimento intelectual das coisas espirituais que é considerável, consistente e claro; contudo, eles não são divinamente ensinados, como fica evidente pela ausência dos frutos que sempre acompanham aqueles que são ensinados pelo Senhor. Da mesma forma, há um grande número de pregadores que abominam os erros do Modernismo e batalham pela Fé. Eles foram ensinados em institutos bíblicos ou treinados em seminários teológicos, mas temos grande temor de que eles são estranhos a uma obra sobrenatural da graça em suas almas, e que o seu conhecimento da verdade consiste meramente em noções desacompanhadas de qualquer unção divina, poder salvífico ou efeitos de transformação. Por aplicação diligente e esforço pessoal pode-se garantir uma vasta quantidade de informação bíblica, e se tornar um hábil expositor da Palavra; mas não é possível obter dessa mesma forma um conhecimento que afete e purifique seus próprios corações. Ninguém, senão o Espírito da Verdade pode escrever a Lei de Deus em meu coração, imprimir a Sua imagem na minha alma, e me santificar pela Verdade.

 

Em primeiro lugar, está a mais essencial qualificação para compreender e interpretar as Escrituras, a saber, uma mente iluminada pelo Espírito Santo. Essa necessidade é fundamental e universal. A respeito dos judeus nos é dito: “E até hoje, quando é lido Moisés, o véu está posto sobre o coração deles” (2 Coríntios 3:15). Embora o Antigo Testamento seja profundamente venerado e diligentemente estudado pelos “ortodoxos”, contudo seu significado espiritual permanece imperceptível para eles. Esse também é o caso com os gentios. Há um véu de má vontade sobre o coração do homem caído, pois “a inclinação da carne é inimizade contra Deus” (Romanos 8:7). Há um véu de ignorância sobre a mente deles. Como uma criança que soletra as letras e aprende a pronunciar palavras, contudo não entende o significado das palavras que pronuncia, assim também nós podemos conhecer o significado literal ou gramatical da Palavra e ainda não possuirmos nenhum conhecimento espiritual da mesma e, portanto, pertencer àquela geração a respeito da qual está escrito: “Ouvindo, ouvireis, mas não compreendereis, e, vendo, vereis, mas não percebereis” (Mateus 13:14). Há um véu de preconceito sobre nossas afeições. “Nossos corações estão envoltos por fortes afeições ao mundo, e por isso não podemos discernir claramente a verdade prática” (Thomas Manton). O que entra em conflito com os interesses naturais e requer a negação de nós mesmos não é bem-vindo. Há um véu de orgulho que efetivamente nos impede de vermos a nós mesmos no espelho da Palavra.

 

Entretanto, o véu não é completamente removido do coração na regeneração, por causa disso a nossa visão é ainda muito imperfeita e nossa capacidade de lidar com a verdade de forma espiritualmente proveitosa é pouco considerável. Em sua primeira epístola à igreja de Corinto, o apóstolo disse: “se alguém cuida saber alguma coisa, ainda não sabe como convém saber” (8:2). É uma grande misericórdia quando o Cristão é levado a perceber esse fato. Enquanto ele permanece nesse mundo mal e o princípio corrupto da carne continua nele, o crente precisa ser conduzido e ensinado pelo Espírito. Isso é muito evidente a partir do caso de Davi, porquanto ele declarou: “Tenho mais entendimento do que todos os meus mestres”, mas antes vamos encontrá-lo orando a Deus: “Abre tu os meus olhos, para que veja as maravilhas da tua lei… Ensina-me, ó Senhor, o caminho dos teus estatutos… Dá-me entendimento” (Salmos 119:18,33,34,99). Observe que o Salmista não se queixou da obscuridade da lei de Deus, mas percebeu que a falha estava em si mesmo. Nem pediu novas revelações (por sonhos ou visões), mas, em vez disso, pediu uma visão mais clara daquilo que já havia sido revelado. Aqueles que são ensinados melhor e por mais tempo estão sempre mais prontos para se sentarem aos pés de Cristo e aprenderem com Ele (Lucas 10:39).

 

Deve ser devidamente observado que o verbo no Salmo 119:18, literalmente, significa “descobrir, desvendar os meus olhos”, o que confirma a nossa frase de abertura no último parágrafo. A Palavra de Deus é uma luz espiritual objetivamente, mas para discerni-la corretamente é necessário que haja visão ou luz subjetivamente, pois é apenas por e em Sua luz que “vemos a luz” (Salmos 36:9). A Bíblia é aqui denominada “Lei de Deus”, porque está revestida de autoridade divina, proferindo os mandatos da Sua vontade. Ela contém não somente bons conselhos, que somos livres para aceitar segundo bem nos agradem, mas éditos imperiosos que rejeitamos por nossa conta e risco. Nessa Palavra há “coisas maravilhosas”, as quais eu não posso atingir através da utilização da simples razão. Elas são as riquezas da sabedoria divina, que estão muito acima da bússola do intelecto do homem. Aquelas “coisas maravilhosas” o crente anseia para ser ou discernir claramente, mas ele é incapaz de fazê-lo sem a ajuda divina. Por isso, ele ora para que Deus assim desvende seus olhos que ele possa contemplá-las para uma boa finalidade, ou apreendê-las para a fé e obediência, isto é, entendê-las prática e experimentalmente no caminho do dever.

 

“Eis que Deus é excelso [eleva a alma acima do meramente natural] em seu poder: quem ensina como ele”? (Jó 36:22). Ninguém; quando Ele instrui, Ele o faz eficazmente. “Assim diz o Senhor, o teu Redentor, o Santo de Israel: Eu sou o Senhor teu Deus, que te ensina o que é útil, e te guia pelo caminho em que deves andar” (Isaías 48:17), isto acontece por que Seu “ensino” consiste naquilo que produz uma conduta piedosa. Não é meramente uma adição sendo feita à nossa capacidade mental, mas um mover da alma à atividade sagrada. A luz com que Ele aquece o coração, inflama os afetos. Assim, longe de ufanar seu destinatário, como acontece com o conhecimento natural, o ensino de Deus humilha. Revela-nos a nossa ignorância e estupidez, nos mostra nossa pecaminosidade e inutilidade, e faz com que o crente se considere pequeno aos seus próprios olhos. O ensino do Espírito também nos leva a ver claramente a vaidade absoluta das coisas altamente estimadas pelo não-regenerado, mostrando-nos a transitoriedade e a inutilidade comparativa das honras, riquezas e fama terrenas, levando a segurar todas as coisas temporais com uma mão frouxa. O conhecimento que Deus nos comunica é transformador, que nos leva a um esforço sincero para negarmos à impiedade e às paixões mundanas, e a viver sóbria, justa e piedosamente nesse mundo. Ao contemplarmos a glória do Senhor somos “transformados de glória em glória na mesma imagem” (2 Coríntios 3:18).

 

O próprio caráter do ensino divino demonstra quão urgente é a nossa necessidade do mesmo. Ele consiste em grande parte em superar a nossa antipatia natural e hostilidade às coisas divinas. Por natureza, nós temos amor ao pecado e ódio à santidade (João 3:19), e isto deve ser efetivamente subjugado pelo poder do Espírito antes que venhamos a desejar o leite puro da Palavra — observe o que tem de ser deixado antes que nós possamos receber com mansidão a Palavra enxertada (Tiago 1:21; 1 Pedro 2:1); ainda que isso seja nosso dever, somente Deus pode nos permitir realizá-lo. Por natureza, nós somos orgulhosos e independentes, autossuficientes e confiantes em nossos próprios poderes. Esse espírito maligno se agarra ao cristão até o fim da sua peregrinação, e só o Espírito de Deus pode operar nele aquela humildade e mansidão que são necessárias para que tomemos o lugar de uma criança diante da Palavra. O amor pela honra e pelo louvor entre os homens é outra afeição corrupta das nossas almas, um obstáculo insuperável para a admissão da verdade (João 5:44, 12:43), que tem de ser purgado para fora de nós. A oposição feroz e persistente feita por Satanás para impedir a nossa apreensão da Palavra (Mateus 13:19; 2 Coríntios 4:4) é demasiado poderosa para que nós a resistamos por nossa própria força; ninguém senão o Senhor pode nos libertar de suas sugestões malignas e expor seus sofismas mentirosos.

 

Em segundo lugar, um espírito imparcial é necessário se quisermos discernir e apreender o verdadeiro ensinamento da Sagrada Escritura. Nada mais obscurece o julgamento do que o preconceito — ninguém é tão cego quanto àqueles que não querem ver. Particularmente essa é o caso com todos os que vêm para a Bíblia com o objetivo de encontrar passagens que provam “nossas doutrinas”. Um coração honesto é a primeira qualidade com que o Senhor caracterizou os ouvintes representados pela “boa terra” (Lucas 8:15), e onde isto existe não só estamos dispostos, mas desejosos de ter os nossos próprios pontos de vista corrigidos. Não pode haver nenhum avanço feito pela nossa apreensão espiritual da Verdade até que estejamos prontos a submeter as nossas ideias e sentimentos ao ensino da Palavra de Deus. Enquanto nos agarramos às nossas opiniões preconcebidas e parcialidades sectárias, em vez de estarmos prontos a abandonar todas as crenças não claramente ensinadas nas Escrituras, nem nossas orações e nem nossos estudos poderão ser proveitosos para a nossa alma. Não há nada que Deus odeia mais do que a falta de sinceridade, e nós somos culpados disso, se enquanto Lhe pedimos para nos instruir, ao mesmo tempo nos recusamos a abandonar o que é errôneo. Sentir sede da própria Verdade, com uma determinação sincera de que ela molde todo o nosso pensamento e dirija a nossa prática, é indispensável se quisermos ser espiritualmente iluminados.

 

Em terceiro lugar, uma mente humilde. “Essa é uma lei eterna e inalterável designada por Deus, a saber, quem quiser conhecer Sua mente e vontade, como reveladas nas Escrituras, deve ser humilde e modesto, renunciando à toda confiança em si próprio. O conhecimento de um homem orgulhoso é o trono de Satanás em sua mente. Supor que as pessoas sob o domínio de orgulho, vaidade e autoconfiança podem entender a mente de Deus de uma forma correta é renunciar à Escritura, ou inúmeros testemunhos positivos em contrário” (John Owen). O Senhor Jesus declarou que mistérios celestes estão ocultos aos sábios e entendidos, mas revelou aos pequeninos (Mateus 11:25). Aqueles que assumem uma atitude de prepotência, e são sábios em sua própria estima, permanecem espiritualmente ignorantes e não esclarecidos. Qualquer conhecimento que pode ser adquirido pelo homem através de suas habilidades e competências naturais não é nada para glória de Deus, nem para o proveito eterno de suas almas, pois o Espírito recusa-se a instruir os soberbos. “Deus resiste aos soberbos” (Tiago 4:6). “Deus se põe contra ele, prepara-se, por assim dizer, com toda a Sua força para se opor ao seu progresso. Que expressão formidável! Se Deus apenas nos entregar a nós mesmos, caímos em ignorância e escuridão; sendo assim, qual deve ser o caso terrível daqueles contra quem Ele se opõe?” (John Newton). Mas, bendito seja Seu nome, Ele “dá graça aos…”, aos que possuem uma disposição como de criança.

 

Em quarto lugar, um coração dedicado à oração. Posto que a Bíblia é diferente de todos os outros livros, ela faz exigências sobre os seus leitores que nenhum outro livro faz. O que um homem tem escrito, outro homem pode dominar; mas apenas o inspirador da Palavra é competente para interpretá-la para nós. É nesse exato momento que muitos falham. Eles se aproximam da Bíblia como fariam com qualquer outro livro, confiando que uma cuidadosa atenção e diligência na leitura serão suficientes para compreender o seu conteúdo. Devemos, primeiramente, nos colocar de joelhos e clamar a Deus por entendimento: “Inclina o meu coração aos teus testemunhos… dá-me inteligência para entender os teus mandamentos… ordena os meus passos na tua palavra” (Salmos 119:36,73,133). Nenhum progresso real pode ser feito em nossa apreensão da Verdade até que percebamos nossa necessidade profunda e constante de termos os nossos olhos ungidos por Deus. “Se algum de vós tem falta de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente” (Tiago 1:5). É porque fazem uso dessa promessa que muitos simples lavradores e donas de casa Cristãos são ensinados pelo Espírito, enquanto estudiosos sem oração não conhecem o segredo do Senhor. Não só precisamos orar: “o que eu não vejo, ensina-me tu”, mas também pedir a Deus que escreva a Sua Palavra em nossos corações.

 

Em quinto lugar, um propósito santo. Muitos são enganados nesse assunto, confundindo uma ânsia de adquirir conhecimento bíblico com o amor pela própria Verdade. Alguns leem a Bíblia apenas por curiosidade para descobrir o que ela diz. Um sentimento de vergonha de ser incapaz de descobrir o seu ensino é o que compele outros. O desejo de estar familiarizado com o seu conteúdo de modo a sustentar sua própria argumentação é o que motiva outros. Se não houver nada melhor que nos motiva a ler a Bíblia além de um mero desejo de ser bem versado nos detalhes, é mais do que provável que o jardim de nossas almas permanecerá estéril. O motivo inspirador deve ser o exame honesto. Eu examino as Escrituras a fim de conhecer melhor o seu Autor e Sua vontade para mim? O meu propósito dominante e que me motiva é que eu possa crescer na graça e no conhecimento do Senhor? É que eu possa conhecer de forma mais clara e totalmente como eu deveria ordenar os detalhes da minha vida de um modo que será mais agradável e honroso para Ele? É meu proposito que eu possa ser levado a uma caminhada mais íntima com Deus e a gozar de comunhão mais ininterrupta com Ele? Nada menos do que isso é um objetivo digno para que seja conformado e transformado pelo seu ensino santo.

 

Nesse capítulo temos tratado apenas do lado elementar de nosso assunto, no entanto, algo que é de fundamental importância, e para o que poucos atentam. Mesmo nos dias prósperos dos Puritanos, Owen teve que queixar-se: “é muito pequeno o número daqueles que diligente, humildade e conscientemente se esforçam para conhecer a verdade da voz de Deus nas Escrituras, ou para se tornarem sábios nos mistérios do Evangelho se esforçando desse modo, por meio do que somente a sabedoria é atingível. E é de admirar se muitos, a maioria dos homens, vagarem após as imaginações vãs deles mesmos ou de outras pessoas?”. Que não seja mais assim com aqueles que leem esse capítulo.

 

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[1] Capítulo I, parágrafo I, Sobre As Sagradas Escrituras, de A Confissão de Fé Batista de Londres de 1689 (CFB1689).

[2] William R. Downing. Um Catecismo de Doutrina Bíblica. Introdução: O Uso Prático de um Catecismo.

[3] Na versão ACF, Gênesis 22:1-2 traz a palavra “provou” em vez de “tentou”: “Provou Deus a Abraão, e disse-lhe… Toma agora o teu filho, o teu único filho… e oferece-o ali em holocausto”. Este detalhe aparentemente muito simples, fruto de uma tradução primorosa, evitaria toda a aparente contradição sobre a qual Pink discorrerá a seguir.