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O Caso de Adão, por A. W. Pink

[Apêndice II do livro, A Soberania de Deus]

 

Em nosso capítulo sobre a Soberania de Deus e a Responsabilidade Humana lidamos apenas com a responsabilidade do homem, considerando-o como uma criatura caída e no encerramento da discussão foi apontado como que a medida e a extensão da nossa responsabilidade varia em diferentes indivíduos, de acordo com as vantagens que receberam e os privilégios que desfrutaram, o que é uma verdade claramente estabelecida pela declaração do Salvador, registrado em Lucas 12:47-48: “E o servo que soube a vontade do seu senhor, e não se aprontou, nem fez conforme a sua vontade, será castigado com muitos açoites; mas o que a não soube, e fez coisas dignas de açoites, com poucos açoites será castigado. E, a qualquer que muito for dado, muito se lhe pedirá, e ao que muito se lhe confiou, muito mais se lhe pedirá”.

 

Agora, falando diretamente, só houveram dois homens que já caminharam sobre a Terra que foram dotados de completa e imaculada responsabilidade. Eles foram o primeiro e o último Adão. A responsabilidade de cada um dos descendentes racionais de Adão, sendo real e suficientes para serem prestadas em contas ao seu Criador é, no entanto, limitada em grau. Limitada porque foram prejudicadas pelos efeitos da Queda.

 

Não é apenas suficiente a responsabilidade de cada descendente de Adão em constituí-lo, pessoalmente, uma criatura responsável (isto é, constituído de modo que ele deveria fazer de certo e não deveria fazer errado), mas originalmente cada um de nós foi também dotado, judicialmente, com absoluta e plena responsabilidade, não em nós mesmos, mas, em Adão. Deve sempre estar em mente que Adão não só foi o pai da raça humana, em termo seminal, mas ele também legalmente foi o cabeça da raça. Quando Adão foi colocado no lá no Éden, ele estava como nosso representante, de modo que o que ele fez, foi imputado na conta de cada um a quem ele representava.

 

Esta fora de nosso presente propósito entrar em uma longa discussão sobre Adão ser nossa Cabeça Federal*, basta agora remeter o leitor a Romanos 5:12-19, onde esta verdade é tratada pelo Espírito Santo. No coração desta passagem mui importante é-nos dito que Adão era “a figura daquele que havia de vir” (v. 14), isto é, de Cristo. Em que sentido, então, Adão era a “figura” de Cristo? A resposta seria, em que ele era O Cabeça Federal; em que ele agiu em nome de uma raça de homens; em que ele foi um dos que legalmente, bem como vitalmente, afetou a todos aqueles que estavam conectados a ele. É por esta razão que o Senhor Jesus em 1 Coríntios 15:45 foi denominado “o último Adão”, isto é, o Cabeça da nova criação, assim como o primeiro Adão foi o Cabeça da velha criação.

 

Em Adão, então, cada um de nós estava representado. Como o representante da raça humana, o primeiro homem agiu. Assim, pois, Adão foi criado com responsabilidade plena e perfeita; perfeita porque não havia nenhuma natureza má dentro dele. E como estávamos todos “em Adão”, segue-se necessariamente que todos nós, originalmente, também fomos dotados de total e perfeita responsabilidade. Portanto, no Éden, não foi apenas a responsabilidade de Adão, como uma única pessoa, que foi testada, mas a Responsabilidade Humana, a responsabilidade da Raça, como um todo e em parte, foram testadas.

 

Webster define a responsabilidade em primeiro lugar, como “passível à prestação contas”; segundo, como “capaz de cumprir uma obrigação”. Provavelmente o significado e o alcance da responsabilidade pode ser, expressado e resumido, na palavra “aptidão”. Por outro lado, responsabilidade refere-se àquilo que é devido ao Criador por parte da criatura, e ao qual a criatura está sob obrigações morais para prestar.

 

À luz da definição supracitada, fica aparente que a responsabilidade é algo que deve ser colocada em julgamento. E sendo um fato, isso significa, assim como aprendendo pelo Registro Inspirado, exatamente o que aconteceu no Éden. Adão foi colocado à prova. Suas obrigações para com Deus foram testadas. Sua lealdade ao Criador foi experimentada. O teste consistiu na obediência ao mandamento de seu Criador. Ele foi proibido de comer de uma certa árvore.

 

Mas aqui uma dificuldade formidável nos confronta. Do ponto de vista de Deus, o resultado da prova de Adão não foi deixado na incerteza. Antes de Ele o ter formado do pó da terra e ter soprado em suas narinas o fôlego da vida, Deus sabia exatamente no que o teste resultaria. Com esta declaração, todo leitor Cristão deve estar de acordo, pois, negar a presciência de Deus é negar Sua onisciência, e isto incide em repudiar um dos atributos fundamentais da Divindade. Mas é preciso ir mais longe: Deus não só tinha um perfeito conhecimento prévio do resultado do teste de Adão, Seu olho onisciente não só viu Adão comer do fruto proibido, mas Ele mesmo decretou de antemão que ele deveria fazer aquilo. Isto é evidente não só a partir do fator geral de que nada acontece exceto o que o Criador e Governador do universo eternamente tenha designado, mas também a partir da declaração expressa das Escrituras de que Cristo como o Cordeiro “foi conhecido, ainda antes da fundação do mundo” (1 Pedro 1:20). Se, então, Deus havia ordenado de antemão, desde antes da fundação do mundo, que Cristo seria, no tempo devido, oferecido como um sacrifício pelo pecado, então é inequivocamente evidente que Deus também havia preordenado que o pecado deveria entrar no mundo e, assim sendo, segue-se que ele sabia que Adão deveria transgredir e cair. Em plena harmonia com isso, o próprio Deus colocou no Éden a árvore do conhecimento do bem e do mal, e permitiu que a Serpente entrasse e enganasse Eva.

 

Aqui, então, eis a dificuldade: Se Deus eternamente decretou que Adão deveria comer da árvore, como ele poderia manter a responsabilidade de não comer da árvore? O problema possui uma aparência formidável, no entanto, é passível de uma solução. Uma solução, por outro lado, que pode ser assimilada até mesmo pela mente finita. A solução deve ser encontrada na distinção entre a vontade secreta de Deus e Sua vontade revelada. Tal como indicado no Apêndice I, a responsabilidade humana é medida pelo nosso conhecimento da vontade revelada de Deus; o que Deus nos disse, não o que Ele não nos disse, é o definidor de nosso dever. Assim também o foi com Adão. O fato de que Deus tinha decretado que o pecado deveria entrar neste mundo através da desobediência dos nossos primeiros pais era um segredo escondido em Seu próprio seio. Disto Adão nada sabia, e isso fez toda a diferença na medida em que a sua responsabilidade foi concedida. Adão esteve ignorante aos conselhos secretos do Criador. O que lhe concernia era a vontade revelada de Deus. E este era o plano! Deus o havia proibido de comer da árvore e isso foi o suficiente. Mas Deus foi mais longe: Ele advertiu Adão das consequências terríveis que o seguiriam se ele desobedecesse — a morte seria a pena. A transgressão, então, por parte de Adão, foi inteiramente indesculpável. Criado sem natureza má em si mesmo, com uma vontade em perfeito equilíbrio, colocado em um ambiente tranquilo, tendo recebido o domínio sobre toda a criação, dotado de total liberdade que excetuava apenas uma única restrição, claramente advertido sobre o que lhe seguiria ao ato de insubordinação a Deus. Havia todo incentivo possível para Adão preservar a sua inocência. E, tendo falhado e caído, logo, por todos os princípios da justiça, o seu sangue deve cair sobre a sua cabeça e, sua culpa, deve ser imputada a todos em nome de quem ele agiu.

 

Houvesse Deus revelado a Adão Seu propósito de que o pecado iria entrar neste mundo e de que Ele havia decretado que Adão iria comer do fruto proibido, fica obvio que Adão não poderia ter sido responsabilizado por ter comido do fruto. Contudo, o fato é que Deus reteve o conhecimento de Seus conselhos a Adão e não houve interferência em sua prestação de contas.

 

Novamente, se Deus houvesse criado Adão com uma inclinação para o mal, então a responsabilidade humana teria sido prejudicada e a provação teria sido apenas um pretexto. Mas, assim como Adão estava incluído entre aquilo que fez com que Deus, pronunciasse no final do sexto dia: “Muito bom”, e, assim como o homem foi feito “reto” (Eclesiastes 7:29), assim então, toda a boca deve estar “fechada” e “todo o mundo” deve reconhecer-se “condenável diante de Deus” (Romanos 3:19).

 

Mais uma vez, é preciso que seja cuidadosamente tido em mente, que Deus não decretou que Adão pecasse e depois infundiu em Adão uma inclinação para o mau, a fim de que Seu decreto pudesse ser cumprido. Não. “Deus não pode ser tentado pelo mal, e a ninguém tenta” (Tiago 1:13). Em vez disso, quando a serpente veio para seduzir Eva, Deus fez com que ela se lembrasse do Seu comando, proibindo que comesse da árvore do conhecimento do bem e do mal e da pena anexada à desobediência! Assim, se Deus decretou a Queda, em nenhum sentido Ele foi o autor do pecado de Adão e, em nenhum ponto, a responsabilidade de Adão foi prejudicada. Assim, podemos admirar e adorar a “multiforme sabedoria de Deus” na elaboração de um caminho pelo qual Seu decreto eterno pôde ser realizado, e ainda assim, a responsabilidade de Suas criaturas foi preservada.

 

Talvez deva ser adicionada uma nova palavra a respeito da vontade decretiva de Deus, particularmente na Sua relação com o mau. Primeiro de tudo, tomamos o terreno elevado de que, tudo o que Deus faz ou permite, é certo, justo e bom, simplesmente porque Deus os fez ou permite-lhes. Quando Lutero deu resposta à pergunta: “Quando foi permitido que Adão caísse e corrompesse toda a sua posteridade, quando Deus poderia tê-lo impedido de cair, etc.”, ele disse: “Deus é um Ser cuja vontade não reconhece nenhuma causa: nem é para nós prescrevermos regras para a Sua soberana vontade, nem é para pedirmos explicação do que Ele faz. Ele não tem nem superior, nem igual, e a Sua vontade é a regra para todas as coisas. Ele não fez as coisas tais e tais porque estas eram certas e Ele foi, assim, obrigado a fazê-las. Mas elas são, entretanto, justas e certas, porque Ele as fez. A vontade do homem, entretanto, pode ser influenciada e inclinada, mas a vontade de Deus nunca poderá. Afirmar o contrário é negar a Divindade dEle” (De Servo Arbítrio. c / I53).

 

A afirmação de que Deus decretou a entrada do pecado no Seu universo e que Ele predestinou todos os seus frutos e atividades, é algo que, à primeira vista, pode chocar o leitor. Mas, uma reflexão, mostrará que é muito mais chocante insistir que o pecado invadiu Seus domínios contra Sua vontade e que o seu exercício está fora de Sua jurisdição. Porque, nesse caso, onde estaria Sua onipotência? Não. Reconhecer que Deus pré-ordenou todas as atividades do mal é ver que Ele é o Governador do pecado: a Sua vontade determina o seu exercício. Seu poder regula seus limites (Salmo 76:10). Ele não é nem o Inspirador nem o Infusor do pecado em nenhuma de Suas criaturas, mas Ele é o seu Mestre, pelo qual consideramos que o controle de Deus sobre ímpios é tão completo, que eles não podem fazer nada a menos que Sua mão e conselho, desde a eternidade, determinasse que fosse feito.

 

Embora não haja nada contrário à santidade e justiça que possa emanar de Deus, mesmo assim Ele, para Seus próprios sábios fins, ordenou Suas criaturas caírem em pecado. Houvesse o pecado nunca ter sido permitido, como a justiça de Deus poderia ter sido revelada na punição? Como a sabedoria de Deus poderia ter sido manifestada em tão maravilho exercício de Sua soberania? Como poderia a graça de Deus ser mostrada em perdoar? Como poderia o poder de Deus ter sido exercido subjugando-o? Uma prova muito solene e impressionante de reconhecimento de Cristo sobre o decreto de Deus em relação ao pecado é vista em Seu tratamento para com Judas. O Salvador sabia muito bem que Judas iria traí-lo, mas nunca lemos que Ele expostulou com ele. Em vez disso, disse-lhe: “o que fazes, faze-o depressa” (João 13:27). No entanto, note que isso foi dito depois que ele havia recebido a ceia e de Satanás haver se apossado de seu coração. Judas já estava preparado e determinado sobre a sua obra de traição. No entanto, Cristo, permissivamente (em cumprimento à ordenação de Seu Pai) o permitiu prosseguir em seu terrível ato.

 

Assim, embora Deus não seja o autor do pecado e embora o pecado seja contrário à Sua natureza santa, ainda assim, a existência e as operações do pecado não são contrárias à Sua vontade, mas subservientes a esta. Deus nunca tenta o homem ao pecado, mas Ele, por Seus eternos conselhos (que estão agora em execução), determinou seu curso. Além disso, como mostramos no Capítulo 8, embora Deus tenha decretado o pecado do homem, ainda é de responsabilidade do homem não cometê-los, sendo passivo de culpa quando os comete. Surpreendentemente os dois lados deste terrível assunto foram reunidos por Cristo em uma declaração Sua: “Ai do mundo, por causa dos escândalos; porque é mister que venham escândalos (porque Deus os predestinou), mas ai daquele homem por quem o escândalo vem!” (Mateus 18:7). Assim também, todos os que tiveram parte no Calvário, assim aconteceu pelo “determinado conselho e presciência de Deus” (Atos 2:23), no entanto, “mãos perversas” crucificaram o Senhor da glória, e, por consequência, Seu sangue justamente repousou sobre eles e sobre seus filhos. Grandes mistérios são esses, mas é tanto o nosso feliz privilégio quanto no dever sagrado receber humildemente a tudo quanto Deus tem Se agradado de revelar no que lhes diz respeito em Sua Palavra da Verdade.

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* Cremos não haver profunda nem ampla necessidade para isso, e esperamos que dentro em breve possamos escrever sobre este assunto em outro livro.