Um Comentário Da Confissão De Fé Batista De 1689
Capítulo 4*, Sobre a Criação
1. No princípio aprouve a Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo1, para a manifestação da glória do Seu eterno poder2, sabedoria e bondade, criar ou fazer o mundo, e todas as coisas nele, sejam visíveis ou invisíveis, no espaço de seis dias, e tudo muito bom.3 (1 João 1:2-3; Hebreus 1:2; Jó 26:13 • 2 Romanos 1:20 • 3 Colossenses 1:16; Gênesis 1:31).
Este Capítulo é teologicamente ligado ao decreto de Deus, porque a criação foi o primeiro dos decretos de Deus a ser executado1. O Catecismo Batista serve como um resumo da Confissão. A pergunta 10 deste Catecismo define os decretos de Deus da seguinte maneira: “Os decretos de Deus são o Seu eterno propósito, conforme o conselho da Sua vontade, segundo os quais, para a Sua própria glória, Ele preordenou tudo o que acontece”. Logicamente a seguinte pergunta 11 indaga: “Como Deus executa os Seus decretos?”. A resposta é: “Deus executa os Seus decretos nas obras da criação e da providência”. E assim vemos que o Catecismo simplesmente reflete a ordem lógica da Confissão: o Capítulo 3 é sobre os decretos de Deus, e Capítulo 4 e 5 são sobre a execução desses decretos, assim, pois, os Capítulos 3, 4 e 5 essencialmente lidam com o decreto de Deus; este Capítulo inteiro é dedicado à obra da criação.
Na Confissão, lemos: No princípio aprouve a Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. A única razão pela qual Deus faz alguma coisa é porque a Ele apraz. Observe a ênfase Trinitária na obra da criação. Vemos essa ênfase Trinitária logo no início do Gênesis: “E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas” (Gênesis 1:2). E em Gênesis 1:26, observe o pronome no plural oculto “Nós”: “E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança”2. Além disso, o Novo Testamento explicitamente fala do Filho executando a criação: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez” (João 1:1-3). E outra vez: “Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de tudo, por quem fez também o mundo” (Hebreus 1:1-2). Ao olhar para a totalidade das Escrituras entendemos que o Pai, o Filho e o Espírito Santo estiveram envolvidos na obra da criação. Esta obra da criação é a primeira coisa que Deus fez, e isto aconteceu no princípio como a Escritura diz: “No princípio, Deus criou os céus e a terra” (Gênesis 1:1).
Aprouve a Deus criar para a manifestação da glória do Seu eterno poder, sabedoria e bondade, criar ou fazer o mundo. De fato, a obra da criação de Deus manifesta a glória destes três atributos. No Capítulo 1, parágrafo 1, a Confissão nos disse que as obras da criação manifestam “a bondade, a sabedoria e o poder de Deus”. Agora que nós chegamos no Capítulo designado para tratar das obras da criação esta declaração é reiterada. Romanos 1:20 diz: “Porque as suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o seu eterno poder, como a sua divindade, se entendem, e claramente se veem pelas coisas que estão criadas, para que eles fiquem inescusáveis”. Assim, por Deus criar o mundo, Ele revela atributos invisíveis para todos. Nem todos os Seus atributos são vistos na criação, os outros só são conhecidos através de revelação especial encontrada somente nas Escrituras. Para ver a manifestação da Sua glória, e, especificamente, esses três atributos, tudo o que temos a fazer é sair e ver a Sua criação. Enquanto Deus criou porque Lhe aprouve, parte de Seu prazer era Se manifestar às Suas criaturas por meio da criação.
A Confissão continua: e todas as coisas nele, sejam visíveis ou invisíveis. Não há nada neste mundo que não vem de Deus. Isso é exatamente o que a Bíblia diz: “Porque nele foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam potestades. Tudo foi criado por ele e para ele” (Colossenses 1:16). Além disso, como já referido: “Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez” (João 1:1-3). Deus é o criador de tudo o que é visível e invisível — e há muita coisa na criação que é invisível. Mesmo as coisas invisíveis — uma vez descobertas ou conhecidas — manifestam a Sua glória. Tanto seres angelicais, ou coisas que a nossa era moderna descobriu, como átomos e outras formas de vida microscópica. Essas coisas também manifestam a glória e caráter de Deus. A descoberta de coisas anteriormente desconhecidos de tempos passados detém o homem moderno que fica muito mais responsável a reconhecer seu Criador. O fato de que mais provas a respeito de Deus não traz mais reconhecimento e adoração a Deus só mostrará que quando o homem não-regenerado conhece mais de Deus, mais arduamente ele trabalha para suprimir o conhecimento daquele Deus que tem abençoado o homem moderno com mais conhecimento de Sua glória, de modo que eles têm muito mais motivos para se arrependerem: “Ou desprezas tu as riquezas da sua benignidade, e paciência e longanimidade, ignorando que a benignidade de Deus te leva ao arrependimento?” (Romanos 2:4).
A Confissão continua: no espaço de seis dias. Se interpretarmos a Confissão em seu contexto histórico, há pouca dúvida de que os autores tinham em mente que Gênesis estava se referindo a seis dias, literais, de vinte e quatro horas3. A Confissão foi escrita antes de teorias modernas sobre a idade da Terra. Enquanto todos os crentes devem rejeitar a teoria da evolução, a qual nega a Deus como Criador, há crentes fiéis que não pensam que a Bíblia refere-se literalmente a seis dias, consistindo em um período de vinte e quatro horas. Devemos sempre ser fiéis à Escritura antes de à ciência, mas é possível que um crente sustente que esses seis dias não são literais, antes representam períodos de tempo. Temos que mostrar a graça neste ponto. Eu acredito que a Bíblia realmente refere-se a seis dias, literais, consistindo em um período de vinte e quatro horas, mas não romperei a comunhão devido esta questão.
A Confissão conclui afirmando: e tudo muito bom. A cada dia após Deus haver terminado o Seu trabalho, “viu Deus que era bom”. Mas observe o que é dito do último dia da criação: “E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom; e foi a tarde e a manhã, o dia sexto” (Gênesis 1:31). No final do sexto dia, Deus observa a conclusão de tudo, e Deus viu que isso era muito bom. Deus é perfeito e todas as Suas obras são perfeitas. Vemos em Deuteronômio 32:4a: “Ele é a Rocha, cuja obra é perfeita”. O próprio Deus pronunciou a perfeição da criação enquanto inspecionava o todo dela. A obra de cada dia foi perfeita, e a totalidade da criação foi feita perfeita em sua existência, função e harmonia.
É importante que reconheçamos que a criação que vemos agora é uma criação pós-Queda; sem dúvida esta ainda é muito boa, mas reconhecemos que a Queda contaminou a criação, particularmente a humanidade. Quando o homem busca contestar a Deus sobre o mal devido a imperfeição e maldade que o homem vê na criação, ele deixa de reconhecer que é o pecado que trouxe o mal e a imperfeição à criação, e não Deus. Não é que a imperfeição e o mal estão fora do decreto ou providência de Deus, mas Deus não é o autor do pecado e da corrupção que vemos na criação. Nosso ponto de partida para compreender a realidade deve ser que Deus é bom, e um Deus bom decretou fazer uma boa criação e, portanto, em cumprir este decreto, Deus o cumpriu muito bem. As obras de Deus são um reflexo de quem Ele é, e, portanto, devemos entender que a criação foi criada originalmente perfeita e muito boa.
2. Após Deus haver feito todas as outras criaturas, Ele criou o homem, macho e fêmea4, com almas racionais e imortais5, e os adequou perfeitamente à vida para Deus, para o que eles foram criados, tendo sido feitos segundo a imagem de Deus, em conhecimento, retidão e verdadeira santidade6; tendo a lei de Deus escrita em seus corações7, e poder para cumpri-la; e ainda assim, estavam sob a possibilidade de transgressão, sendo deixados à liberdade da sua própria vontade, que era sujeita à mudança.8 (4 Gênesis 1:27 • 5 Gênesis 2:7 • 6 Eclesiastes 7:29; Gênesis 1:26 • 7 Romanos 2:14-15 • 8 Gênesis 3:6).
Neste parágrafo a Confissão aborda a criação do homem no sexto dia, e a natureza dessa criatura. Aqui se fala estritamente sobre do homem antes da Queda. A Confissão lidará com a Queda do homem no Capítulo 6. A Confissão começa assim: Após Deus haver feito todas as outras criaturas. Como veremos no parágrafo 3, o homem foi feito depois das outras criaturas para governá-las; Deus guardou o melhor para a última criatura; o homem foi a coroa de toda a criação. Deus criou o homem (ou seja, a humanidade) macho e fêmea. A Escritura afirma: “E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou” (Gênesis 1:27). Deus criou o homem em duas categorias distintas: masculino e feminino. Cada gênero é único e vem com suas próprias bênçãos únicas. Ser mulher é ter bênçãos únicas que não são dadas a um homem, e assim também, ser um homem implica em certas bênçãos que não são dadas à uma mulher. Isto, naturalmente, não nega que homem e mulher também têm muito em comum em termos de bênção, mas, nos dias que vivemos, parece necessário salientar que as diferenças de gênero são muito reais e não devem ser minimizadas. Contudo, nenhum sexo é melhor ou tem mais bênção do que o outro sexo; a maior evidência disso é que ambos são feitos à imagem de Deus, a maior bênção que ambos compartilham. É importante reconhecer que, ainda que um macho e uma fêmea jamais venham a unir-se em matrimônio ou alguma vez tenham filhos, ser homem ou ser mulher é uma grande bênção dada por Deus. Vamos deixar o assunto do casamento entre um homem e uma mulher para o Capítulo 25, Sobre o Matrimônio. Deus fez os seres humanos do sexo masculino e feminino, e negar que esta singularidade existe, finalmente, resulta em negar a Deus a glória que Lhe é devida e rejeitar as bênçãos que Ele nos concedeu nessas diferenças. É interessante notar que, mesmo nas fervorosas questões modernas relacionadas ao gênero, sexualidade e casamento, a Confissão fornece os parâmetros bíblicos relevantes para nos ajudar a entender e expressar a ordem e a bênção de Deus para um mundo perdido, e em alguns casos, para comunicar isto para uma igreja apóstata. Este crédito, no entanto, não é devido à Confissão, tanto quanto é para a relevância das Escrituras.
A Confissão afirma que homem e mulher foram criados com almas racionais e imortais. Deus fez o homem com uma alma racional, ou seja, com a capacidade de pensar (ou seja, a razão). Os animais parecem ter um certo grau de inteligência, mas sua inteligência está relacionada ao instinto mais do que à razão. Alguns anos atrás, eu assisti um treinador de tigres demonstrar como ele não estava em perigo de ataque, enquanto ele estava de frente para o tigre, mas se ele virasse as costas para o animal este poderia atacá-lo, o que poderia resultar em morte. O treinador não poderia argumentar com o tigre sobre este ponto. O treinamento de animais não é feito por arrazoar com os animais, mas por instintos condicionados. A humanidade pode aprender, fazer deduções e decisões baseadas na razão, e isso a distingue das outras criaturas da terra.
Outra característica distintiva da humanidade é que ela foi criada com uma alma imortal. A fim de considerar a imortalidade da alma, precisamos pensar um pouco sobre a criação de uma alma. Houve várias posições defendidas em toda a história da igreja a respeito de quando Deus cria uma alma. As três opções viáveis são: 1) que esta tem seu princípio na concepção ou 2) após a concepção, mas antes do nascimento, ou 3) no momento do nascimento. É evidente que a alma não é criada antes da concepção visto que pré-existência da alma não é um ensinamento bíblico, e da mesma forma, a alma não é eterna no sentido de haver existido eternamente antes do nascimento. O que temos certeza é de que uma alma tem sua existência iniciada na concepção ou no momento do nascimento. A Escritura não é clara neste particular, mas parece razoável acreditar que ambos, o corpo e a alma, têm o princípio de sua existência na concepção. Este ponto de vista promoveria um mais elevado conceito sobre a vida, e pode haver algum indício disso quando olhamos para passagens como Salmo 139:13-16. Um determinado momento do tempo uma alma foi criada por Deus, porém, ela nunca deixa de existir a partir desse ponto em diante; é nesse sentido que a alma é imortal. A natureza dessa alma é que ela nunca deixará de existir, é imortal. A afirmação da Confissão sobre a natureza da alma, como imortal, implica uma negação da doutrina do Aniquilacionismo. O Aniquilacionismo defende o fim da existência da alma. Existem variações deste ponto de vista. A visão naturalista e ateia acerca do Aniquilacionismo é que todas as almas humanas, se é que existe tal coisa, deixam de existir no momento da morte. Outra variação, que pretende ser Cristã, ensina que o julgamento do pecador réprobo diante Deus não é eterno, antes é um julgamento de aniquilação e a alma réproba é aniquilada, não mais existirá. Para um aniquilacionista as almas dos réprobos são almas mortais. Enquanto isso possui um certo encanto, o fato é que o julgamento eterno é claramente ensinado nas Escrituras. O próprio Jesus fez declarações explícitas acerca do caráter eterno do Inferno e, portanto, todas as almas são imortais; a questão é sobre onde essa alma imortal passar a eternidade — no Céu ou no Inferno. A doutrina da imortalidade da alma acrescenta importância ao evangelismo, e deve conduzir-nos à pregação do Evangelho. Por sabermos que a alma é imortal deve nos levar a valorizar grandemente cada alma, e deste grande valor advém a cada alma uma grande responsabilidade de cuidar de si mesma e das outras.
A Confissão de 1689 continua: e os adequou perfeitamente à vida para Deus, para o que eles foram criados. Este homem e mulher possuidores de almas racionais e imortais foram dotados (ou seja, equipados, ou adequados) para desfrutar das bênçãos do Jardim (ou seja, a vida para Deus). Esta adequação se deu pelo fato deles haverem sido feitos segundo a imagem de Deus4, em conhecimento, retidão e verdadeira santidade; tendo a lei de Deus escrita em seus corações, e poder para cumpri-la. Eles foram adequados por haverem sido feitos à imagem de Deus. Haver sido feito à imagem de Deus significa que há coisas sobre a humanidade que refletem algo sobre o que Deus é. Eu digo “refletir” pois estas coisas não são aquilo que elas refletem em si, isto é, a Divindade; mas eles foram feitos segundo o molde ou de forma semelhante a este Ser Divino. Como discursamos no Capítulo 2, os atributos de Deus que Ele comunicou ou concedeu à humanidade são chamados de os atributos comunicáveis de Deus. A humanidade, em seu estado antes da Queda, refletia os atributos comunicáveis de Deus. Vemos alguns desses atributos transmissíveis enumerados na próxima frase da Confissão: conhecimento, justiça e santidade. Assim, em parte, o que estava sendo adequado à vida para Deus estava sendo feito à imagem de Deus. As plantas e os animais não foram adequados à vida para Deus; unicamente a humanidade foi feita à imagem de Deus; só eles foram feitos próprios para a comunhão com Deus. Outrossim, por empregar a expressão “adequou perfeitamente à vida para Deus”, a Confissão está estritamente falando da humanidade antes da Queda; depois vamos ver os efeitos da Queda sobre a humanidade. Sobre a humanidade caída, João Calvino diz: “Mas agora, embora alguns traços obscuros dessa imagem ainda sejam encontrados remanescentes em nós; contudo estes são tão corrompidos e mutilados, a ponto de poder realmente ser dito que foi destruída”5. A glória do Evangelho é que por ele esta imagem destruída é restaurada por Deus nos eleitos: “E vos vestistes do novo, que se renova para o conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou” (Colossenses 3:10).
Deus criou nossos primeiros pais em conhecimento, retidão e verdadeira santidade. Esta frase foi retirada diretamente de Colossenses 3:10 (citado acima) e Efésios 4:24: “E vos vestistes do novo homem, que segundo Deus é criado em verdadeira justiça e santidade” (KJV). Ambas as passagens falam da imagem Deus como sendo “no conhecimento” (Colossenses 3:10) e “em verdadeira justiça e santidade” (Efésios 4:24 — KJV). Posto que de Deus não muda, por conseguinte, Sua imagem não muda, e, portanto, a imagem de Deus que é renovada e criada nos eleitos é a mesma imagem que existiu uma vez em nossos primeiros pais, antes da Queda. Eles tinham conhecimento de tudo o que Deus exigia deles e de tudo o que precisavam saber. Eles não conheciam tudo, não eram oniscientes como Deus o é, mas simplesmente refletiam a imagem de Deus em seu conhecimento. Eles foram colocados no Jardim com um conhecimento 'adequado' à sua própria posição (ou seja, situação ou circunstância). Eles entenderam sua situação, sua relação com Deus e com o restante da criação. A frase em retidão significa que os nossos primeiros pais eram perfeitamente justos — inerente e realmente justos, completamente. Este estado original de justiça será posteriormente referido como retidão original (1689 6:2). Verdadeira santidade significa santidade real. Não é que eles eram apenas justos em um estado forense ou posicional diante de Deus, mas eles também eram inerentemente justos e realmente praticantes da justiça, assim, eles foram verdadeiramente (ou realmente) santos em pensamento, palavra e ação. Quando pensamos na imagem de Deus em relação à verdadeira santidade, nós pensamos na ordem de Deus em Levítico 11:44a: “sereis santos, porque eu sou santo”.
Nós não podemos falar de justiça e santidade, sem a lei estar por perto. Baseado em que algo é santo ou justo? Deve ser em relação ao e comparado com a lei (o padrão). A Confissão indica que, além da imagem de Deus, a justiça e a verdadeira santidade, eles também foram adequados para à vida para Deus, porque eles tinham a lei de Deus escrita em seus corações. A frase “escrita em seus corações” é, naturalmente, uma linguagem metafórica. Deus não escreveu fisicamente a Sua lei no coração físico de Adão e Eva. Mas Deus, literalmente, colocou na própria natureza de Adão e Eva Sua lei moral (ou seja, os padrões de Deus acerca do que é certo e errado). Este assunto será desenvolvido no Capítulo 19, Sobre a Lei de Deus.
Como sabemos que a lei moral estava no coração dos nossos primeiros pais? Há passagens bíblicas que falam da lei universal estar presente no coração de toda a humanidade após a Queda. E se esta lei moral universal está presente após a Queda, certamente estava presente em nosso primeiro pai antes da mesma. Aqui estão algumas dessas passagens: Romanos 1:32: “Os quais, conhecendo o juízo de Deus (que são dignos de morte os que tais coisas praticam), não somente as fazem, mas também consentem aos que as fazem”. “Os quais” nesta passagem refere-se a todas as nações, e, portanto, todas as nações conhecem o decreto ou lei de Deus. Como as nações adquirem o conhecimento deste decreto ou lei de Deus? Isto está escrito em seus corações. Romanos 2:14-16 esclarece bem isso: “Porque, quando os gentios, que não têm lei, fazem naturalmente as coisas que são da lei, não tendo eles lei, para si mesmos são lei; os quais mostram a obra da lei escrita em seus corações, testificando juntamente a sua consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os; no dia em que Deus há de julgar os segredos dos homens, por Jesus Cristo”. Paulo indica explicitamente que a lei moral está em todos os corações, até mesmo naqueles que não possuem a Lei Mosaica. E assim, com base nas passagens acima, podemos sugerir que a lei de Deus também foi escrita no coração dos nossos primeiros pais. Visto que nossos primeiros pais foram criados em verdadeira justiça e santidade (Efésios 4:24; 1689 4:2), isto implica que uma lei ou norma do que constituía justiça e santidade já existia antes da Queda.
Junto com esta lei em seu coração, Adão e Eva tinham poder para cumpri-la. Nós sabemos muito bem que há uma diferença entre conhecer a lei de Deus e cumpri-la. A lei foi escrita em seus corações; eles sabiam disso, eles amavam isso e possuíam a capacidade de cumpri-la e guardá-la perfeitamente. Após a Queda, os nossos primeiros pais perderam essa capacidade de cumprir a lei de Deus; para seu dano, toda a sua posteridade também perdeu essa capacidade. Isso será discutido mais no Capítulo 6, mas temos de reconhecer que quando Deus criou a Sua “muito boa” criação, Ele criou suas criaturas humanas “boas” também. Em outras palavras, Ele criou sua natureza para funcionarem em perfeita harmonia com o estado em que foram colocados no jardim. Deus fez o Pacto de Obras com eles, e deu-lhes a capacidade de cumprir esse pacto; a eles foi concedida total aptidão à vida para Deus; eles não tinham falta de nada.
Mas mesmo que não tivessem esse poder ou capacidade de cumpri-la, e ainda assim, estavam sob a possibilidade de transgressão, sendo deixados à liberdade da sua própria vontade, que era sujeita à mudança. Aqui vemos a realidade da situação dos nossos primeiros pais, talvez esta não tenha sido tão ideal como nós tendemos a pensar. No entanto, nós não queremos pensar que Deus os predispôs ao fracasso, pois de fato o ponto desta parte da Confissão é que Deus os adequou para o êxito. Mas a possibilidade de transgressão indica que nossos primeiros pais estavam sendo testados, e o fracasso teria consequências trágicas. Enquanto esse período de testes durou, nossos pais poderiam desobedecer a ordem de Deus. A possibilidade de transgressão existiu porque eles foram deixados à liberdade da sua própria vontade. Outrossim, Deus havia lhes conferido poderes para cumprir Seu mandamento, o que significa que, então, a sua vontade não estava em escravidão ao pecado como acontece com os seus descendentes após a Queda; eles eram verdadeiramente capazes de plena e perfeitamente obedecerem a Deus. O Capítulo 9, Sobre o Livre-Arbítrio, tratará da condição do livre-arbítrio do homem em quatro estados: a vontade na inocência (antes da Queda), a vontade depois da Queda, a vontade do regenerado, e a vontade do regenerado na glória. Nós não prosseguiremos mais na questão do livre-arbítrio aqui, esperemos até o Capítulo 9. Na passagem que estamos agora tratando, a Confissão fala da vontade do homem na inocência. A liberdade de obedecer a Deus também implica a liberdade de desobedecer e, portanto, a Confissão afirma que sua vontade era sujeita à mudança.
Uma das dificuldades principais na teologia é procurar entender como a despeito do estado de inocência e do poder dos nossos primeiros pais de obedecer a Deus, eles foram tentados e desobedeceram a Deus. É difícil, porque sabemos que Deus não criou a humanidade nem mesmo com uma sugestão do pecado neles; nós sabemos que Deus não os induziu à tentação, nem de modo algum os tentou; nem despertou neles o pecado da rebelião contra a lei. Então, por que eles pecam? A Escritura não parece nos dar uma resposta explícita. O que sabemos é que, finalmente, isto era parte do plano de Deus para um bem maior. O Puritano Stephen Charnock tem algumas coisas a dizer ao longo destas linhas:
Deus nunca desejou o pecado por Sua vontade preceptiva. O pecado nunca foi fundado sobre ou produzido por qualquer palavra Sua, como a criação foi [feita por Sua palavra]. Ele nunca disse: “Haja pecado debaixo dos céus”, como Ele disse: “Haja uma expansão no meio das águas”. Nem Ele quis o pecado através da infusão de qualquer hábito, ou incitando as inclinações a ele; não, “Deus a ninguém tenta” (Tiago 1:13). Nem Ele deseja o pecado por Sua vontade aprovativa; o pecado é detestável para Ele, nem alguma vez Ele pode ser de outra mente. [Ainda assim] a vontade de Deus é de algum tipo simultâneo com o pecado. Ele não propriamente o deseja, mas Ele não desejou impedi-lo. Desejar o pecado como o pecado seria uma incontestável blasfêmia a Deus. Mas, desejar permiti-lo para o bem é a glória da Sua sabedoria. [O pecado] nunca teria erguido a sua cabeça, a menos que tivesse havido algum decreto de Deus ao seu respeito. E não haveria nenhum decreto relativo a ele se Deus não pretendesse trazer o bem e glória a partir dele. Deus deseja a permissão do pecado. Ele, positivamente, não deseja o pecado, mas Ele, positivamente, deseja permiti-lo. E embora Ele não aprove o pecado, ainda assim, Ele aprova esse ato de Sua vontade pelo qual Ele o permite. Embora Deus odiou o pecado, como sendo contra a Sua santidade, ainda assim Ele não odiou a permissão do pecado, como sendo subserviente à imensidão da Sua sabedoria para a Sua própria glória.6
Estas palavras podem não nos dar a resposta final que estamos procurando, mas nos fazem lembrar que 1) a Queda não aconteceu porque Deus é o autor do pecado, ou tem comunhão com algo nisso e 2) a razão para que isto acontecesse foi porque Deus quis permitir isso. A Escritura não resolve totalmente o mistério da origem do pecado, mas nos dá revelação suficiente para entender que Deus continua a ser o único que preordena tudo o que vier a acontecer, e o pecado não está excluído desse decreto, mesmo que seja por decreto passivo Deus7. Em última análise, sabemos que a Queda aconteceu somente com vistas à obtenção de um bem maior; isto é referido como o argumento do “bem maior”. Gregg Allison afirma: “Helm também abordou o problema do mal, embora propondo que ‘Deus poderia ter criado homens e mulheres que livremente (em um sentido compatível com o determinismo) fariam somente o que fosse moralmente correto’. Deus não fez isso por uma razão importante: ‘para que do mal um bem maior viesse, um bem que não poderia ter vindo, ou não poderia ter sido tão grande, se não tivesse havido o mal’”.8
3. Além dessa lei escrita em seus corações, eles receberam a ordem de não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal9; de forma que enquanto eles obedeceram a este preceito foram felizes em sua comunhão com Deus e tiveram domínio sobre as criaturas.10 (9 Gênesis 2:17 • 10 Gênesis 1:26, 28).
A Confissão afirma: Além dessa lei escrita em seus corações, eles receberam a ordem de não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. Nós já discutimos a lei escrita em seu coração, e além da lei moral, os nossos primeiros pais receberam o mandamento de não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. A. A. Hodge resume esta parte da Confissão da seguinte forma: “Deus dotou Adão com conhecimento suficiente para sua orientação — uma lei escrita em seu coração e uma revelação externa e especial de Sua vontade”9. A Lei escrita no coração de nossos primeiros pais era uma lei interna, porém o comando de não comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal era uma lei externa, uma lei particular e específica. Não há dúvida de que a proibição de Deus contra comer o fruto foi muito claramente entendida pelos nossos primeiros pais. As próprias palavras de Eva para a Serpente confirmam esta clareza: “E disse a mulher à serpente: Do fruto das árvores do jardim comeremos, mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis para que não morrais” (Gênesis 3:2-3). Esta revelação especial da vontade de Deus também incluiu uma revelação das consequências em caso de desobediência. Assim, o julgamento de morte dado a nossos primeiros pais, e toda a sua posteridade, foi perfeitamente justo.
A Confissão de 1689 declara: de forma que enquanto eles obedeceram a este preceito foram felizes em sua comunhão com Deus e tiveram domínio sobre as criaturas. Nesse estado pré-Queda eles foram felizes, para ser mais preciso, eles foram felizes em sua comunhão com Deus. A única felicidade verdadeira para os nossos primeiros pais — e para sua posteridade — foi e continua sendo a comunhão com Deus. Isso nos aponta para o ideal para a raça de Adão: comunhão com Deus. Quando refletimos sobre sua situação antes da Queda, nos entristecemos pelo fato de que tal Paraíso tenha sido perdido. Mas, como é encorajador saber que, em Cristo, recuperamos o Paraíso novamente. Pense nas palavras de Jesus ao ladrão na cruz: “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso” [Lucas 23:43]. Em que este Paraíso consiste? Jesus não o descreveu para o ladrão, mas tudo o que o ladrão precisava saber era que Jesus estaria lá com ele. Toda a Escritura aponta para o futuro Paraíso como um lugar onde Deus habita com o Seu povo — que pela obra de Cristo e pelo poder transformador do Espírito os eleitos de Deus são adequados à vida para Deus ali. Como é maravilhoso perceber que Deus através de Cristo recupera para Seus eleitos o que se havia perdido na Queda — a comunhão com Deus. Nós ficaremos bem colocados, não novamente no Jardim, mas na Nova Jerusalém, onde Deus habitará conosco. Ali a comunhão com Deus não será limitada à “viração do dia”, mas continuamente; pois Deus habitará ali naquela cidade de luz, o Cordeiro é a sua luz! E atualmente, através de Cristo, a comunhão com Deus é uma realidade pelo Espírito que é o nosso penhor da vida vindoura.
O Capítulo termina afirmando que os nossos primeiros pais tiveram domínio sobre as criaturas. Gênesis nos diz que Deus deu à humanidade o domínio sobre todas as outras criaturas. “E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra” (Gênesis 1:27-28). O Salmo 8 alude ao relato de Gênesis: “…Pois pouco menor o fizeste do que os anjos, e de glória e de honra o coroaste. Fazes com que ele tenha domínio sobre as obras das tuas mãos; tudo puseste debaixo de seus pés: todas as ovelhas e bois, assim como os animais do campo, as aves dos céus, e os peixes do mar, e tudo o que passa pelas veredas dos mares” (Salmo 8:5-8). Vemos Adão cumprindo este papel ao dar um nome para cada animal (Gênesis 2:20a). A posteridade de Adão também deveria dominar a terra, e até hoje vemos que a humanidade está cumprindo esse papel — às vezes bem e às vezes não tão bem.
* Para ler o Primeiro Capitulo e a Introdução deste Comentário acesse oEstandarteDeCristo.com.
[1] Após a conclusão da Confissão de Fé de Westminster, os teólogos de Westminster, escreveram o Breve Catecismo de Westminster para uso na instrução privada e familiar; ele possui um formato de pergunta e resposta (semelhante às perguntas mais frequentes (Frequently Asked Questions — FAQ formato popularmente usado hoje). É um Catecismo mais curto, pois é um resumo da Confissão de Westminster. O Catecismo Batista, que eu uso em todo este comentário, é uma adaptação do Breve Catecismo de Westminster, e tem a mesma finalidade: resumir a Confissão Batista de 1689. William Collins, um dos autores da Confissão de 1689, adaptou o Breve Catecismo de Westminster. Consulte “Forward to Baptist Catechism” [Avançando para o Catecismo Batista], por James Renihan, The Baptist Confession of Faith & The Baptist Catechism [A Confissão de Fé Batista & O Catecismo Batista] (Birmingham, Al.: Solid Ground Christian Books, and Carlisle, Pa.: Reformed Baptist Publications, 2010), 89-91.
[2] João Calvino comenta sobre Gênesis 1:26 e sobre o plural “Nós”: “Os Cristãos, portanto, corretamente afirmam, a partir deste testemunho, que existe uma pluralidade de Pessoas na Divindade”. João Calvino. Commentaries on The First Book of Moses called Genesis [Comentários Sobre O Primeiro Livro de Moisés, Chamado Gênesis]. Traduzido do original em latim, e comparado com a edição francesa, pelo Rev. John King, MA, vol. 1 (Grand Rapids: Baker Books, 2009), 92.
[3] João Calvino diz sobre um dos seis dias: “A criação do mundo foi distribuída ao longo de seis dias, por nossa causa, a fim de que nossas mentes possam mais facilmente se ocuparem na meditação das obras de Deus”. João Calvino. Commentaries on The First Book of Moses called Genesis [Comentários Sobre O Primeiro Livro de Moisés, Chamado Gênesis]. Traduzido do original em latim, e comparado com a edição francesa, pelo Rev. John King, MA, vol. 1 (Grand Rapids: Baker Books, 2009), 92.
[4] A Confissão de 1689 adicionou “e os adequou perfeitamente à vida para Deus, para o que eles foram criados”, à redação da Declaração de Savoy e da Confissão de Westminster. Esta declaração bem completa o parágrafo em relação às duas Confissões anteriores.
[5] João Calvino. Commentaries on The First Book of Moses called Genesis [Comentários Sobre O Primeiro Livro de Moisés, Chamado Gênesis]. Traduzido do original em latim, e comparado com a edição francesa, pelo Rev. John King, MA, vol. 1 (Grand Rapids: Baker Books, 2009), 94.
[6] Stephen Charnock, The Existence and Attributes of God [A Existência e Atributos de Deus] (1853; reimpressão, Grand Rapids: Baker Book House, 1986), os parênteses são meus.
[7] Veja o meu comentário do Capítulo 3, Parágrafo 3.
[8] Gregg R. Allison, Historical Theology: An Introduction to Christian Doctrine [Teologia Histórica: Uma Introdução à Doutrina Cristã] (Grand Rapids: Zondervan, 2011), 295. Allison cita Paul Helm, The Providence of God, Contours of Christian Theology [A Providência de Deus, Contornos de Teologia Cristã] (Downers Grove Il.: InterVarsity, 1993), 67.
[9] A. A. Hodge, A Confissão de Westminster: Um Comentário (1869; reimpresso, Carlisle, Pa .: Banner of Truth Trust, 2002), 85.