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O Oitavo Mandamento — Propriedade, por Cornelius Van Til

O significado deste Mandamento pode ser resumido dizendo que ele solicita ao homem que respeite, preserve e desenvolva a sua própria propriedade e a de seu próximo. Mas isso pressupõe o direito do homem ter propriedade. Deste modo, é esta pressuposição que deve ser atestada primeiro. Agora, a fim de fazer isso, devemos voltar para a criação, em primeiro lugar. Tudo o que é logicamente dedutível no que diz respeito ao homem e à sua esfera de atividade — a partir do fato de que ele é uma criatura — pode ser dito ser bem fundamentado na Escritura como qualquer coisa poderia ser. Agora, já que o homem é criado tendo sido constituído de alma e corpo, ele precisa de um plano externo no qual ele possa agir livremente. Ele precisa dessa esfera que favoreça e conexão e união com os outros, desde que juntos eles formam uma unidade, mas ele também precisa de uma esfera para si mesmo onde ele possa desenvolver-se em relativa independência. A propriedade dá liberdade para a atividade racional e moral.

O pecado fez o homem negar que ele era uma criatura sujeita às leis de Deus. Assim sendo, ele olhou para este mundo como se apenas estivesse nele de alguma forma. Assim, cada homem apossou-se dele conforme estava em seu poder. Além disso, quando alguém conseguia se apossar de uma parte dele, sentia que poderia fazer com esta tudo o que lhe agradasse, sem responsabilidade em relação aos seus companheiros ou para com Deus. O resultado foi que se alguém, pelo seu grande êxito em obter para si mesmo muita terra, desenvolvia uma teoria de direito de propriedade, esta seria era uma falsificação de uma teoria teísta. Ele diria que isso era necessário para a sociedade. Isto é verdade, mas não o fundamento definitivo do direito de propriedade, desde que não há razão para que a sociedade exista a menos que seja para Deus. Não era de admirar, então, que o engrandecimento não conheceu limites. Quando o dinheiro foi inventado para se tornar representante da ou mesmo um substituto para a propriedade, o espírito de engrandecimento aumentou. Especialmente quando, devido ao desenvolvimento do comércio e dos negocias o dinheiro poderia aumentar a si mesmo por mero investimento, isso permitiu que os homens atuassem como verdadeiros deuses sobre a terra. Os menos afortunados do que eles próprios eram desprezados e reduzidos a serem meras porções de propriedade. A escravidão foi o resultado natural do abuso do original direito legítimo à propriedade. Na escravidão isso realmente atingiu o seu clímax. Assim, desenvolveu-se dois extremos. O extremamente rico perdeu todo o senso de responsabilidade e os extremamente pobres perderam todo o senso de autorrespeito. Considerar a si mesmo a propriedade de Deus é enobrecedor; conhecer a si mesmo como um escravo do pecador egoísta é degradante.

Assim as lutas de classe surgiram e foram relativamente justificadas. Se nenhuma das partes reconheciam Deus como Criador, é um procedimento lógico e totalmente legítimo organizar e usar a força para criar um espaço de atuação por si mesmos. O mundo é, então, livre-para-todos. Poder é direito. Foi sobre este princípio que os ricos detentores de propriedade, industriais e financiadores têm atuado muitas vezes. Hipocritamente, ou sob uma ilusão, eles defenderam a sua posição com uma linguagem piedosa. Mais direto e mais lógico, Karl Marx escreveu o seu, “Das Kapital”. Nele, ele francamente abraçou uma filosofia materialista e, portanto, necessitarista da história. A hipótese da evolução reforçou ainda mais as suas ideias. O homem e, portanto, a moralidade e a racionalidade derivaram-se do não-moral e do irracional. Apenas a utilidade pode restringir os homens de buscarem apossar-se de tudo. Os governos, posto que são eles próprios derivados de tal sociedade, não têm poder maior do que o derivado da sociedade. Logo, esses governos também só podem aconselhar dois lobos sobre o fato de que seria desvantajoso devorarem-se um ao outro.

A razão por que tudo isso não tem levado à destruição da sociedade é devido à graça comum de Deus. Por meio da graça comum, Ele tem restringido o pecado dos homens. Apenas de vez em quando um Lameque, ou um Nietzsche aparece. Para a maioria dos homens e especialmente para os homens que estão em posição de elevada autoridade, Deus tem graciosamente dado algum senso de honestidade e responsabilidade. Ele até fez com que essas bênçãos da graça comum se desenvolvessem ao longo dos tempos, de modo que os governos e sociedades mais ordenadas se desenvolveram. No entanto, conforme o tempo passa e os homens têm plenamente demonstrado a sua indignidade, mesmo de receber essas bênçãos temporais, os dias de Noé voltarão, e ouviremos falar de guerras e rumores de guerras. Quando os homens perderem a sua “afeição natural” eles serão adúlteros, ladrões e mentirosos. A ironia do Inferno será que os homens buscarão exercer plenamente todos esses “dons” deles, mas não encontrarão nenhum campo para o seu exercício.

A este mundo de pecado veio o princípio redentivo, vindo a partir de Cristo, seu centro. Isso restaurou, em princípio, a verdadeira ideia de propriedade. Vemos isso já no Antigo Testamento e mais plenamente no Novo. O primeiro ponto que precisava de restauração era a própria ideia de criação. Uma vez feito isso, os abusos dos ricos e a insatisfação dos pobres naturalmente desaparecerão. “Também a terra não se venderá em perpetuidade, porque a terra é minha; pois vós sois estrangeiros e peregrinos comigo” (Levítico 25:23). Se a terra é do Senhor e, consequentemente, tudo que é útil para o homem é do Senhor, o homem não pode ser mais do que um mordomo que certamente terá que prestar contas de sua mordomia. Certamente, nesse caso, um homem não pode reduzir seu semelhante a uma porção de propriedade. Seu companheiro tem o direito de propriedade como ele. Durante o Antigo Testamento esse princípio ainda não podia ser totalmente posto em aplicação. Por isso os judeus ainda não foram diretamente proibidos de reduzir os estrangeiros a escravidão. Apenas nos tempos do Novo Testamento este princípio poderia ser mais plenamente expresso. Da mesma forma, durante a dispensação do Antigo Testamento os excessos de riqueza e pobreza eram verificados pelo regulamento de que todas as propriedades após sete anos voltariam a pertencer aos seus donos originais ou aos seus herdeiros.

No tempo de Jesus, bem como nos outros, os judeus infelizmente tinham abusado daquelas ordenanças teocráticas-teístas Divinas. Os fariseus tinham adicionado tantos encargos aos já prescritos no Antigo Testamento que o pobre homem nunca poderia esperar suportá-los. Consequentemente, a maior parte dos pobres estavam insensíveis e desanimados. O que Jesus faz em meio a tudo isso?

Ele faz o que seria de esperar que Ele fizesse como o restaurador do teísmo. Ele não necessariamente expressa-Se plenamente sobre o assunto. Ele não fez isso com relação ao Sabath. Em ambos os casos, Ele deixou que isso fosse anunciado muito posteriormente por Seus seguidores. No entanto, os princípios são claros.

As afirmações de Jesus que têm uma influência direta sobre a questão corroboram com a nossa expectativa de que Ele buscará restaurar um verdadeiro teísmo. “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom” (Mateus 6:24). “E eu vos digo: Granjeai amigos com as riquezas da injustiça; para que, quando estas vos faltarem, vos recebam eles nos tabernáculos eternos” (Lucas 16:9). “Pois, se nas riquezas injustas não fostes fiéis, quem vos confiará as verdadeiras?” (Lucas 16:11). Quando se diz: “Não podeis servir a Deus e a Mamom”, pelo termo Mamom, entende-se qualquer coisa de valor terreno, ou seja, propriedades em geral, e o dinheiro em particular. Jesus reconhece em primeiro lugar, que é legítimo e necessário ter dinheiro. Se não fosse assim, Ele não poderia ter recomendado seu uso como um meio pelo qual adquirir amigos. Ele simplesmente toma por garantida a ordenação de criação, uma vez que tinha sido novamente expressada nas palavras do Antigo Testamento: “a terra é minha”. Em segundo lugar Jesus reconhece o abuso feito daquilo que em si é legítimo. Quando os homens negaram que Deus era o dono do dinheiro, então o dinheiro tornou-se o seu deus. Contra isso, Jesus diz que eles não podem servir a dois senhores. Sua própria prática estava de acordo com o Seu princípio expresso. Não há evidência de que Jesus e Seus discípulos eram muito pobres. Eles tinham uma bolsa e, por vezes, aliviavam os pobres. Ele não era um sonhador que não tinha olhos para a necessidade social. Ele ajudou o centurião rico e o pobre homem doente de Betesda, o rico Jairo e o pobre Bartimeu. O homem rico não “levanta os olhos em tormento”, porque ele era rico, mas porque ele tinha desprezado a Moisés e aos Profetas, os quais lhe disseram para fazer uso adequado de suas riquezas. Jesus, no entanto, nesta parábola e também em Sua recomendação ao jovem rico, indicou que as riquezas são uma grande tentação, e que se alguém possuir riquezas, facilmente cederá à perda de sua própria alma. Qualquer que tenha sido o motivo específico para a exigência de Jesus de que o jovem rico vendesse tudo o que tinha, isso aconteceu pelo fato de Jesus haver considerado necessário para este homem em particular dispor da sua riqueza, a fim de ser um discípulo Seu. A recusa do jovem rico mostra não somente que ele não estava pronto para dar tudo por Jesus, mas que ele não estava pronto para dar algo para Jesus. Ele olhou para a sua riqueza como absolutamente e não como derivadamente sua própria. As riquezas não são erradas em si, mas facilmente tornam-se erradas para o homem pecador.

Vemos, então, que o importante para os Cristãos observarem com relação à questão das possessões é que a propriedade privada deve ser respeitada, protegida e desenvolvida. Todos os meios legítimos pelos quais isso é feito mais facilmente possível, devem receber o nosso encorajamento e ajuda. As completamente não-naturais condições de vida nas cidades modernas tendem, como vimos, a facilitar a quebra de todos os Mandamentos e, especialmente, os Mandamentos que dizem respeito diretamente à vida social. São oferecidas oportunidades maravilhosas para que Ao roubo individual e ao banditismo sejam exercidos nas grandes cidades. Na medida em que a centralização da produção e da indústria é necessária, medidas devem ser tomadas que farão de tal centralização possível e consistente com a proteção da vida e da propriedade. Daí o pregador do Evangelho não pregará “o evangelho social” somente, mas certamente anunciará aos homens a mensagem do Cristianismo no que diz respeito à vida social. Essa mensagem é que os homens devem ser teístas. Se eles são, o problema do capital e do trabalho, do socialismo e do comunismo não serão resolvidos completamente de imediato, mas eles serão resolvidos, em princípio. Um capitalista teísta não pode reduzir seu semelhante a uma porção de propriedade. Um trabalhador teísta reconhecerá diferenças originadas na criação entre os homens e ficará satisfeito com o seu pão de cada dia. Obviamente, enquanto o pecado durar, as consequências do pecado durarão. O trabalho árduo será necessário, e os homens buscarão escapar dele, transferindo-o para outros. Por isso, pode ser necessário que outros possam organizar-se e protestar. E especialmente porque sabemos bem que nem todos os homens têm fé, isso não somente será necessário para aqueles que têm a dizer para aqueles que não a tem, que eles também têm fé, mas também será necessário utilizar todos os esforços legítimos para fazer a vida, tal como ela é, tão tolerável quanto possível. O Cristão deve ajudar a remover a injustiça de homem para com homem. Desde a entrada do pecado, o homem tem sido o lobo do homem.

Ai do pobre modernismo! Ele tem pensado levar a mensagem de Jesus para mais perto dos homens quando desiste da especulação sobre tais doutrinas “abstratas”, como a da criação. O modernismo reescreveu “a teologia como uma ciência empírica”. Ele procura realmente ajudar as necessidades sociais com o “evangelho social”. Mas a sua negação do teísmo do qual a criação é o ponto diretamente significativo, neste contexto, tornou impossível para o modernismo oferecer qualquer coisa à luta entre capital e trabalho além do que aquilo que o capital e o trabalho já conhecem muito bem, ou seja, que o poder faz o direito. O modernismo tem sensatamente se limitado em grande parte ao exterior, pois o verdadeiramente interior, ele não pode tocar. Ele pode aliviar a superfície, mas não funciona para as principais doenças internas. Apenas o Cristianismo ortodoxo tem uma mensagem real para aqueles que estão envolvidos na “luta pela existência”.

A mensagem final que ele traz é a promessa do futuro. O modernismo tem enfatizado o fato de que temos de ajudar os homens para esta vida, em vez de consolá-los com a perspectiva da vida por vir. O triste resultado foi que o modernismo não tem nenhuma mensagem, nem para esta vida ou para a porvir. Aquele que não tem nenhuma mensagem para a vida por vir, não pode ter nenhuma mensagem para esta vida. Se não houver uma vida por vir, não há nenhuma mensagem de ninguém para ninguém sobre nada. Os idealistas de todas as épocas têm sentido a necessidade de um “além”. “Ideias” de Platão, “Noumenon” de Kant e “Absolute” de Hegel são a prova dos esforços inúteis de idealização feitas pelo homem separado de Deus. Utopias têm existido em multidão. Todavia, nenhuma delas ofereceu qualquer ajuda genuína. Todas elas têm procurado algo absoluto, em vez de uma Pessoa absoluta. Nenhuma esteve disposta a admitir que o homem trouxe o mal sobre si mesmo. Portanto, apenas o Cristianismo oferece alívio. A garantia de justiça futura permite que os pobres que estão em Cristo permaneçam “puros de coração”. O Consolo é deles, consolo genuíno, como o mundo não conhece e não consegue entender. Resta ainda um repouso para o povo de Deus.